[weglot_switcher]

Com que se parece o jogo de futebol mais inclusivo do mundo?

Na quarta-feira, o Atlético de Madrid e o Lille defrontaram-se na fase de liga da Champions. Ainda antes do início da partida, já se jogava, fora do Estadio Riyadh Air Metropolitano, o segundo ‘Partido Inclusivo’, uma iniciativa pensada para chamar a atenção para os direitos dos adeptos com deficiência.
29 Outubro 2024, 19h46

O que partilham Arrigo Sacchi e Carlo Ancelotti, além da nacionalidade, de terem treinado os rivais de Madrid e a squadra azzurra? A ambos é atribuída a autoria de uma das frases mais célebres do desporto-rei: “O futebol é a coisa mais importante entre as menos importantes”. Apócrifos à parte, ao futebol é reconhecido o papel ativo e importante para a mudança que a sociedade reclama, da luta contra o racismo à inclusão social.

Na quarta-feira, o Atlético de Madrid e o Lille defrontaram-se na fase de liga da Champions. Ainda antes do início da partida, já se jogava, fora do Estadio Riyadh Air Metropolitano, o segundo Partido Inclusivo, organizado pela associação Integrated Dreams, sediada em Lisboa, pela World Football Summit (WFS), pela AccessibAll, pelo Atlético de Madrid, tendo, ainda, o Diario AS como parceiro.

O hino em língua gestual, relatos audiodescritivos – que permitem que pessoas cegas e de baixa visão acompanhem o que se passa no estádio –, uma sala sensorial, atividades de sensibilização para o daltonismo antes e durante o jogo, uma fan zone com jogos da nova modalidade desportiva “foothand”, estão entre as peças que completaram o “jogo mais inclusivo do mundo”, uma iniciativa pensada para chamar a atenção para os direitos dos adeptos com deficiência, das deficiências físicas à neurodivergência.  

“Definitivamente, a indústria do futebol tem de liderar o caminho. Provavelmente, pelo menos na Europa, é o desporto mais poderoso. Por isso, é um excelente veículo para a educação, para a transmissão de valores, e é essa a ideia de todos estes projetos”, explica Marian Otamendi, fundadora da WFS, em conversa com o Jornal Económico (JE).

A dirigente destaca o poder do futebol para “mudar percepções”, associando a alienação à “falta de informação”. Sobre a forma como os clubes lidam com as questões de inclusão e acessibilidade no futebol, Marian diz que, muitas vezes, as direções dos clubes “não estão conscientes” do tema, sobretudo quanto aos diferentes tipos de deficiência, continuando “a fazer as coisas como antigamente”.

Segundo Marian Otamendi, os jogos de futebol são “momentos ótimos” para sensibilizar a população para as barreiras que uma parte da população encontra.

“Podemos fazer mais coisas em conjunto e chegar a uma sociedade mais inclusiva, onde as pessoas com deficiência possam facilmente assistir a jogos de futebol e praticarem desporto, se assim o desejarem. Existem muitas barreiras. E o que pretendemos através desta iniciativa é tornar essas barreiras visíveis para as outras pessoas. Temos de normalizar a situação de estarmos habituados a ir a um jogo e ver pessoas cegas e em cadeira de rodas a irem ao estádio”, defendeu.

O objetivo passa, no final do jogo, por suscitar junto dos clubes de futebol europeus algum nível de compromisso neste tema. “Quando se leva a iniciativa a um clube de futebol, apercebem-se realmente da importância de tornar o jogo acessível a todos. Estou certa de que esta iniciativa será o início de uma nova vida de inclusão para o Atlético de Madrid”, afirmou a dirigente espanhola, que está à frente da WFS desde 2014.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 1,3 mil milhões de pessoas (16% da população mundial) tem algum tipo de deficiência.

“O desporto, se quer ser verdadeiramente global e se quer chegar a todos, tem de ser para 100% da população e não só para 84%”, afirma José Soares, fundador da Integrated Dreams, ao JE.

“O mais importante é chamar a atenção para os direitos das pessoas com deficiência. Associa-se a deficiência à cadeira de rodas. Mas das pessoas todas do mundo com deficiência, só 7% são de mobilidade reduzida (de cadeira de rodas). 93% das pessoas com deficiência não utiliza uma cadeira de rodas. E 71% das deficiências a nível mundial são de deficiências não são visíveis”, explica.

O primeiro Partido Inclusivo teve lugar em fevereiro do ano passado, durante o Betis-Valladolid, em Sevilha. “O Betis foi o primeiro clube de sempre da liga espanhola a ter o hino em língua gestual, e continua a ter. A semente fica. E foi o primeiro clube a criar uma sala sensorial”, recorda José Soares, acrescentando que hoje, pessoas com deficiência que participaram nesse evento, continuam a trabalhar no clube.  

Sobre a sala sensorial disponibilizada no jogo Atlético – Lille, o responsável da ONG fundada em 2017 revela que uma das zonas que VIP foi adaptada e transformada num local que permitisse “a pessoas com autismo, com síndrome de Asperger ou com outros tipos de diversidade sensorial terem ter uma experiência inclusiva e num ambiente confortável”, isolado de ruídos externos e com baixa luminosidade.   

“O jogo mais inclusivo do mundo” contou, ainda, com ações de sensibilização sobre o daltonismo, promovidas pela associação portuguesa ColorADD, que desenvolveu o primeiro código inclusivo para daltónicos, sendo hoje utilizado por vários clubes.

Estatisticamente, um em cada 12 homens e uma em cada 200 mulheres têm alguma forma de daltonismo globalmente, o que significa que, em muitos desportos de equipa, pelo menos um jogador em cada equipa masculina é daltónico. O FC Porto “foi o primeiro clube do mundo a trabalhar com o ColorADD”, recorda José Soares.

José Soares fala numa oportunidade para os clubes de investirem num mercado emergente que representa 13 triliões de dólares. Os clubes estão “a despertar”. “A parte financeira é importante. É preciso fazer reformas no estádio e na zona circundante; muitas vezes nem depende só dos clubes, mas das autarquias. Mas é investir em oportunidade. Estamos a investir no mercado das pessoas com deficiência, que é maior do que o mercado da China e da União Europeia (UE) juntos”, explica.

Do lado da AccessibAll, parceiro do evento que redigiu o “guia do espetador com deficiência” para o Atlético-Lille, Olivier Jarosz entende que os clubes de futebol “devem reconhecer que muitos dos seus adeptos podem já necessitar de serviços de acessibilidade, mesmo que isso não seja óbvio”.

“Quase uma pessoa em cada quatro que vemos na rua tem uma deficiência. A verdade é que, estatisticamente, a maior parte das deficiências não são visíveis”, continuou o antigo responsável da Associação de Clubes Europeus, também em entrevista ao JE.

Olivier Jarosz destaca o “poder do desporto para comunicar e fazer coisas que noutras áreas não seriam possíveis”, recordando os papéis da geopolítica do desporto, diplomacia do críquete e, ainda, a diplomacia do pingue-pongue entre a China e os Estados Unidos.

“O desporto pode fazer o que talvez outras áreas não consigam fazer. Inclusão significa definitivamente garantir que toda a gente é bem-vinda. Todos estão seguros e todos sentem que podem vir. A maior minoria social do mundo são as pessoas com deficiência e as pessoas com deficiência representam, segundo a União Europeia, cerca de 25% da população europeia”, continuou o CEO da associação parceira da UEFA.

Dão os clubes a importância e investimento devido a este tema? “Claramente não”, diz Olivier. “É insignificante ou inexistente. Se falamos de clubes, temos de falar das pessoas que trabalham nos clubes. É um espelho da nossa sociedade. Mostra-nos certas coisas que as pessoas não veem necessariamente. É como o racismo. Existe mais no futebol? Não me parece. Acho que só se vê mais no futebol porque algumas pessoas expressam-no mais. E o investimento na deficiência é bastante inexistente por parte das organizações porque não a conhecem. As pessoas envolvidas nesta questão, nos clubes que estão a fazer alguma coisa, são muitas vezes pessoas que têm alguém na família ou um parente próximo. Até sabermos o que é a deficiência, não pensamos que ela existe”, analisou.

 

Portugal: “Diferença abrupta” na inclusão e a oportunidade do Mundial 2030

Apesar de o tema da inclusão e da acessibilidade ainda estar longe do desejável, José Soares sente “uma diferença abrupta para melhor” em Portugal, sobretudo na “atitude” perante esta questão.

A Liga Portugal, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e vários clubes têm mostrado “uma abertura e um compromisso claro nesta área”, melhorando aspetos relacionados com a inclusão e com a acessibilidade.

“Todos os clubes veem valor nesta área e estão abertos a colaborar, a criar impacto e uma melhor experiência para as pessoas com deficiência, para tornar o futebol português verdadeiramente para todos”, explica.

Sobre a 24.ª edição internacional do Campeonato Mundial de Futebol masculino, que será realizado em Espanha, Portugal e Marrocos, o fundador da Integrated Dreams olha para a competição como “uma grande oportunidade com um impacto gigante forte” no que aos temas da inclusão e acessibilidade diz respeito.

 

 

 

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.