Os jornalistas portugueses com acreditação permanente no Vaticano consideram que o mundo católico e não católico espera que os cardeais eleitores escolham um seguidor da gestão de Francisco, na abertura às bases e ao mundo.
Os vaticanistas Aura Miguel (Rádio Renascença), Octávio Carmo (Ecclesia) e Rui Saraiva (Vatican News) comentaram à Lusa os desafios destes dias que antecedem o Conclave que irá escolher o sucessor de Francisco, que iniciou processos de abertura da Igreja ao mundo, através da auscultação das bases e do denominado processo sinodal.
Aura Miguel reconheceu a “fecundidade deste Pontificado”, que “deixou uma Igreja diferente daquela em que [Francisco] foi eleito, mas isso também aconteceu com os anteriores” e falou sobre a fase em que a hierarquia está, mergulhada numa espécie de “totopapa”.
“Este é o terceiro conclave que eu acompanho e é muito interessante, é uma fase um bocado estranha porque não há Papa e há uma espécie de lóbis ou ‘wishfulthinking’” sobre quem deve ser o sucessor.
“Por exemplo, os italianos todos os dias falam nos três candidatos [Pietro Parolin, Matteo Zuppi e Pierbattista] e estão enervados porque, pela primeira vez estão em franca minoria” e podem “perder este sonho de voltarem a ter um Papa italiano”, disse Aura Miguel.
Também por isso é que a jornalista da Rádio Renascença considera que Francisco criou um colégio tão grande (135 eleitores).
“Pela primeira vez este conclave é muito mais internacional, é multifacetado, tem pastores de todos os continentes, muitos deles das periferias, se calhar muitos vieram uma ou duas vezes a Roma, só para o momento de receber o barrete cardinalício”, explicou.
Por isso é que os cardeais têm organizado congregações gerais e agendaram o início do conclave para dia 07, mais de duas semanas depois da morte de Francisco. “Isso é um bom sinal, porque é bom que haja uma certa serenidade e discernimento”, explicou.
“Eles estão tão decididos a conhecerem-se melhor, portanto, que pediram que usassem o nome pendurado ao peito ou numa placa para saberem ‘quem é quem’”, disse.
Nas reuniões, “aproveitam sempre para mandar alguma ideia para se darem assim a conhecer”, naquilo que alguns analistas classificam como uma “fase clara de campanha eleitoral”.
“O momento mais difícil como jornalista do Vaticano é esta semana e olhar fixamente para a chaminé para ver que fumo é que sai”, reconheceu Aura Miguel, embora considerando que este período prévio “é muito complexo”.
“Se um cardeal vai a Papa só porque quer ser Papa, sinceramente tenho pena, porque eu acho que é preciso outra dimensão maior para largar tudo e viver o martírio” de ser o líder da Igreja Católica.
Por seu turno, Octávio Carmo considera que este é o momento em que as sensibilidades internas procuram afirmar o seu espaço, mas o contexto mudou.
Após a morte do Papa argentino, Roma recebeu pessoas que “estariam distantes da Igreja e que faziam questão de afirmar explicitamente que estavam ali porque era Francisco”, afirmou o jornalista da Ecclesia.
“Houve uma grande manifestação pública de pessoas anónimas que, com a sua presença no Vaticano, nas ruas de Roma” exigem que a sua voz “não possa ser ignorada por quem decide”.
“Aquilo que se procura da Igreja para o futuro da Igreja, do ponto de vista dos anónimos que não têm poder de voto, passa pela continuidade com o ministério do Papa Francisco”, afirmou Octávio Carmo.
Caso seja escolhido “alguém que vá numa direção diametralmente oposta” ao pontificado que agora termina, “essas vozes não vão olhar para essa situação de forma passiva” e “tomarão a palavra para manifestar a necessidade de que continuem a ser ouvidas”.
Por isso, este conclave é diferente dos anteriores. “Todas as nossas categorias mentais estão desatualizadas num ponto porque nunca tivemos um conclave como este”, disse, recordando que há cardeais com proveniência de 71 países diferentes e há 12 países que têm, pela primeira vez, um eleitor.
Além disso, “há uma diversidade bastante significativa de formação académica e de formação teológica, de sensibilidade, de experiência do que é o catolicismo, porque muitos vêm de países em que o catolicismo é uma minoria e não é uma estrutura de poder”, algo “muito diferente daquilo que sucede na Europa Ocidental”.
Por isso, Octávio Carmo alertou que poderá não se cumprir a “ideia consolidada, cristalizada, do que deve ser um Papa e do que deve ser a Igreja” aos olhos dos europeus.
“Esta presença de gente de pessoas de cardeais vindos de realidades minoritárias, de experiência de maior dificuldade humana, social e económica, de grande trabalho de diálogo entre religiões, faz com que existem novas dimensões”, explicou.
A partir de quarta-feira, o Conclave vai mostrar “que voz real é que estas pessoas têm”, trazendo experiências novas para a Cúria.
Além disso, existem os polos internos na Igreja, que defendem o reforço da abertura iniciada por Francisco e o regresso a um papel mais tradicionalista.
A isso se soma “o grande peso das questões geopolíticas atuais e qual o papel que o líder da Igreja Católica deve ter nesse plano internacional, como figura de intervenção e de conciliação”.
“Não acho que haja uma maioria conservadora dentro do Colégio de eleitores, escolhido sobretudo por Francisco”, mas “acho que é possível” um número de 45 votos que impeça uma eleição pontifícia e que possa “obrigar a um olhar” que congregue “estas várias sensibilidades sem criar ruturas”.
O consenso “foi uma preocupação muito séria de Francisco no sínodo” e “houve momentos em que as decisões foram mais ponderadas e mais pausadas, porque, se fossem tomadas à velocidade que alguns dos setores chamados mais progressistas queriam, isso teria provocado fraturas internas”.
Sobre o colégio, “há várias lealdades dentro da Igreja Católica” e “várias ligações que ultrapassam fronteiras geográficas”, disse Octávio Carmo, dando o exemplo dos salesianos que têm cinco cardeais.
“Há correntes teológicas, há faculdades e universidades nas quais estudaram, há experiências missionárias que partilharam, embora muitas vezes não no mesmo país mas na mesma corrente pensamento, há visões sobre o diálogo inter-religioso e sobre as migrações que ultrapassam fronteiras”, salientou o vaticanista.
O “Colégio Cardinalício é muito menos europeu, não só pelo facto de ter menos pessoas nascidas na Europa, mas porque é composto por pessoas que, na sua formação intelectual e na sua experiência de vida, fazem muito pouca referência ao que é a realidade europeia”, explica o jornalista da Ecclesia.
Do ponto de vista geográfico, o bloco da América Latina, através das experiências sinodais e de assembleias eclesiais, parece ser o que tem “mais proximidade nas relações, mas não quer dizer que entre eles também não haja sensibilidades várias”, salientou ainda.
Por seu turno, Rui Saraiva recordou que Francisco começou o seu pontificado “com uma força incrível, que provavelmente não estaria nos planos de quem nele votou”.
A ida a Lampedusa, ver os imigrantes, foi “definidora de todo o Pontificado, de um Papa que quis caminhar com o povo, curvando-se perante esse mesmo povo de descartados”, recordou o jornalista da Vatican News.
Também a questão dos abusos mostrou os problemas estruturais na Igreja que Francisco quis mudar e o processo sinodal, em 2021, foi uma “resposta aos problemas, dando voz a todos, em igualdade”, afirmou o também coordenador da Rede Sinodal em Portugal.
“O problema dos abusos é sobretudo um problema do clericalismo”, pelo que é legítimo questionar se o “modelo de igreja para o futuro é uma igreja clerical ou uma igreja sinodal”, disse.
Por outro lado, no próximo pontificado, a participação das mulheres e a proximidade aos pobres serão temas importantes.
“Mais do que se definir uma pessoa, é necessário definir um perfil e antes desse perfil, definir efetivamente os temas e os assuntos mais importantes” sobre os quais deverá versar o próximo pontificado, concluiu Rui Saraiva.
Tagus Park – Edifício Tecnologia 4.1
Avenida Professor Doutor Cavaco Silva, nº 71 a 74
2740-122 – Porto Salvo, Portugal
online@medianove.com