Era uma vez um vinho. Não, esperem, era uma vez um homem que decidiu criar um vinho. Assim está melhor, porque estamos a falar de um visionário que decidiu fazer um vinho como nunca antes se tinha visto em Portugal. Como nunca mais se viu outro desde então.
A vida de Fernando Nicolau de Almeida dava um filme. Empreendedor e excêntrico, ficam para a história os camiões carregados de gelo que mandava para a estrada, entre curvas e contracurvas pelas serras do Alto Douro, até finalmente chegarem àquele vale perdido no tempo. Tudo para que a fermentação nunca ultrapassasse os 30 graus, o que não era fácil no Douro. Fernando Nicolau de Almeida viajou, aprendeu e soube utilizar esses conhecimentos para produzir vinhos muito melhores do que por cá se fazia. Nos anos de 1940 e 1950 era-lhe mais fácil viajar para Bordéus ou Borgonha do que para o Meão. “É mais difícil lá chegar do que a Luanda” – a frase era sua e ele, que era um homem da Invicta – os vinhos do Porto fazia-os nas caves de Gaia, onde repousavam as barricas – não empreendia essa viagem todos os anos de ânimo leve. Vestia-se a rigor, impecável de fato completo de linho branco, apesar do pó e do calor. Sempre que era necessário pernoitar em alguma pousada, Maria José tinha de subir primeiro, para ver se não havia “maus cheiros”. A mulher e mãe dos seus sete filhos, uma Ramos Pinto com ascendência direta a Dona Antónia Adelaide Ferreira, fazia sempre essa viagem com ele e a sua importância na vinha nunca deverá ser subestimada. Mas Nicolau de Almeida era um verdeiro “nariz”, ao nível dos melhores perfumistas de Grasse e o primeiro contacto com o vinho era feito sempre pelo olfato. Aos seis anos os seus filhos já “cheiravam” o vinho do Porto, mas não lhe podiam tocar. Era, para todos os efeitos, um pai austero, mas inventou um irmão gémeo, o tio Eduardo, para fazer toda a espécie de tropelias com eles.
Dedicadíssimo ao Douro e ao vinho, trabalhava horas esquecidas nas caves, provando lotes, experimentando as melhores soluções para cada um. Era exigente e nunca se dava realmente por satisfeito.
Foi este homem quem, na década de 1940, decidiu fazer no Douro um vinho para rivalizar com “os melhores de Bordéus ou da Borgonha”, os melhores do mundo. Até então o Douro era Porto, ponto final. Até então, o vinho de mesa era carrascão, bebia-se muito e barato. A própria pujança atual dos vinhos do Douro deve-se a ele, claro, mas só aconteceu muitos anos depois destas suas experiências.
O Barca Velha foi a sua criação predileta, porque fazer um Barca Velha é selecionar as melhores parcelas de vinhas e as melhores uvas dentro de cada parcela. É vinificá-las com todo o cuidado e tratar cada lote como se fosse único, enquanto envelhece e vai revelando todo o seu caráter. Que outro vinho espera oito anos para saber se é vinho? Nenhum. E lembremos que, em 65 anos de Barca Velha, houve apenas 18 edições. Quando o vinho não é declarado, é vendido sob a marca Reserva Especial e essa, por muito boa que seja ou mais elogios que receba, não entra para história.
A hora de todas as decisões
Coloquemo-nos, por um momento, na pele de Luís Sottomayor. É o chefe da equipa de enologia da Sogrape e o responsável direto pela Casa Ferreirinha. Cabe a ele – e apenas a ele – a decisão de declarar ou não um Barca Velha.
Não existe uma forma científica que possa validar a sua decisão. Trata-se de valores etéreos e muitos podem dar-lhe razão, mas muitos outros criticá-lo. Luís Sottomayor tem perfeita consciência do impacto da decisão nas contas da Sogrape, que pode chegar aos dois milhões de euros, porque não se trata apenas do vinho em questão, todos os que se lhe seguem – Antónia Adelaide Ferreira, Quinta da Leda, Callabriga, Vinha Grande… têm as vendas afetadas por esta decisão. E isso diz muito sobre a gestão da própria Sogrape. Durante a apresentação oficial do novo Barca, Fernando Guedes, presidente do grupo, acabou por revelar como tinha pedido ao enólogo que este lhe explicasse “afinal, por que razão este vinho é Barca Velha”, mas a resposta foi: “Porque é um vinho misterioso, seja lá o que isso for”, acrescentou o administrador com um sorriso. E é essa liberdade dada ao enólogo que realmente explica bem o porquê da Sogrape levar já dois anos consecutivos a ser considerada como a melhor empresa vinícola do mundo. As prioridades estão onde devem estar. Luís Sottomayor só tem de concentrar-se numa coisa: afinal, aquele vinho em mãos, cultivado, vindimado, vinificado, escolhido e envelhecido por oito anos para ser Barca Velha está ou não à altura do nome?
O enólogo lá acabou por explicar a sua decisão: “Na dúvida, nunca declaro um Barca Velha. Prefiro enganar-me num Reserva Especial do que num Barca Velha. Consigo viver com um Reserva que, afinal, até poderia ter sido Barca Velha, mas não o contrário. Foi o que aconteceu na colheita do ano anterior, 2007, que muitos consideram ser de qualidade Barca Velha. Se não tivesse existido 2004, estaria inclinado a concordar, mas esses dois vinhos são parecidos e o de 2007 é ligeiramente inferior. Repito: se tenho a mínima dúvida, prefiro não declarar.”
No caso de 2008 também existiram dúvidas. Durante as inúmeras provas que a equipa de enologia foi fazendo ao longo desses oito anos, Sottomayor conta como “conversava” com o vinho. “Perguntava-lhe: ‘O que queres? Diz-me de que precisas.’ Desde a colheita que sabíamos estar perante um conjunto de características excecionais, próprias de um Barca Velha, mas durante algum tempo não entendia o vinho. Ele respondia-me, eu é que não o entendia. Até que finalmente comecei a percebê-lo e a toda a sua enorme complexidade.” As dúvidas passaram a certezas: “Precisa de tempo e paciência para desvendar tudo o que vale. Mas vale muito” remata.
De 1952 a 2008 passaram-se 66 anos. Durante esse tempo existiram apenas três responsáveis pela declaração de um Barca Velha: Fernando Nicolau de Almeida, José Maria Soares Franco e Luís Sottomayor – sendo que os três chegaram a coincidir por um breve período, nos anos 1980. Nesses 66 anos as condições no Douro mudaram muito e os vinhos também: onde antes não havia um, hoje em dia é difícil enumerar todos os grandes vinhos produzidos na região. Os conhecimentos sobre a vinha e a vinificação mudaram muito e, se a Barca Velha era uma vinha no Vale Meão, hoje as uvas utilizadas até são da Quinta da Leda. Em 66 anos muito mudou, menos a receita de Fernando Nicolau de Almeida para fazer o seu vinho. Os discípulos conhecem bem a lição e nenhum outro vinho tem de submeter-se a tantas provas para passar no exame.
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