A moção de censura ao Governo, apresentada pelo CDS-PP, foi ontem chumbada na Assembleia da República com os votos contra dos deputados do PS, BE, PCP, PEV e PAN, além do deputado independente Paulo Trigo Pereira. Votaram a favor os deputados do PSD e do CDS-PP. Em suma, o equilíbrio parlamentar mantém-se inalterado desde a aprovação da moção de rejeição do programa do segundo Governo de Pedro Passos Coelho, no dia 10 de novembro de 2015, abrindo o caminho para a formação do atual Governo de António Costa. De um lado, os 123 deputados do PS, BE, PCP, PEV e PAN. Do outro lado, os 107 deputados do PSD e do CDS-PP. Não foi precisamente esse o resultado da votação de ontem, mas apenas porque estavam ausentes oito deputados.
O que é que mudou desde a queda do XX Governo Constitucional, o mais breve da III República Portuguesa, em novembro de 2015? Desde logo as lideranças do PSD e do CDS-PP, embora com diferentes temporizações: Rui Rio sucedeu a Passos Coelho em janeiro de 2018; Assunção Cristas sucedeu a Paulo Portas em março de 2016. Ao assumir a presidência do PSD, Rio desenvolveu uma mudança estratégica, suavizando a oposição ao Governo e procurando estabelecer acordos com o PS em matérias estruturais e de médio ou longo prazo. Em contraste com a permanente hostilidade e impossibilidade de diálogo que marcaram os cerca de dois anos de Passos Coelho na bancada parlamentar da oposição.
Por seu lado, Cristas tenta difundir a imagem de líder da oposição praticamente desde que obteve um resultado histórico nas eleições para a Câmara Municipal de Lisboa, no dia 1 de outubro de 2017: segunda posição, com 20,59% dos votos, quase o dobro relativamente ao PSD. Terá sido essa a principal motivação da moção de censura que apresentou ontem, jogando no plano simbólico, uma vez que a iniciativa estava condenada à partida. Tal como a primeira moção de censura que apresentou no dia 19 de outubro de 2017, na sequência da segunda tragédia dos incêndios florestais. Em ambos os casos, o PSD votou a favor, mas fica registado que as duas iniciativas partiram do CDS-PP. Ao que acresce a constatação da ausência de Rio, sem assento na Assembleia da República, possibilitando a Cristas preencher esse vazio simbólico.
O quadrante cristalizado desde 1975
Mas quais é que serão os efeitos práticos, nas urnas de voto, dessa liderança simbólica da oposição parlamentar? A tentativa de insuflar a real dimensão eleitoral do CDS-PP foi iniciada ainda nos tempos de Passos Coelho, o qual pareceu nunca ter superado o estado de negação pós-queda do Governo. Remetido à condição de deputado, Passos Coelho manteve a pose e discurso de primeiro-ministro, como se estivesse numa espécie de exílio temporário. O CDS-PP foi mais lesto a perceber e aceitar que a denominada “geringonça”, ao contrário do que se pensava inicialmente, poderia resistir até ao final da legislatura. Cristas avançou desde logo com uma estratégia de oposição mais proativa e focada no presente, ao passo que o PSD permanecia cativo do passado recente. A partir das eleições autárquicas, com o PSD a trocar de líder mas a resvalar para um processo auto-destrutivo, no limiar da sabotagem interna, Cristas viu a oportunidade de inverter o equilíbrio de forças no quadrante de direita e centro-direita do espectro político, cristalizado desde 1975.
A iniciativa de ontem foi mais um passo nesse caminho estratégico. “Dizer que sou líder da oposição é factual”, afirmou a própria Cristas, na entrevista ao jornal “Expresso” (edição de 16 de fevereiro) em que fundamentou a moção de censura. O problema é a tradução prática dessa liderança simbólica. Atente-se na evolução das sondagens ao longo da legislatura: mesmo com o PSD a baixar para mínimos históricos, em torno de 24% das intenções de voto, o facto é que o CDS-PP não tem capitalizado com esse definhamento, mantendo-se abaixo da barreira de 10%. Há uma tendência consolidada de subestimação do CDS-PP nas sondagens, ressalve-se, mas o cenário de ultrapassagem do PSD não parece ser realista. E se os novos partidos (Aliança, Chega, Iniciativa Liberal, etc.) não captarem votos suficientes para eleger deputados, o bloco de direita e centro-direita muito dificilmente conseguirá alcançar uma maioria de 115+1 deputados.
Carga “positiva” vs. carga “negativa”
À esquerda, a situação é mais complexa. A moção de censura serviu para demonstrar que, apesar da crescente descolagem do Governo, visando as próximas eleições, os bloquistas e os comunistas não podem romper essa interligação. Ontem tiveram a última oportunidade e recusaram fazê-lo. O que implica assumir todo o legado do Governo, tanto a parte que entendem ser “positiva” como a “negativa”. É sintomático que, no debate da moção de censura, a principal mensagem do BE e do PCP tenha sido a responsabilização do PSD e do CDS-PP pela componente “negativa” da governação, ao mesmo tempo que enalteciam o “cunho do BE” e o “cunho do PCP”, respetivamente, na componente “positiva”. É o mesmo paradoxo que leva o PSD e o CDS-PP a criticarem o Governo pela escassez de investimento público, enquanto o PS defende a primazia do rigor orçamental, ou seja, colocando-se em posições diametralmente opostas às que assumiram convictamente no anterior ciclo político.
O grande receio dos bloquistas e dos comunistas não é tanto a formação de uma maioria absoluta do PS nas próximas eleições legislativas, cenário aliás muito improvável, mas sobretudo a possibilidade de sofrerem perdas substanciais de votos e mandatos. Daí o bloqueio, patente no chumbo da moção de censura: não podem romper a interligação ao Governo, mas não querem assumir a carga “negativa” do respetivo legado. Esse equilibrismo periclitante (o silêncio perante o mais recente aumento das cativações, ou os novos dados sobre investimento público orçamentado mas não executado, por exemplo) vai prosseguir até serem dissipadas as duas maiores dúvidas das legislativas de outubro: primeira, saber qual dos blocos vai conquistar uma maioria de 115+1 deputados (o de esquerda e centro-esquerda é claramente favorito); segunda, avaliar qual será o impacto do legado da “geringonça” na dimensão das bancadas parlamentares do BE e do PCP. Num cenário de perdas substanciais, a interligação ao PS deverá ser rompida. Não por acaso, as pressões internas nesse sentido estão a tornar-se cada vez mais expressivas.
Sei o que fizeste no Governo passado
Quanto ao PS, terá falhado na gestão de expectativas. Começou por anunciar insistentemente a “viragem da página da austeridade”, ao mesmo tempo que caminhava para o défice zero, mas vai terminar a legislatura sob uma forte contestação social e sindical. A maioria absoluta tornou-se uma miragem, apesar dos mínimos históricos do PSD nas sondagens. E os sinais que prenunciam uma viragem de ciclo económico estão a incrementar o nervosismo entre as hostes socialistas. Tudo isto desemboca na seguinte questão: os bloquistas e os comunistas estarão dispostos a apoiar um Governo minoritário do PS forçado a agravar as restrições orçamentais?
Importa recordar que a “geringonça” teve origem na rejeição do Governo de Passos Coelho, sendo desde logo impulsionada pela narrativa do “fim da austeridade” que se traduziu em “reversões” de medidas aplicadas nos “anos de chumbo” da troika. No entanto, essa memória está a desvanecer-se e o novo Governo terá que criar outra narrativa. No debate da moção de censura, porém, tanto o PS como o BE e o PCP voltaram a evocar o passado de Cristas no Governo que executou o memorando da troika. É também essa imagem que ainda os mantém unidos. Pelo menos até às decisões de outubro. O chumbo de ontem como que lançou os dados para os próximos sete meses de campanha eleitoral.
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