Nos anos 90, a responsabilidade social empresarial era quase sinónimo de filantropia, ou de boa gestão de relações públicas, de políticas de qualidade e ambiente. Depois passou por uma fase de projetos pontuais, motivados por reputação ou relacionados com regulamentação ambiental. O aparecimento gradual dos relatórios de sustentabilidade obrigou a estruturar e aumentou não apenas a transparência, mas também alimentou uma reflexão mais estratégica e holística dos impactos das empresas. Em entrevista ao Jornal Económico (JE), Nathalie Ballan, administradora da consultora S317 Consulting, considera que as empresas precisam de sinais estáveis, incentivos certos e coerência nas políticas públicas.
Quando fundou a Sair da Casca, em 1994, a sustentabilidade ainda não era uma prioridade empresarial. O que a motivou a seguir esse caminho visionário?
A motivação para criar a Sair da Casca teve duas origens: a minha experiência na colaboração com ONG e organizações da sociedade civil desencadeou a vontade de desenvolver uma atividade empresarial com forte propósito e utilidade social, sobretudo, no contributo para a sensibilização e educação para temas sociais e ambientais.
A segunda inspiração aparece em 1992, na altura da primeira Cimeira da Terra, no Rio de Janeiro, em que as empresas estiveram bastante ausentes ou sub-representadas. Pelo meu percurso no mundo empresarial tinha a convicção do papel incontornável do setor económico nas questões societais e, nomeadamente, na proteção do ambiente.
Ao longo do tempo, a sustentabilidade tornou-se o enquadramento natural para esse propósito inicial, com a premissa de que “a longo prazo, não pode haver empresas bem-sucedidas em sociedades que falham”, uma visão orientada para o risco que evoluiu muito, sendo hoje em dia conjugada com a convicção das oportunidades fomentadas pela necessidade da transformação ecológica e social.
Como foi o processo de sensibilização das empresas portuguesas nos primeiros anos? Que resistências encontrou e como as superou?
Não foi assim tão difícil convencer os primeiros clientes: foram os mais pioneiros, o difícil foi chegar aos seguintes. Várias empresas portuguesas já consideravam, nomeadamente, os temas da eficiência de recursos. E sendo uma grande parte delas empresas de raiz familiar, existia igualmente a noção do legado e da visão de longo prazo. As multinacionais também começavam a olhar para as relações com stakeholders e a licença para operar.
É verdade que era mais fácil convencer os departamentos de comunicação do que os financeiros. O business case não era óbvio. Ainda que, para os nossos clientes, evoluir a gestão da empresa para garantir maior eficiência, compliance (muitas leis de proteção do ambiente nasceram nos anos 90/2000), obtenção de certificações e a modernização da gestão dos seus recursos humanos fosse uma prioridade, nunca, ou raramente, se questionava o produto, serviço e modelo de negócio.
Muitas empresas viam estas questões como algo acessório, fora da sua missão principal. A pergunta recorrente era: “e o que é isso da sustentabilidade?” O nosso trabalho foi, durante anos, um convite à reflexão sobre os impactos positivos e negativos das empresas, da globalização, dos novos desafios societais. Nesta fase de quase evangelização era essencial alinhar propósito com estratégia, mostrar que fazer diferente é também uma vantagem competitiva. Tivemos a sorte de colaborar muito cedo com o BCSD Portugal e de participar nos roadshows pelo país para implementar os primeiros workshops sobre o desenvolvimento sustentável e o papel das empresas.
Na sua visão, como evoluiu o conceito de sustentabilidade no mundo empresarial desde os anos 90 até hoje?
A evolução foi profunda. Nos anos 90, a responsabilidade social empresarial era quase sinónimo de filantropia, ou de boa gestão de relações públicas, de políticas de qualidade e ambiente. Depois passou por uma fase de projetos pontuais, motivados por reputação ou relacionados com regulamentação ambiental.
O aparecimento gradual dos relatórios de sustentabilidade obrigou a estruturar e aumentou não apenas a transparência, mas também alimentou uma reflexão mais estratégica e holística dos impactos das empresas. Foi a segunda época, a da gestão sustentável, entre 1995 e 2010. Cada fase integrou as práticas de gestão correntes, a sustentabilidade é uma jornada, cada fase enriquece a anterior.
Terceira etapa: aos poucos, as empresas olharam para a inovação e o negócio – a era da oferta responsável, do “sustainable entrepreneurship”, sensivelmente a partir de 2010/2015- e, mais recentemente, houve uma crescente integração nas decisões estratégicas, uma conjugação de inovação e gestão de riscos, que responde à pressão regulatória e ao escrutínio dos investidores, do setor financeiro e consumidores. E não é apenas uma questão de pressão: os incentivos financeiros e a construção de históricos que demostram a correlação entre a boa performance e a sustentabilidade permitiram, finalmente, a integração nas estratégias empresariais.
Que erros mais comuns ainda identifica nas abordagens empresariais à sustentabilidade?
Tratar a sustentabilidade como uma área isolada, em vez de uma visão transversal à gestão e, sobretudo, à estratégia de negócio. Ou trabalhar em silo, quando a sustentabilidade é uma questão de interdependência e trade off imperfeitos.
Outro erro frequente passa por ser demasiadamente otimista – embora seja, ao mesmo tempo, uma grande alavanca de inovação, de empreendedorismo, inerente ao espírito empresarial- e não considerar, com profundidade, os desafios atuais de adaptação às alterações climáticas, continuidade dos negócios e resiliência.
Investir mais no reporting do que no desenho de planos de ação verdadeiramente transformadores e com impactos positivos para as próprias empresas. Esquecer a importância de formar as equipas e ganhar a adesão dos colaboradores, apesar de se ter registado recentemente um grande esforço, neste aspeto.
Por último, destacaria o erro de não interiorizar a mudança cultural necessária. É fundamental estimular o envolvimento e a colaboração de todos os elementos da empresa.
Em 2024, a Sair da Casca uniu-se à S317 Consulting. Que impacto espera que esta fusão tenha no panorama da sustentabilidade em Portugal?
Este movimento marca uma nova etapa para nós, na altura em que comemorámos os nossos 30 anos. A união com a S317 Consulting dá origem ao maior grupo português de consultoria em sustentabilidade, com capacidade para atuar desde a definição estratégica até à implementação técnica, em áreas como estratégia de sustentabilidade, água e saneamento, clima, circularidade, energia ou impacto social.
É uma oportunidade ímpar de crescimento, de ampliar competências da equipa e de internacionalização. Para os nossos clientes vejo também a possibilidade de responder de forma completa e personalizada, nos diferentes setores e em função do grau de maturidade da empresa, com uma abordagem integrada e soluções à medida dos desafios de transição que enfrentam.
O que falta ainda fazer para acelerar a transição ecológica em Portugal, sobretudo ao nível das empresas?
Falta uma visão mais clara e ambiciosa do que queremos enquanto país. As empresas precisam de sinais estáveis, incentivos certos e coerência nas políticas públicas. É preciso rever modelos de negócio, acelerar a inovação e formar lideranças preparadas para gerir esta transição. A mudança exige investimento, colaboração e uma nova geração de métricas que tomam em consideração os riscos financeiros para as empresas, as suas oportunidades e os seus impactos. Este é o espírito da regulamentação europeia sobre o reporting de sustentabilidade.
Quais as principais tendências ou desafios que antecipa na sustentabilidade empresarial nos próximos cinco a 10 anos?
Os desafios para as empresas são os desafios atuais do mundo: instabilidade do contexto geopolítico, impactos da desinformação, polarização da sociedade, consequências das catástrofes naturais, abastecimento das cadeias de valor, que já constituem os grandes desafios do presente. A longo prazo, acho que ainda se vai tornar mais óbvia a interdependência dos temas económicos, sociais e ambientais. As grandes reflexões questionam como conciliar transição energética e justiça social, necessidade de produzir energia, responder às nossas necessidades ou pelos menos hábitos de consumo (será que devem mudar?), como conjugar necessidades de recrutamento e questões demográficas, entre outros. No final do dia, todos estes fatores refletem uma questão maior: como garantir a continuidade dos negócios?
Responder a estas questões vai exigir bastante coragem, uma capacidade de ler o mundo, de antecipar cenários e soluções, de navegar entre nuances de criatividade e inovação. E no final teremos de assumir escolhas imperfeitas.
Temas de reporte, de monitorização de impactos, das plataformas de dados, de muitos assuntos que ocupam hoje o espaço mediático serão vistos como comodities.
Afinal, vamos precisar de muita inteligência para enfrentar os desafios do futuro, e não estou a falar da artificial.
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