Com obras na Secretaria de Estado dos Assuntos Parlamentares e reuniões diárias com os partidos de esquerda, Pedro Nuno Santos recebe o Jornal Económico num gabinete temporário. Todos os dias há acordos para olear e as salas de reuniões naquela ala do Palácio de São Bento são um ativo disputado. A agitação diária do Parlamento só é superada por uma nova exigência familiar: o governante acaba de ser pai e a entrevista é a primeira que concede desde que regressou da licença de parentalidade.
Como tem sido trabalhar com esta solução governativa? É muito exigente no dia a dia?
É cansativo mas entusiasmante. Para mim, que defendia há alguns anos que o PS devia trabalhar com os partidos à esquerda, participar nesta experiência traz uma grande satisfação. Vejo que funciona, com resultados. Há dias em que temos 14-15 reuniões num só dia. Em simultâneo há três, quatro reuniões, com diferentes partidos e diferentes ministros.
Então não está presente em todas.
Não consigo, mas tenho uma equipa que cobre todas as áreas e temos adjuntos em diferentes reuniões. Tem sido muito interessante porque Partido Socialista (PS), Partido Comunista Português (PCP), Bloco de Esquerda (BE) e Partido Ecologista Os Verdes (PEV) têm aprendido a trabalhar em conjunto e a conhecerem-se. Temos culturas organizacionais e negociais diferentes. A democracia nasceu centrada à esquerda, numa dialética entre o PS, o PCP e a extrema esquerda, e isso marcou os partidos durante anos. As novas gerações não têm esse peso e estão a iniciar uma nova fase de negociação à esquerda. Isto não é só importante para o PS, para o PCP e para o BE. O PS não precisa da direita, nunca mais, para governar. É uma vitória muito importante.
Como é um dia típico na Secretaria de Estado dos Assuntos Parlamentares?
[Interpela o adjunto, que está na sala] Ó Hugo, podes pedir o calendário de ontem [terça-feira]? Só para vermos a agenda e termos uma ideia. Temos dezenas de reuniões por dia aqui na secretaria de Estado dos Assuntos Parlamentares. Fizemos agora umas obras, este não é o meu gabinete. Vamos ter três salas de reuniões ali ao fundo e mais duas lá em cima. Vamos fazendo reuniões com diferentes ministérios e diferentes grupos parlamentares.
Reúnem-se todos juntos?
Não. São sempre reuniões bilaterais. Esse salto ainda não foi possível dar. O que aumenta o nosso trabalho, porque são quatro quando podia ser uma. Temos de fazer reunião com o PS, com o PEV, com o PCP e com o BE. Há temas que são pedidos pelo Bloco, outros pelo PCP, outros por todos e, portanto, não se fazem sempre quatro reuniões.
Com quem é que faz mais reuniões?
O partido com que o Governo reúne mais é o PS, com o grupo parlamentar do PS.
Mas aí, em princípio, não haverá grandes divergências.
Teriam de estar numa reunião do grupo parlamentar do PS para perceberem que também não é fácil. Não só porque são mais deputados, mas porque é o partido deles que está no Governo. O PCP e o Bloco são muito difíceis e exigentes, mas temos conseguido ter um bom relacionamento e construir uma base de confiança muito grande. [O adjunto chega com a agenda]. Por exemplo, esta terça-feira tivemos debate quinzenal e depois houve reunião do ministro da Saúde com o BE, do ministro adjunto com o PS, uma reunião do grupo de trabalho da dívida externa, do ministro da Ciência e do Ensino Superior com o PS, do ministro da Saúde com o PCP, do ministro do Ensino Superior com o Bloco, da Segurança Social com o Bloco e com o PCP, da Defesa, Emprego e Administração Pública… Quer dizer, houve 13 reuniões depois do debate quinzenal. A solução não funcionaria sem estas reuniões. Como o PCP e o BE não estão no Conselho de Ministros, é no Parlamento que este trabalho tem de ser feito.
Quantas diretas já fez?
No Orçamento são dois meses loucos. Começamos o trabalho ainda antes da proposta inicial, com os nossos parceiros. Depois o diploma chega aqui, continuamos o trabalho na especialidade e durante todo esse período há um trabalho permanente daqui para o Governo, do Governo para aqui. Muitas vezes começamos de pontos de partida distantes e, para nos encontrarmos, a secretaria de Estado dos Assuntos Parlamentares anda de um lado para o outro. Os nossos ministros vêm cá mas muitas vezes nós próprios fazemos sugestões para tentar que o ministro se mova um pouco – muitas vezes até à última. A entrega do Orçamento já atrasou porque havia aí um ou outro pormenor que tinha de ser resolvido.
Nunca há reuniões com o PSD ou com o CDS?
Tivemos uma reunião com o PSD esta terça- feira, mas não é comum. A razão é óbvia. O Governo só existe por causa do PCP, do Bloco e do PEV, e por isso é com eles que nós temos de trabalhar numa base diária. Isso não impede que nós possamos ter acordos com o PSD em algumas matérias. Já aconteceu no passado. Mas obviamente que os nossos parceiros são os partidos à esquerda do PS.
Foi pai recentemente. Só gozou a licença obrigatória?
Há um período obrigatório de três semanas, logo após o parto, e cumpri-o na totalidade. Depois há dez dias facultativos durante os cinco meses de licença, caso seja a mulher a cumpri-los. A minha mulher está a amamentar e portanto tem de ser mesmo ela a cumpri-los – se fosse com biberon podia ser eu, mas não é o caso. Portanto, nos cinco meses em que ela vai exercer a licença eu tenho direito a mais dez dias. Usei logo seis desses dez e, portanto, tive um mês de licença até ao início de janeiro. E tenho direito a mais um mês de licença após os cinco, que também vou exercer. Vou exercer os períodos obrigatórios e tudo o que é opcional. Todo o tempo que a lei me permita eu vou exercer.
Porque tomou essa decisão?
Por consciência do direito, da responsabilidade. Temos a função de dar esse exemplo. Estou a fazer aquilo a que a lei obriga e o que a lei me permite. A legislação, numa sociedade que achava que a responsabilidade de acompanhar os filhos era apenas das mulheres, tentou forçar que os homens assumissem também a sua responsabilidade. Nós sabemos que a responsabilidade é dos dois e que as mulheres são discriminadas no trabalho pela condição de serem mães.
Com a disputa política que ocorreu enquanto estava de licença, sentiu algum peso de consciência?
Nem um bocadinho. Apesar de igualmente cansativo, foi também muito prazeroso.
Foi fácil “desligar”?
Isso não. Estava em casa e, apesar de estar em contacto com o primeiro-ministro e com a secretária de Estado Adjunta [Mariana Vieira da Silva], que esteve aqui a ajudar durante aquele período, lia muitos jornais, lia os comentadores, e a maioria deles não é assim tão favorável à nossa solução. Assistia a muitas injustiças e, como não podia intervir, aparecia sempre alguma ansiedade. Mas entretanto tinha uma fralda para mudar e esquecia-me rapidamente.
A vida política é desgastante? Há reuniões fora de horas, contactos permanentes.
Senti muita diferença do Parlamento para a Secretaria de Estado. As responsabilidades são outras e como aos Assuntos Parlamentares foram acrescentadas as negociações com os parceiros, essa é a parte mais pesada do nosso trabalho, neste momento: gerir todos os dias as relações com os parceiros. Obviamente com a participação dos nossos colegas do Governo, ministros e secretários de Estado e também com o primeiro-ministro, mas somos nós que coordenamos esse processo.
Teria algum conselho a dar ao seu colega Vieira da Silva, agora que está a viver na pele a parentalidade?
Tenho, mas não vou dizer. Ainda há muito para fazer nesta área, mas o país ainda não tem condições para fazer o que alguns países nórdicos já fazem. A conciliação da vida profissional com a familiar é um desafio e, infelizmente, nas nossas sociedades, são ainda as mulheres a parte mais prejudicada. Estamos todos conscientes dentro do Governo de que ainda há muito para fazer neste campo, mas vamos jogando com as possibilidades do país. Já ajudaria que os homens fossem assumindo mais responsabilidades. Se os empregadores perceberem que lhes vai custar tanto contratar uma mulher ou um homem se acontecer uma gravidez, pelo menos tenderão a discriminar menos a mulher.
Esta solução de Governo seria possível sem António Costa e sem Pedro Nuno Santos? O secretário de Estado faz pontes à esquerda, tem amigos nesse campo, antes do Governo escrevia no blogue Ladrões de Bicicletas.
Tenho a certeza de que, no futuro, será possível replicar esta solução, com estas ou outras pessoas. Para bem do nosso país, é bom que o PS se consiga entender com o PCP e com o BE mais vezes. Havia o risco de, se a solução corresse mal, se adiar por muitos anos um novo trabalho em conjunto. Mas felizmente está a correr bem e tenho a certeza de que vai acontecer mais vezes.
Então a questão pessoal não é importante?
Não desvalorizo a importância das pessoas. Não fazemos isso no PS. Entendemos que a infraestrutura não determina tudo; as pessoas também são muito importantes. As condições económicas e sociais em que o país se encontrava facilitaram o processo, mas é óbvio que as relações de confiança são muito importantes. Hoje temos uma relação de confiança muito importante com o PCP, o BE e o PEV e é bom que continue. Foi um dos segredos desta solução.
Já passou mais de um ano desde os acordos à esquerda e de vez em quando há uma ou outra areia na engrenagem, como se viu recentemente na Taxa Social Única (TSU). Este tipo de confronto é problemático?
Não. Não houve um confronto entre nós e os nossos parceiros na questão da TSU. Ao fim de 42 anos de democracia estamos a viver uma fase nova da democracia. Estamos habituados a olhar para o Parlamento como uma continuação do Governo. Ao longo dos anos temos tido parlamentos governamentalizados. Mas não é o que temos hoje, e isso não diminui a nossa democracia. Pelo contrário, torna-a mais forte. Temos um governo que faz o que lhe compete, e no caso da TSU o Governo participou numa negociação onde estão os parceiros sociais e o Governo, e agora há uma segunda fase que é no Parlamento, onde cada grupo parlamentar assumirá as suas responsabilidades com naturalidade.
Como haverá um pacote de medidas de combate à precariedade em discussão no Parlamento, estas divergências não podem ocorrer mais vezes?
Já aconteceram no passado. Logo no início, na recapitalização e venda do Banif, não tivemos apoio do PCP e do BE. Assinámos posições conjuntas com os nossos parceiros e temos vindo a cumprir o que está inscrito nessas posições conjuntas, e continuaremos a cumprir até ao final da legislatura. Depois há um conjunto de outras matérias que não estavam nas posições conjuntas nas quais chegámos a acordo, como o aumento real das pensões. Há um trabalho contínuo de procura de soluções conjuntas. Agora, nenhum dos partidos se anulou. Há matérias onde temos posições diferentes e cada um vai batalhar por elas. Em conclusão, isso quer dizer que poderá haver matérias onde não chegaremos a acordo.
Isso não põe em causa a legislatura?
Já conseguimos aprovar dois orçamentos, que são instrumentos importantíssimos para assegurar a estabilidade governativa. E a nossa expectativa é de que consigamos mais dois, os que faltam para o final da legislatura. Durante as sessões legislativas há matérias sobre as quais vamos acordar e outras sobre as quais vamos discordar. Faz parte desta solução. E não a torna mais frágil. Quando fomos apelidados de ‘geringonça’ passou a ideia de que era uma construção frágil, precária, que não era sólida. Não, é uma construção diferente. Não é frágil: já provou suficientemente a solidez da solução para não termos de continuar a antecipar quando é que vai acabar.
Há de facto uma viragem de fundo no PS ou é apenas uma questão tática, eleitoral, para chegar ao Governo?
Se o PS tivesse maioria absoluta, obviamente que a necessidade do entendimento seria, na melhor das hipóteses, menor – para não dizer desnecessária. Sem maioria absoluta e conseguindo nós em conjunto tê-la, o acordo foi necessário. Mas não foi irrelevante o apelo do eleitorado – na última campanha, o eleitorado dirigia-se permanentemente aos líderes do PCP, BE e PS dizendo: “entendam-se”. Tal como não foi irrelevante os quatro anos que vivemos, a necessidade de interromper aquele período austeritário, de grande insatisfação popular, de falta de esperança. Esses anos foram importantes para que nos juntássemos. E há também uma leitura do caminho que a social-democracia tem feito por toda a Europa. Os nossos partidos irmãos estão numa situação terrivelmente complicada num grande número de países. Hoje há um grande debate sobre a política de alianças. Em Portugal provavelmente antecipámo-nos a um processo que se vai repetir no resto da Europa. Esta sexta-feira vou reunir com elementos do Partido Social Democrata holandês, do presidente do Eurogrupo, que está num grande debate interno sobre a política de alianças. Eles vêm cá três dias para estudar a experiência portuguesa. O PS não se radicalizou. Não estamos propriamente a implementar um programa radical. Tudo o que tem sido feito neste último ano é profundamente social-democrata.
E há uma ‘desradicalização’ do BE e do PCP?
Não há uma alteração programática do PCP e do BE, e ainda bem. Não deixaram de ter uma posição extremamente crítica sobre o euro, de defender de forma aberta e ativa a restruturação da dívida pública. No que é essencial não alteraram as suas posições. Mas percebemos todos que precisávamos de nos encontrar no fundamental para melhorar a vida dos portugueses. Durante quatro anos, o governo anterior conseguiu convencer os portugueses de que não era possível viver melhor cá dentro. Num ano já conseguimos pelo menos mostrar que era possível viver melhor em Portugal. Claro que é um processo. Há muito ainda por fazer.
Esta subida dos juros não vos preocupa?
Há já algum tempo que se verifica uma subida das taxas. Temos vivido num contexto de grande incerteza internacional, sobretudo política – sejam eleições nos EUA seja o Brexit. Temos um ano de incerteza também na UE, com três atos eleitorais em países muito relevantes. Por isso, pensamos que é uma incerteza temporária no plano externo. Acresce a isto que, nos fundamentos da nossa economia, os resultados são bons. No terceiro trimestre de 2016 tivemos o maior crescimento da UE, temos um dos saldos primários mais elevados da Zona Euro, as exportações estão a subir. Vamos ter um défice inferior a 3% e uma redução da dívida pública líquida. Estes resultados vão refletir-se também na perceção que os mercados têm sobre a dívida pública. Estamos atentos, mas acreditamos que os resultados internos vão dar confiança.
[Notícia publicada na edição impressa de 20 de janeiro]
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