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“Gestão desastrosa.” Ex-coordenador do plano de envelhecimento pede ao TdC que investigue fusão de centros de competências

Nuno Marques afirma que o Governo tem na sua posse, desde abril do ano passado, uma proposta de Plano de Ação dos Cuidados de Longa Duração, de acordo com os princípios da recomendação europeia, e lamenta que ainda nada tenha sido decidido. O cardiologista teme que o Plano de Envelhecimento que ergueu esteja em risco e quanto ao seu afastamento da coordenação garante ter tido “vários contatos de estupefação” porque “ninguém compreende as decisões tomadas em Portugal”.
19 Março 2025, 07h00

Nuno Marques, coordenador do Plano de Envelhecimento Ativo e Saudável apenas durante 10 meses, foi um dos sete dirigentes superiores afastados pelo Ministério do Trabalho, da Solidariedade e Segurança Social. Em entrevista ao Jornal Económico, o cardiologista acusa o Governo de não priorizar as questões do envelhecimento e receia que fundos europeus nesta área se percam. Apela por isso ao Presidente da República que “esteja atento” à execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e do PT 2030. Afirma que o Centro de Competências de Envelhecimento Ativo (CCEA) foi extinto e não alvo de uma fusão, como determina uma portaria de novembro, e pede ao Tribunal de Contas que investigue a gestão do processo que classifica como “desastrosa”.

Disse no Parlamento que o novo coordenador do Plano de Envelhecimento Ativo começa a trabalhar sem equipa no terreno e que os profissionais do centro de formação e competências vão ser dispensadas. Estamos a falar de quantas pessoas e o que é que lhes foi dito?

O Centro de Competências de Envelhecimento Ativo (CCEA) tinha 56 trabalhadores, dos quais 36 eram formadores que estavam descentralizados com um polo a funcionar em cada distrito do país, com um funcionamento de proximidade que aproximou a aplicação das políticas do envelhecimento das entidades locais, para além da realização da formação também ser na proximidade do público-alvo. Foi transmitido em reunião aos trabalhadores que esta equipa seria maioritariamente dispensada, nomeadamente os formadores que estão descentralizados, situação confirmada numa entrevista recente a um outro meio de comunicação social pelo diretor do novo centro para onde transitaram. Trata-se do IEFP a promover a precariedade no trabalho, dispensando os formadores contratados e contratando outros a recibos verdes para a mesma tarefa.

Acresce-se ainda que o novo centro, o Centro de Competências de Economia Social, não tem qualquer âmbito de atuação na área do envelhecimento ativo e que já foi transmitido que os antigos trabalhadores do CCEA não podiam dar apoio às políticas do envelhecimento. Daí ter afirmado, com toda a certeza, que o novo coordenador do Plano de Envelhecimento Ativo inicia funções numa situação de enorme retrocesso organizacional – por decisão política, deixou de ter à sua disposição a equipa de apoio à implementação no terreno. Voltamos à situação de há três anos, antes da implementação das políticas de envelhecimento ativo.

Afirma que o Centro de Competências de Envelhecimento Ativo foi extinto e não alvo de uma fusão com o Centro para a Economia e Inovação Social (CEIS), como estabelece uma portaria de novembro. Por que razão entende que o centro de competências foi extinto?

Apesar de ter existido uma portaria do Governo a determinar a fusão, trata-se, na realidade, de uma extinção de um dos centros, o CCEA, e o trânsito, temporário, dos funcionários para outro centro. Se fosse uma fusão não podia existir a extinção do âmbito do envelhecimento que o CCEA tinha, teria de ser mantida no novo centro, tal como todas as suas atividades. O Governo chamou-lhe fusão na portaria  para ocultar a extinção da única instituição que tinha para o envelhecimento ativo. Na prática, o que se passou foi darem outro nome a um dos centros, o Centro da Economia e Inovação Social, que se passou a designar Centro de Competências da Economia Social, mantendo mesmas atribuições. Este processo foi gerido de forma desastrosa, como se pode verificar no facto de o Centro de Competências da Economia Social ainda não ter qualquer atividade realizada até ao fim de fevereiro. Ora, pegaram em dois centros a funcionar e agora nem um deles conseguiram pôr a funcionar e a cumprir a sua missão, o que foi assumido publicamente pela sua direção. Esta situação é de grande gravidade, pois são centenas de milhares de euros de fundos públicos a serem desperdiçados por uma decisão desastrosa e por uma ausência de resposta a quem necessita. Espero que o Tribunal de Contas (TdC) investigue e que politicamente se esclareça como foi feita a gestão política. É importante que estas situações sejam clarificadas e que haja atribuição de responsabilidades. Fica o apelo público para que seja investigada a situação, são os nossos impostos que custam tanto a todos nós pagar que podem estar a ser desperdiçados por uma gestão danosa.

O presidente do IEFP, entretanto, negou que tenha trocado trabalhadores a contratos por recibos verdes. Disse que saíram apenas nove (e não 36) e que a maioria quis sair.

A resposta do Sr Presidente do IEFP é a esperada, atirou poeira para os olhos das pessoas, de forma contraditória até ao diretor do próprio centro. Factualmente, sem estar a jogar com palavras, os formadores dos polos souberam todos que iam ser dispensados, uns já foram, outros começaram a procurar outras opções. É fácil de verificar. Se não fosse assim, a sua saída implicaria a entrada de outros para o quadro. Entraram ou foram substituídos por recibos verdes?

Ficou descansado com as declarações do presidente do IEFP que garantiu que o atual centro vai manter os planos de atividades previstos nos anteriores centros?

A realidade é que o centro atual não produziu qualquer atividade e os trabalhadores não estão a apoiar as atividades de envelhecimento ativo onde estavam, tudo parou, incluindo com os municípios e com as IPSS no terreno.
É muito grave e não vale a pena atirar poeira para os olhos das pessoas, a população portuguesa merece mais que isso.

Mencionou também nessa audição várias medidas e programas que ficaram em suspenso, alguns dos quais previstos no PRR, por não terem sido lançados. Há o risco de se perderem financiamentos europeus por causa desses atrasos?

O PRR tem timings de execução, até ao fim de 2026 os projetos têm de estar todos executados e com as metas definidas cumpridas, caso contrário não há transferência dos fundos. O tempo passa e o risco de não execução aumenta exponencialmente. Os fundos europeus do PRR estão em causa nesta área, o que não tem qualquer justificação aceitável, no meu entender, pois estavam já em março de 2024 com o processo todo definido e pronto para ser executado, desde que devidamente priorizado. Estamos a falar de temas como o combate ao isolamento dos mais idosos com a utilização da teleassistência, da telemonitorização, os cuidados domiciliários de maior qualidade, a atribuição de ajudas técnicas como cadeiras de rodas ou camas articuladas, o aumento do conforto nos domicílios. Alguém neste país acha que estas situações não são urgentes? Espero que exista um lançamento rápido dos mesmos, ainda no primeiro trimestre deste ano, caso contrário, a sua execução será muito difícil ser conseguida até ao fim de 2026. Apelo ao Presidente da República que esteja atento à execução dos fundos europeus, PRR e PT 2030, das áreas do Envelhecimento Ativo e Saudável. São fundos disponíveis e programados para os mais vulneráveis que não podem ser perdidos. Estão parados à espera que exista a decisão de os lançar. Não somos um país rico, precisamos de aproveitar as oportunidades e maximizar estes fundos.

Elogia o papel dos municípios por trabalharem “muito bem” no terreno. A cooperação com o poder local devia ser reforçada? De que forma?

Os municípios trabalham realmente muito bem no terreno na área do Envelhecimento Ativo e Saudável. As políticas nacionais de envelhecimento não chegam às pessoas sem uma articulação adequada entre as políticas nacionais, as instituições nacionais, os municípios, as freguesias e as restantes entidades dos seus ecossistemas locais. Esta transição implica que quem coordena as políticas nacionais ande no terreno, junto das pessoas, não esteja fechado em gabinetes em Lisboa ou no Porto, foi isto que se fez. Enquanto Coordenador Nacional do Plano de Envelhecimento passei muito tempo no terreno, a viajar entre municípios, junto das pessoas, o CCEA foi construído com os seus polos no terreno, a apoiar os municípios, atuando-se de forma descentralizada e levando as atividades até às pessoas. Até à extinção e desmantelamento do CCEA estava a funcionar, e o apoio aos municípios era real. Mais uma vez aqui tivemos um enorme retrocesso.

Acresce-se ainda que várias políticas nacionais foram desenhadas para que os fundos fossem disponibilizados aos municípios, permitindo a aplicação direta, como no Radar Social, nos contratos locais de desenvolvimento social, no envolvimento dos municípios na prevenção da saúde, entre outras áreas. Já tínhamos a solução no terreno, elogiada em Portugal e internacionalmente, vista como exemplo em vários países. E quando temos algo a funcionar bem, destruímos, acabamos com ela e mais ainda sem termos qualquer alternativa para apresentar.

Foi também Coordenador da Implementação da Recomendação Europeia dos Cuidados de Longa Duração e Representante Português dos Cuidados de Longa Duração na Comissão Europeia. Nessas áreas em particular, e por comparação com outras realidades europeias, onde é que Portugal está mais atrasado?

Tive a oportunidade de elaborar um relatório detalhado sobre quais as dificuldades nacionais na área dos cuidados de longa duração (cuidados continuados, paliativos, lares, apoios domiciliários, entre outros). Este relatório é público e identifica as debilidades do nosso sistema e quais as alterações que podem e devem ser efetuadas para melhorar a sua qualidade. Necessitamos de uma gestão única do sistema de cuidados, com aplicação e articulação a nível local, de acabar com as quintas e quintinhas que só servem os próprios e não as pessoas, de criar um sistema com um continuo de cuidados e com a possibilidade de transição entre cuidados de uma forma fácil.

Precisamos de ter um sistema de qualidade, avaliado externamente ao sistema, obrigatório e com foco na qualidade da prestação dos cuidados às pessoas, de cuidados multidisciplinares e que sejam adaptados a cada um em cada momento. Deixemos de ter um foco nas instituições e nas suas ofertas de serviços e passemos a ter um foco nas necessidades das pessoas e no apoio para essas necessidades. Precisamos de ter cuidados financiados com base na diferenciação dos cuidados prestados a cada um e de forma diferenciada de acordo com a qualidade. Em todas estas áreas temos alguns países melhores que nós, e outros com problemas como nós.

O pior é que era suposto termos implementado um Plano de Ação dos Cuidados de Longa Duração, de acordo com os princípios da recomendação europeia, e nada foi decidido pelo Governo em 2024, apesar de desde abril ter uma proposta na sua posse. Lamento que esta área não seja considerada prioritária por quem nos governa, pois para as pessoas que precisam de apoio para si ou para os seus familiares é uma prioridade constante.

E o inverso, acontece? Em que aspetos nas políticas de envelhecimento é que Portugal é encarado como um exemplo?

Portugal foi o primeiro país europeu a ter um Plano de Ação do Envelhecimento Ativo e Saudável aprovado e a ser implementado. O Plano foi considerado abrangente e muito bem estruturado, respeitando as melhores práticas internacionais, tanto que a UNECE solicitou a sua tradução em inglês, para servir de exemplo e ser o modelo para outros países. Na reunião de 2024, Portugal demonstrou que no âmbito das Nações Unidas e da Comissão Europeia estava uns passos à frente dos restantes países e a servir de modelo para todos eles. Com múltiplas atividades a serem implementadas e com uma transição do âmbito nacional para o âmbito municipal que ultrapassou as dificuldades que todos sentiram. Em termos dos cuidados de longa duração, a forma como foi definida a reforma dos cuidados para Portugal foi elogiada por todos, pois respondia às dificuldades do país e também às identificadas por outros países. No centro de tudo isto estava o Plano de Ação de Envelhecimento Ativo e Saudável e o CCEA. Plano esse que foi colocado recentemente em causa estando todas as suas atividades a serem reavaliadas e o CCEA extinto. Posso dizer que, em termos internacionais, tive vários contactos de estupefação, ninguém compreende estas decisões tomadas em Portugal.

Das medidas que pôs em andamento, quais serão continuadas e incluídas no novo plano?

Desconheço completamente. Só sei o que o Governo referiu publicamente que estão todas a ser reavaliadas. Infelizmente não tenho melhores notícias que estas, em especial para as pessoas que estavam ou iam usufruir delas e, que agora, não as têm durante algum tempo, ou nunca as terão disponíveis.

As pessoas doenças crónicas em Portugal têm piores resultados de saúde e uma experiência de cuidados abaixo da média da OCDE, revelou o PaRIS. O que pode e deve ser feito para melhorarmos?

Portugal é o país onde as pessoas têm maior taxa de dependência nas idades mais avançadas, não sendo surpreendente os resultados obtidos no PaRIS, em especial para quem anda constantemente a viajar pelo país, junto das pessoas.

Temos um sistema de cuidados de saúde muito centrado nos cuidados aos doentes agudos, nas urgências e nas descompensações das doenças, o que está completamente errado. Precisamos de ter uma atuação adequada na promoção da saúde e na prevenção da doença, com rastreios generalizados e atuação precoce, levando a mais cura e menos doenças crónicas. Temos de ser inteligentes a fazê-lo e usar a tecnologia neste âmbito, acabando com a iniquidade que temos no acesso entre a zona norte e as zonas do interior ou de Lisboa e do sul do país. Isto não só é possível, como estava a ser feito no âmbito do Plano de Ação do Envelhecimento, mais uma daquelas atividades que vai ficar por executar, pelo menos no tempo em que estava prevista. Estima-se que a prevenção utilizando as tecnologias leve a pelo menos uma redução de 20% na carga dos cuidados de saúde primários e hospitalares.

Acresce ainda que os estudos mostram que investindo 0,1% do PIB em prevenção da saúde leva a mais de 8% de aumento do PIB na década seguinte. Infelizmente, enquanto os decisores só se preocuparem com resultados imediatos não avançaremos nada nesta área. Outra forma de atuação é a descrita na melhoria dos cuidados de longa duração, com mais reabilitação multidisciplinar e manutenção das capacidades das pessoas. Estas atividades estão no Plano de Ação do Envelhecimento, estando em risco atualmente e necessitando de decisões políticas e priorização por parte do Governo.

Como profissional de saúde, que análise faz da avalanche de trocas de conselhos de administração das Unidades Locais de Saúde?

A mudança de uma administração hospitalar leva, sempre, a que exista um período de cerca de seis a nove meses de ausência de aplicação das medidas necessárias e adequadas por parte das instituições de saúde, em especial se as novas administrações não conhecerem bem as instituições e, pior ainda, se não conhecerem bem o funcionamento do SNS. Defendo que as administrações devem ser substituídas com base em projetos que impliquem uma nova forma de resolução dos problemas, levando a uma evolução do sistema, com aumento da capacidade de prestação dos cuidados às pessoas.

Com base nestes princípios, devo dizer que as mudanças deveriam ser justificadas e que os projetos que levaram à nomeação de uma nova equipa devem ser públicos e discutidos com toda a transparência. Só desta forma poderemos ter credibilidade nas administrações, conseguir motivar os profissionais de saúde e, todos em conjunto, prestar os melhores cuidados de saúde à população. Precisamos de líderes nas administrações das ULS com um projeto credível e executável, com objetivos a curto, médio e longo prazo, com transparência e sem medo de discutir os seus resultados e colocar o dedo nas feridas abertas na instituição e no sistema.

O Governo vai regressar ao modelo de Parcerias Público Privadas (PPP) na saúde, em cinco hospitais. Parece-lhe um caminho acertado?

O modelo de PPP na saúde só funciona se tiver uma contratualização forte e muito bem regulada por parte do Ministério da Saúde. É possível, mas com condições: garantindo que não existe a transferência dos doentes mais complexos para as que se mantêm públicas, ou, caso isso aconteça, que as PPP suportem 100% dos custos nos tratamentos mais complexos e diferenciados. As PPP habitualmente transferem os doentes complexos para os hospitais públicos porque são caros e não suportam custos –  é injusto e incorreto para utentes e para comparar modelos de gestão.

Ao mesmo tempo, devem ser dadas as mesmas condições de gestão aos administradores das ULS públicas, para não ficarem sem profissionais de saúde, que no passado conseguiam ser melhor pagos unicamente nas PPP.  O risco de impacto negativo no SNS existe, mas pode ser muito minimizado, com estas medidas. Aplicando estes princípios, o importante é que as pessoas que residem na área abrangida por uma ULS tenham o acesso gratuito aos cuidados de saúde de que necessitam.

Recentemente, o antigo DGS Constantino Sakellarides criticou o Plano de Emergência e Transformação na Saúde deste Governo por não ter uma visão de futuro para o SNS por ser uma “mera descrição de intenções”. Concorda?

Quando estamos a definir a aplicar um plano para atuar na saúde precisamos de identificar bem quais são as medidas que são de emergência e que pretendem dar uma resposta imediata ou a curto prazo às pessoas, para isso devem ser definidas identificando as atividades específicas, com um cronograma, com identificação e envolvimento das entidades que as aplicam e com os indicadores para as avaliar. Outra situação é falarmos de um plano que atue estruturalmente no SNS, o que implica uma programação completamente diferente e com impactos a médio e longo prazo. Também aqui com envolvimento e devida priorização das atividades.

Conhecendo muito bem o SNS, posso dizer que há medidas imediatas que podem ser aplicadas, com utilização de toda a capacidade que existe no SNS, promovendo uma maior resposta interna, com a motivação adequada dos profissionais, com foco em objetivos e a resolver os problemas das pessoas. É possível reduzir de forma muito mais acentuada as desigualdades de acesso que temos no nosso país, resolver listas de espera de consultas e outros procedimentos técnicos especializados.

Em termos estruturais, é essencial apostar na prevenção, nos cuidados pós hospitalares e na utilização inteligente das tecnologias. Nos cuidados de saúde primários e hospitalares existe muito desperdício de capacidades dos profissionais, por não serem tomadas as medidas necessárias que retirem cargas burocráticas dos profissionais mais diferenciados, bem como existe necessidade de maior trabalho em equipa e com foco nas necessidades de cada pessoa. Investir no SNS é isto mesmo. Muito pode e necessita de ser efetuado, com os profissionais e para responder às necessidades das pessoas. É possível fazer muito melhor pelo SNS.

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