O Programa do Governo, que começa esta terça-feira a ser discutido, tendo como garantida a sua aprovação, tem “boas ideias” no capítulo da Saúde, mas “o que importa é a sua implementação”, onde geralmente “emperram” todas as “boas intenções” dos executivos, afirma ao Jornal Económico (JE) o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH).
Observando tratar-se de uma continuação e, em alguns casos, de uma repetição de medidas do anterior governo – o que era “expectável” -, Xavier Barreto assinala que “devolver a autonomia aos hospitais, fazer investimento, valorizar recursos humanos, construir hospitais (…)” é positivo. “Onde é que isto emperra sempre? Na execução e implementação”, lamenta, assinalando que a maior parte das ideias plasmadas no programa do Governo “tem de ser mais detalhada”.
“Dizer ‘vamos valorizar os recursos humanos’ quer dizer exatamente o quê? Fazer negociações e novos acordos coletivos de trabalho com outro tipo de grelha salarial? O que é que estão a dizer concretamente? Não sabemos”, exemplifica o presidente da APAH.
“Os investimentos em hospitais novos também são um bom exemplo. O novo hospital de Todos os Santos está nos orçamentos do Estado há 20 ou 30 anos, mas não sai do papel, como o Hospital do Seixal, o de Barcelos e uma série de outros”, acrescenta.
Outra medida que Xavier Barreto destaca como positiva é a ideia de concentrar urgências em algumas especialidades, como na obstetrícia na região de Lisboa e Vale do Tejo, onde os recursos humanos são mais escassos. Não se tratando de um conceito novo – no Porto já se concentrou atendimento noturno e diurno – “a ideia de levar isto para Lisboa é positiva”, embora “difícil, porque esbarra muitas vezes com o interesse das autarquias”.
Por outro lado, o que não está no programa do Governo e deveria estar, no entender do presidente da APAH, são ideias “disruptivas” relacionadas com o percurso dos doentes e a gestão dos recursos.
“Temos defendido, por exemplo, que muitos doentes crónicos deviam passar a ser acompanhados em consultas de enfermagem, libertando médicos para fazerem primeiras consultas, que é uma coisa óbvia que já está a acontecer em muitos países”, diz Xavier Barreto, argumentando que o recurso mais escasso no Serviço Nacional de Saúde (SNS) são os profissionais, particularmente médicos em algumas especialidades.
Ora, isso “devia levar-nos a fazer uma reflexão sobre como alocamos os recursos e que atividades é que esses profissionais estão a fazer”, defende. “Se temos uma escassez de médicos, e se precisamos deles para fazer novas consultas, novos diagnósticos e iniciar novos tratamentos, então os doentes crónicos e estáveis, sem necessidade de alteração de fármacos e sem necessidade de exames, podem ser acompanhados por enfermeiros”, acrescenta. Da mesma maneira que podemos “ter mais enfermeiros a fazer partos”.
O responsável reconhece que este é um tema “difícil” que “esbarra com corporações” e com interesses muitas vezes de grupos profissionais, mas é uma questão à qual “não podemos fugir”.
“Está a acontecer em muitos países. Mas o programa não tem isso, não tem esta ideia de alterar a alocação dos recursos, alterar a forma como prestamos cuidados, colocar enfermeiros, fisioterapeutas e farmacêuticos a fazer novas tarefas, libertando os médicos para fazer novas consultas ou cirurgias. São ideias mais disruptivas, mas que fazem a diferença”, reforça.
Este repensar da alocação dos recursos humanos no SNS foi proposto pela APAH ao Governo na legislatura anterior, aquando da discussão do plano de emergência há quase um ano, e que agora Xavier Barreto lamenta que não estejam nos planos do segundo executivo de Luís Montenegro.
Quanto à alteração da Lei de Bases da Saúde, que o Governo plasmou no programa e que já mereceu críticas por parte do PS por não ter sido um assunto abordado durante a campanha eleitoral, Xavier Barreto não faz nenhuma avaliação de caráter político, mas diz ter “alguma dificuldade em perceber o que significa” na prática a intenção que, no papel, tal como outras medidas, é “abstrata” e “nada concreta”.
“O que é que querem alterar? Qual é o articulado, qual é o tema? Não faço ideia. Enquanto não souber… Pode ser uma questão de detalhe que não tem importância nenhuma ou pode ser uma coisa mais profunda. Não sei.”
Na expectativa para ver o que sairá do papel para o terreno, o presidente dos Administradores Hospitalares sintetiza o programa do Governo da seguinte forma: “O programa é bom, tem boas medidas, mas o que importa é a sua implementação, porque programas bons com boas medidas sempre tivemos. O que interessa é o que vai para o terreno: vai concretizar ou não o investimento? Vão-se fazer ou não os hospitais? Vão-se concentrar as urgências ou não?”, rematando por fim: “Este tipo de boas intenções sempre existiu nos programas dos governos, mas depois não se concretizam. É preciso ver se o Governo tem esse impulso reformista, vamos ver.”
Lei de Bases e outras intenções
Rever a Lei de Bases da Saúde e aprovar uma nova Lei de Meios para o SNS é uma das metas da AD, que propõe “reforçar o sistema de saúde português, assumindo uma transformação nos seus pilares fundamentais: organização dos cuidados, recursos humanos e financiamento”.
“Neste contexto, a revisão da Lei de Bases da Saúde e a aprovação de uma Lei de Meios para o SNS são fundamentais para garantir a sua sustentabilidade”, limita-se a fundamentar o Governo no seu programa.
A lei que está atualmente em vigor foi aprovada em 2019, o que levou à revisão do Estatuto do SNS publicado em 2022, clarificando o papel e a relação entre os vários intervenientes do sistema de saúde em Portugal e criando um novo órgão, a direção executiva do SNS, ainda com Marta Temido (PS) como ministra.
O diploma de 2019 reafirmou a centralidade do SNS, “pautado pelos princípios da universalidade, generalidade, tendencial gratuitidade e dotado de estatuto próprio”.
Outra das medidas previstas no atual programa do Governo é a reestruturação da “gestão do SNS, através da sua reorganização assente em Sistemas Locais de Saúde com a participação de entidades públicas, privadas e sociais”.
O executivo pretende ainda lançar novas parcerias público-privadas (PPP) para as unidades de saúde que “reúnam critérios para garantir uma melhor resposta assistencial” num modelo de gestão privada de serviços públicos no SNS.
Para aumentar a eficiência no setor da saúde, o documento preconiza a convergência para um modelo de maior autonomia dos hospitais públicos, incluindo na gestão de recursos humanos e planos de investimento, explorando a flexibilização da contratação pública.
Outro dos objetivos é transformar os Serviços Partilhados dos Ministérios da Saúde (SPMS) na Agência Nacional Digital na Saúde, assim como criar um plano de motivação dos profissionais.
Para tal, está previsto abordar com as ordens profissionais e as associações representativas a retenção de quadros médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde no sistema de saúde português.
O Governo compromete-se a criar uma Unidade de Combate à Fraude no SNS, “assumindo assim a necessidade de garantir que os dinheiros públicos não são utilizados indevidamente, com o prejuízo de todos os cidadãos”.
O ministério tutelado por Ana Paula Martins propõe-se também a definir, nas zonas mais carenciadas do país, um novo conjunto de incentivos para atração e fixação de profissionais de saúde, em articulação com as autarquias locais.
Para esta nova legislatura, o Governo promete negociar uma revisão do estatuto da carreira médica, assim como implementar o regime jurídico do internato da especialidade de enfermagem.
No documento, o executivo propõe-se também a “concluir a implementação do Plano de Emergência e Transformação da Saúde 2024-2029, com destaque para o novo Sistema Nacional de Acesso a Consulta e Cirurgia (SINACC) e acesso ao Médico de Família e Saúde Familiar”.
Tagus Park – Edifício Tecnologia 4.1
Avenida Professor Doutor Cavaco Silva, nº 71 a 74
2740-122 – Porto Salvo, Portugal
online@medianove.com