O único Presidente da República de França que deixou voluntariamente o Palácio do Eliseu antes de terminar o mandato foi o fundador da atual Quinta República, Charles de Gaulle, que renunciou depois de derrotado no referendo sobre a reforma do Senado e a regionalização, em abril de 1969. Passaram 56 anos e o risco de um novo abandono nunca terá sido tão real como agora.
A França está, mais uma vez, a caminhar num cabo estreito, esticado a muitos metros do solo, sobre uma realidade política e social em efervescência, num número de equilibrismo extremo protagonizado por Emmanuel Macron.
O primeiro-ministro, François Bayrou, apresentou uma proposta de Orçamento do Estado draconiano para o próximo ano para tentar pôr em ordem as contas públicas. Quer acabar com o feriado de Páscoa e, também, com o 8 de maio, o Dia da Vitória, o que foi entendido como um ataque à identidade social e histórica de França. Propõe um “ano branco”, um congelamento da atualização dos benefícios e escalões fiscais aos níveis deste ano, além de corte em despesas de saúde, nomeadamente aumentando a percentagem dos preços dos medicamentos que os franceses pagam. Reduz serviços e benefícios fiscais. No final, quer poupar 44 mil milhões de euros.
Estas propostas provocaram uma tempestade social, com manifestações nas ruas, e política, com promessas de chumbo da proposta.
“Há muito tempo que França é um caldeirão a ferver. Desde meados de 2024, e depois das legislativas antecipadas, que a instabilidade, uma crescente fragmentação partidária e sucessivos governos marcam o panorama político da segunda maior economia da União Europeia”, diz ao Jornal Económico Paulo Sande, professor na Universidade Católica Portuguesa e especialista em temas europeus. “Com uma Assembleia Nacional dividida entre a esquerda, o centro-direita e a extrema-direita, e depois da queda de Michel Barnier em dezembro, a sobrevivência do governo de François Bayrou parece igualmente estar por um fio”, acrescenta.
Bayrou deverá cair a 8 de setembro, quando apresentar uma moção de confiança, antes da proposta de orçamento ser discutida. Reuniu-se com todos os partidos políticos, mas sem sucesso. A França Insubmissa, o Partido Comunista e os Ecologistas, e até os socialistas, à esquerda, e a União Nacional, à direita, anunciaram que votarão contra. Lutará até ao fim, como prometeu. Seria um golpe de teatro se continuasse em funções.
O próprio Emmanuel Macron já começou a trabalhar no dia seguinte à saída de Bayrou. Esta semana juntou o ainda primeiro-ministro e os líderes dos partidos que suportam o governo: Gabriel Attal, do seu Renaissance, Edouard Philippe, do Horizons, e Bruno Retailleau, dos Les Républicains. Que formem um bloco coeso e que pensem numa base mais alargada, que inclua os socialistas, ressuscitados para a política nas últimas eleições. Os Republicanos já recusaram. “Não podemos ter um acordo governamental com o PS”, acrescentou o presidente do Senado, Gérard Larcher, nas colunas do jornal “Le Parisien”.
Do outro lado, o Partido Socialista veria com bons olhos voltar a nomear ministros, mas tem condições e o orçamento não será, nem por sombras, o de Bayrou.
No dia 9 de setembro, Macron será o alvo prioritário das oposições de esquerda e de direita. A exigência da sua demissão tem vindo a ganhar volume. “As consequências da dissolução surpresa da Assembleia Nacional, que decidiu em 2024, na sequência das eleições europeias, sentem-se ainda e ameaçam acabar mais cedo com o seu mandato”, diz Sande.
Três cenários perigosos
Chegados aqui, mostram-se três cenários para lidar com a crise do governo, “nenhum dos quais promissor”, diz Paulo Sande. Primeiro, a nomeação de um novo primeiro-ministro, o terceiro num ano. “Num parlamento dividido em três blocos irredutíveis e quase inconciliáveis, a esperança de vida de um novo governo seria certamente muito reduzida”, refere. Em segundo lugar, a dissolução da Assembleia Nacional, o que já é possível passado um ano sobre as últimas eleições legislativas, em julho de 2024. “Novas eleições e o futuro dependente do que decidirem os (fortemente descontentes) eleitores franceses”, aponta Sande, que considera este o mais provável.
O terceiro cenário é o da demissão de Emmanuel Macron, pedida pelos líderes da União Nacional, Jordan Bardella, e da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon.
“Macron tem insistido que irá continuar o seu mandato até ao final, mas acho muito difícil que consiga tal coisa tendo em contra a geometria parlamentar adversa”, diz Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Lusíada. “Arrastar o mandato presidencial por nomeações sucessivas seria o pior cenário, que apenas galvanizaria a extrema-direita e a extrema-esquerda francesa. Um governo tecnocrata seria improvável, porque ficaria à mercê da volatilidade parlamentar e seria difícil encontrar alguém da sociedade civil que aceitasse ser esmagado pela dinâmica política francesa”, acrescenta.
Mesmo assim, considera mais provável que o Presidente francês tente mais um nome e que, falhada a sua confirmação parlamentar, então sim, haveria eleições antecipadas.
“A queda do governo de Bayrou obrigará Macron a agir com rapidez. A questão é saber para quê. Arriscará um novo governo sob a sua égide, arriscará dissolver a Assembleia Nacional sem que seja claro o que de novas eleições possa vir a emergir?”, questiona Sande.
Risco europeu
O problema é que esta questão da governabilidade gaulesa e as consequências do número de equilibrismo não se confinam às fronteiras francesas. Extravasam-nas para a União Europeia, como acontece com a pressão sobre as taxas de juro da dívida soberana, que alastrou aos vizinhos (ver texto nestas páginas). Os investidores franzem o sobrolho.
“A França, e em particular Emmanuel Macron, têm sido dos principais protagonistas da política europeia na frente externa e na defesa. Uma Europa crescentemente cacofónica num mundo em efervescência, a falar a demasiadas vozes, pouco coesa, cada vez mais fraqueza e menos potência, precisa como nunca dos seus baluartes – a começar pelos dois principais países da União Europeia, Alemanha e França”, afirma Paulo Sande.
“A crise francesa, seja qual for a resposta no curto prazo – ainda mais com a crise política inevitável – arrastará a Europa”, avisa.
A primeira afetada por uma França em crise política, virada para dentro, será a política externa comum, com danos colaterais. “A primeira vítima parece-me evidente: Ucrânia”, defende Tiago André Lopes. “O Presidente Macron é um dos líderes mais ativos na questão ucraniana e o facto de ser obrigado a focar-se na política doméstica acabará por fragilizar a Coligação dos Dispostos”, explica. “A segunda vítima será o sistema partidário na Europa, porque a implosão de mais um governo poderá reenergizar os partidos populistas e os partidos extremistas em toda a Europa”, acrescenta. “A terceira vítima poderão ser os vizinhos Países Baixos, que terão eleições este ano e que poderão sofrer com a onda de choque. Não é certo que impacte diretamente o sistema eleitoral moldavo, mas pode galvanizar os partidos pró-russos na reta final da campanha para as legislativas”, projeta Tiago André Lopes.
Todos os olhares europeus vão convergir para Paris, no dia 8, e ali se fixarão. Demitindo-se, no final desta novela, se forem esgotadas as alternativas, Emmanuel Macron não repetirá Charles de Gaulle, completá-lo-á. Se este inaugurou a Quinta República, sendo um dos principais artífices da nova constituição, de 1959, Macron arrisca pôr-lhe um ponto final.
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