Soaram os alarmes quando, em dezembro do ano passado, o Instituto Nacional de Estatística (INE) revelou que a taxa de poupança das famílias portuguesas desceu para 3,96% do rendimento disponível no terceiro trimestre de 2018, um mínimo histórico. Apesar de em 2019 a taxa de poupança ter crescido para 5,9% no segundo trimestre – depois de ter atingido os 6,1% nos primeiros três meses do ano –, a realidade é que os portugueses poupam pouco face aos vizinhos.
Ainda que explicada por motivos económicos, a baixa taxa de poupança revela que os portugueses dominam mal os conceitos financeiros, expondo-se dessa forma a riscos que poderiam ser evitados. Falamos, claro, da literacia financeira. E há quem considere que os portugueses delegam no Estado o papel de garante das poupanças de todos nós.
“Creio que os portugueses não estão preparados para a poupança e isso reflete-se nas diferenças da taxa de poupança entre a zona euro, que rondam os 11%, e Portugal que está nos 4%”, referiu Pedro Lino, administrador executivo da sociedade gestora Optimize Investment Partners. “Para além dos baixos rendimentos e inflação superior à divulgada oficialmente, que não permite grandes possibilidades de poupança, o facto é que a maioria dos portugueses pensa que é ao Estado que caberá acautelar a reforma, não tendo por isso necessidade de poupar”, alertou, adiantando que “o problema reside no nível de comparticipação da reforma por parte do Estado”.
Num prisma mais alargado, as consequências da iliteracia financeira não se esgotam “numa menor ponderação das necessidades de poupança para o futuro” e na “maior dificuldade em avaliar o grau de risco das aplicações de poupança, com repercussões a nível da rentabilidade ou mesmo da possibilidade de mobilização dos fundos aplicados”, explicou o Banco de Portugal (BdP). Há outros riscos, como as “decisões menos apropriadas de gestão do orçamento familiar” e a potencial “contratação de produtos desajustados da finalidade do financiamento e ao risco de se optar por produtos com encargos relativamente mais elevados”, disse o supervisor financeiro. Além disso, a falta de literacia financeira pode dar azo “a um recurso excessivo ao crédito e ao risco de sobreendividamento”.
São os indíviduos, todos somados, que compõem a sociedade. Nessa medida, o desconhecimento financeiro de cada um põe em causa o regular funcionamento do mercado e, em última análise, da economia. “A literacia financeira desempenha um papel importante no desenvolvimento da economia porque uma sociedade com maior conhecimento é capaz de tomar decisões financeiras mais conscientes e informadas, o que contribuiu para a estabilidade económica e financeira”, referiu Maria Silva, diretora de marketing da Cofidis, uma sociedade financeira de crédito ao consumo.
Na mesma linha, o BdP adiantou que, a nível individual, a falta de literacia financeira tem custos individuais. “Mas os custos são também para a sociedade como um todo, pois a não afetação eficiente dos recursos tem impacto no crescimento económico e na estabilidade do sistema financeiro”.
Desengane-se quem concluir que a iliteracia financeira prejudica só os particulares. O administrador da Optimize explicou que as empresas não são imunes aos riscos associados a este ‘bicho papão’. “Um baixo nível de literacia financeira torna as próprias organizações vulneráveis à propagação de esquemas ilícitos, como se prova nos casos mais recentes de esquemas que envolvem alegados investimentos em criptomoedas e que não passam de esquemas em pirâmide ou de apropriação indevida de poupanças, mas que utilizam o sistema financeiro português com pouco ou nenhum entrave”.
Radiografia à literacia financeira em Portugal
O último inquérito sobre a literacia financeiro feito em Portugal data de 2015. Elaborado no âmbito do Plano Nacional de Formação Financeira, uma parceria que junta o ministério da Educação ao BdP, a Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários e Autoridade de Supervisão de de Seguros e Fundos de Pensões – os três supervisores formam o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros –, concluiu que as atitudes e comportamentos dos portugueses é, globalmente, positiva. Com base no inquérito, o BdP disse que 93,5% da população adulta portuguesa tem uma conta bancária e que 59% dos inquiridos poupam, além de 61% terem conseguido fazer face a uma despesa inesperada de montante igual ao salário mensal.
No entanto, o inquérito também concluiu que, em relação a conhecimentos financeiros, “as respostas revelam algumas lacunas, tanto em questões gerais de numeracia, como em conceitos diretamente relacionados com produtos financeiros”, lembrou o supervisor.
Quando adquirem um produto financeiro, os portugueses lêem informação disponibilizada pelas instituições, mas “o conselho do funcionário ao balcão continuou a ser o principal fator determinante da escolha dos produtos financeiros, a que se segue o conselho de familiares e amigos”, disse o BdP.
O inquérito identificou ainda que, entre a população portuguesa, os que possuem menor conhecimento financeiro são, a par dos estudantes, desempregados, reformados e os que têm menores rendimentos ou níveis de instrução.
Maria Silva, da Cofidis, reconheceu que “o nível e literacia financeira dos portugueses tem vindo a melhorar”. Mas citou um estudo realizado pela Allianz Global Investor, de 2017, que concluiu que Portugal, a par de Itália, ocupava os últimos lugares do ranking de literacia e risco – a Áustria, a Alemanha e a Suíça no topo.
“Constamos que nos chegam questões cada vez mais complexas que denotam um conhecimento mais aprofundado de temas económicos”, disse Maria Silva. Mas admitiu que “temos um longo caminho a percorrer e que a aposta em gerações jovens pode ser um ponto de viragem nos níveis de literacia financeira do nosso país”.
Formação financeira: um objetivo de longo-prazo
Por trás da literacia financeira estão as atitudes e comportamentos financeiros dos portugueses. Neste domínio, promover a literacia financeira junto dos mais novos é garantir a estabilidade económica e financeira do país no futuro.
“Melhorar a literacia financeira da população é um desafio ambicioso, tendo em conta a dimensão do objetivo e a existência de recursos limitados”, reconheceu o BdP. “A mudança de atitudes e comportamentos é um processo complexo, com resultados só possíveis de alcançar a longo prazo”.
Lançado em 2011, o Plano Nacional de Formação Financeira promove a literacia financeira nas escolas, em linha com as melhores práticas internacionais – “é uma prioridade”, vincou o supervisor.
A aposta na formação financeira junto dos mais novos parece ser natural. “As crianças e jovens não são apenas um público mais recetivo à transmissão de conhecimentos e à aquisição de atitudes e comportamentos adequados, como têm também um importante papel de difusão de informação e formação junto das famílias, num contexto em que o consumo de produtos e serviços financeiros é cada vez mais precoce”, explicou o BdP.
Outros segmentos da população também são alvo de iniciativas do Plano Nacional de Formação Financeira, abrangendo os adultos da região norte, em parceria com as autarquias locais, ou os desempregados, com o apoio do Instituto do Emprego e Formação Profissional. Há ainda “outras atividades desenvolvidas com o apoio de um conjunto alargado de parceiros, incluindo ministérios, associações do setor financeiro, associações de consumidores, e universidades”, revelou o BdP.
As iniciativas do Plano Nacional de Formação Financeira são divulgadas regulamente no portal ‘Todos Contam’. Além disso, o BdP “tem vindo nos últimos anos a promover iniciativas de informação e formação financeira da população”, explicou o supervisor. “Além da informação divulgada no Portal do Cliente Bancário (https://clientebancario.bportugal.pt/) sobre direitos e deveres associados aos produtos e serviços bancários, o BdP promove sessões de formação financeira por todo o país, com o apoio da sua rede regional. As sessões são maioritariamente dirigidas a jovens em idade escolar, mas também a adultos e seniores, sendo consideradas as necessidades específicas de cada segmento da população”.
Desafios para os investidores
“É essencial implementar programas de educação financeira, como a única forma de nos protegermos de burlas e esquemas que lesam as poupanças e impedem o investimento”, reconheceu Pedro Lino.
Só desta forma é que os investidores – e os particulares – ficarão com noções sobre o que é a diversificação, distinguir os diferentes instrumentos financeiros, como ações, obrigações, CFD ou futuros, e produtos financeiros, tais como fundos de investimento ou PPR. Mais: saberão “como procurar empresas credíveis, autorizadas pelos supervisores”, vincou Lino. São condições “essenciais para a protecção do investidor, do mercado e da economia em geral”.
Pedro Lino explicou que a noção de risco é a que levanta mais dúvidas aos investidores. “A maioria das pessoas olha para o risco como a probabilidade de perda, mas esquecem-se do espaço temporal”.
“Explicar a dinâmica do risco e horizonte temporal pode ser complicado e deve ser feito com exemplos práticos para que as pessoas percebam que não estão a ser enganadas, mesmo quando adquirem um fundo com maior risco”, salientou Pedro Lino.
No entanto, na opinião do especialista, nem toda a informação é útil. “Após a crise financeira, a tentativa de proteção dos investidores, obrigando à divulgação de uma série de informação que é ineficiente, complexa e de difícil compreensão por parte dos investidores, não ajuda ao fomento e diversificação da poupança dos depósitos a prazo tradicionais”.
Pedro Lino é, de resto, crítico com o manancial de legislação financeira. “Cometeu-se um exagero de inuncar o investidor com informação desnecessária, que acaba por desprotegê-lo, uma vez que as instituições podem agora afirmar que não há risco que fosse desconhecido”, alertou. “A ansia de tornar os produtos transparentes acabou por torná-los mais opacos e abriu uma porta para todo um mercado financeiro paralelo, situado em paraísos fiscais e que oferecem produtos e serviços a preços competitivos”.
Além de promover a literacia financeira, os supervisores devem trabalhar para recuperar a confiança, não apenas dos investidores, mas também as de que o mercado deposita neles. “Ninguém se responsabilizou perante os casos dos BES, PT, Banif e muito menos foram criadas estruturass para a defesa dfos investidores não profissionais ou de retalho. Assim a desconfiança supera o conhecimento do mercado e instrumentos financeiros, já que existe a percepção que a impunidade reina, e que o pequeno nunca é protegido ou compensado” referiu Pedro Lino.
“Apesar disso os reguladores têm implementado alguns programas de incentivo e esclarecimento de dúvidas, mas a meu ver há muito que fazer. A semana do investidores ou o programa nacional para literacia financeira acaba por se tornar um vazio. É necessário chamar as entidades do sistema a participarem na formação dos próprios clientes e a credibilizar um sistema financeiro que ficou paralisado no tempo”, disse.
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