O Tribunal da Relação, numa decisão a que o Jornal Económico teve acesso, recusou levantar o sigilo ao “Relatório da Comissão de Avaliação das Decisões e atuação do Banco de Portugal na Supervisão do BES”, elaborado por uma equipa liderada por João Costa Pinto, com a ajuda da consultora Boston Consulting Group, e que avaliou a atuação do então Governador Carlos Costa e do Banco de Portugal na resolução do BES.
Ricardo Salgado e Rui Silveira pretendiam que o documento servisse de prova de qualificação da insolvência como culposa. Para os ex-gestores do banco da família Espírito Santo a verdadeira causa do desaparecimento do BES foi a atuação ruinosa do Banco de Portugal, “nomeadamente na aplicação das medidas de ring-fencing que determinaram a asfixia do GES, por não serem adequadas ao caso concreto, por ter sido ignorada a partilha da marca Espírito Santo entre o ramo financeiro e não financeiro, impondo o pagamento de toda a dívida em 27 dias, o que acabaria por levar ao colapso do GES e contaminar o BES, do que é exemplo a desastrosa venda da Tranquilidade, avaliada em 700 milhões de euro e vendida por 200 milhões de euros”.
Ricardo Salgado e Rui Silveira consideravam o ‘Relatório Costa Pinto’ “absolutamente essencial para boa decisão da presente causa”.
O acórdão do Tribunal da Relação surge depois do Tribunal do Comércio de Lisboa confirmar que o “Relatório da Comissão de Avaliação das Decisões e atuação do Banco de Portugal na Supervisão do BES está sujeito ao dever de sigilo bancário a que está legalmente vinculado”. O despacho do Tribunal do Comércio decidiu que “o eventual levantamento do dever de segredo, que permitirá a divulgação deste documento, deverá ser ordenado pelo Tribunal da Relação de Lisboa”.
O Tribunal da Relação foi assim chamado a decidir se o relatório poderia ser tornado público, mas concluiu que deve permanecer em sigilo porque os motivos invocados para levantar esse sigilo não são aplicáveis. Assim julgou “improcedente” o pedido.
Porque recusou o juiz da Relação levantar o sigilo ao relatório interno do Banco de Portugal à sua atuação na resolução do BES?
O Tribunal da Relação foi chamado a determinar “se prevalece o direito à prova ou as razões que justificam a invocação do sigilo, sendo que tal ponderação se rege necessariamente pelo princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade”, explica o juiz.
“O tribunal superior, ao realizar o juízo, ditará qual o interesse que, em concreto, irá prevalecer”, diz o acórdão.
“O presente incidente de levantamento de sigilo bancário é extraído do apenso de qualificação de insolvência de um processo de liquidação de instituição de crédito”, contextualiza o juiz da Relação.
O documento refere em relação aos argumentos de Ricardo Salgado e Rui Silveira, que “os factos são factos assumidos pela Comissão Liquidatária e que não parecem estar em causa – as decisões e atitudes do BdP, a maior parte deles públicas. O que se pretende extrair deste relatório não é matéria de facto, é um juízo de censura que corrobore o próprio juízo de censura efetuado no articulado”.
“Aqui chegados importa frisar que, na essência, a pretendida junção não visa provar matéria de facto. Visa corroborar uma conclusão, comum a ambos os requerentes/oponentes, que convença o tribunal de que, ao tomar as decisões que tomou, o BdP agiu mal e de modo causal ao todo ou parte da situação do BES”, argumentou o juiz.
“Esse juízo, que é uma conclusão a extrair de factos, deve ser atingido pelo próprio tribunal, e não por terceiros. Por outras palavras, o facto de uma entidade contratada para o efeito ter analisado (não se sabe com que meios, por quanto tempo e em que extensão e com acesso a que elementos) a atuação do Banco de Portugal e ter concluído criticamente quanto à mesma não implica que o tribunal fique convencido do mesmo”, lê-se no acórdão.
Portanto, o Tribunal da Relação considerou que “na verdade, o relatório em causa não é imprescindível para a descoberta da verdade, por dois motivos: porque não se destina à prova de factos, mas antes à corroboração de conclusões extraídas de factos; e porque é um meio de prova indireto dado que, segundo a indicação das partes, foi elaborado a posteriori aos factos em discussão nos autos, pelo que, quanto muito, poderia concorrer para formar a convicção do tribunal, mas nunca a poderia, por si só, sustentar. Pelo exposto, não se mostra justificado o levantamento do sigilo profissional de supervisão invocado pelo Banco de Portugal”.
Recorde-se que, em defesa do sigilo do ‘Relatório Costa Pinto’, o Banco de Portugal invocou que “é responsável por preservar o necessário sigilo acerca da informação confidencial de que dispõe, essencial para a preservação da estabilidade financeira. O surgimento no espaço público de informação descontextualizada, desadequada ou intempestiva é suscetível de condicionar a capacidade de o Banco de Portugal agir como autoridade de supervisão e, no limite, de colocar em causa a própria estabilidade financeira.”
Como é que começou este processo?
A Comissão Liquidatária do Banco Espírito Santo apresentou ao tribunal um parecer sobre a qualificação da insolvência do BES, propondo a qualificação da insolvência como culposa e a afetação de trezes pessoas singulares, entre as quais o ex-administrador Rui da Silveira e o ex-CEO Ricardo Espírito Santo Silva Salgado.
Mas Ricardo Salgado, “veio deduzir oposição” e na sequência disso requereu, entre outras diligências, a notificação do Conselho de Administração do Banco de Portugal para “efeitos de junção do relatório completo de auto-avaliação (ou de outra natureza) relativamente à avaliação e conduta do Banco de Portugal, na supervisão do Banco Espírito Santo, nomeadamente no final de 2013 e 2014, incluindo quanto à aplicação das medidas de resolução (elaborado pela Comissão de Avaliação às Decisões e à Actuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo)”, para prova dos factos alegados na oposição por si deduzida.
O ex-presidente do BES tem falado várias vezes no “impacto colossal” que ainda hoje tem no país o processo de resolução do banco, questionando os motivos para o Banco de Portugal “ainda manter na gaveta” o relatório que o próprio supervisor elaborou, em 2016, para avaliar a sua atuação neste processo.
Já Rui Silveira deduziu igualmente oposição, pedindo, entre outras diligências, a notificação do Banco de Portugal “para juntar aos autos o Relatório da Boston Consulting sobre a sua actuação no caso da resolução do BES, o que se requer” por dele não dispor e para prova de toda a matéria de facto alegada na oposição.
O Banco de Portugal, na sequência da solicitação do tribunal na primeira instância veio informar não haver registo nem conhecimento “de qualquer documento intitulado ‘Relatório da Boston Consulting’, apenas se encontrando na posse do supervisor bancário o documento designado “Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espirito Santo – Relatório Final”, datado de 30 de abril de 2015 e que, quanto a este, se encontra “legalmente vinculado ao dever de segredo previsto no artigo 80.º, n.º 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”), no artigo 60º da respetiva Lei Orgânica e no artigo 37º dos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do BCE”.
O Tribunal do Comércio de Lisboa, onde decorre o processo de insolvência do BES e no âmbito do qual o relatório foi solicitado, tinha remetido os pedidos dos dois ex-gestores do banco para instância superior, e o Tribunal da Relação proferiu o acórdão no passado dia 13 de janeiro, em que basicamente recusa o levantamento do sigilo bancário ao vulgarmente chamado “Relatório Costa Pinto” por considerar que esse relatório não serve de prova para a qualificação da insolvência do BES.
O acórdão da Relação responde a duas coisas: ao incidente de quebra de sigilo profissional do Banco de Portugal no âmbito do pedido por Ricardo Salgado e Rui Silveira, e pelo incidente de quebra de sigilo profissional da KPMG a pedido da Comissão Liquidatária do BES.
“Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação em julgar improcedente o incidente e indeferir o levantamento do sigilo profissional invocado pela KPMG & Associados – Sociedade de Revisores Oficiais de Contas e pelo Banco de Portugal”, lê-se no acórdão do Tribunal da Relação.
O Banco de Portugal, liderado por Mário Centeno, entregou entretanto esta semana à Comissão Parlamentar de Inquérito do Novo Banco o relatório que avalia a atuação do supervisor bancário na Resolução do BES. Mas os deputados que o recebem mantêm-se vinculados ao sigilo do documento.
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