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Ai Weiwei: a força da arte, a força da consciência

A Cordoaria Nacional é palco de um furacão ativista. O artista chinês Ai Weiwei traz a Lisboa a exposição “Rapture”, que representa 35 anos de criação e um constante exercício de liberdade de pensamento e de expressão. Para ver até 24 de novembro.
21 Agosto 2021, 11h30

Antes mesmo de entrar num edifício que respira histórias, muitas delas feitas de mãos humanas que entrelaçaram cordas de navios, a Cordoaria Nacional, em Lisboa, somos confrontados com uma monumental pirâmide de 960 bicicletas de aço inoxidável, a obra “Forever Bycicles”. É imponente. É uma mensagem. E nada inocente. Como todos as criações de Ai Weiwei. Todos os vídeos que tem filmado. Todos os gestos que fotografa.

A força da arte vai de mãos dadas com a força da (sua) consciência. É por isso que antes sequer de penetrarmos nas entranhas de “Rapture”, e nos mais de quatro mil metros quadrados do espaço que acolhe a exposição, o artista interpela quem chega a questionar-se. A pôr em causa. E se passada a penumbra do átrio o olhar é inundado de formas, rapidamente começamos a ver os vultos de quem disseca atentamente a peça que tem diante de si.

Do lado direito, aquele pelo qual arranca esta espécie de viagem iniciática, uma sequência de televisores exibe os vídeos de Weiwei tem transformado em veículos de crítica, denúncia. E sem recuar muito no tempo, invocamos “Sunflower Seeds” (2010), instalação que cobriu o chão da Tate Modern, em Londres, com 100 milhões de “sementes de girassol” feitas em porcelana e pintadas à mão por 1.600 artesãos chineses. Objetivo? Incitar o público a caminhar sobre estas delicadas peças, qual alegoria sobre o destino do povo chinês. Um vídeo documenta como tudo foi feito, como se cria esta ilusão, de transformar “pedras” em sementes de girassol. Mostrar, dar voz, dar rosto.

Eis a essência de “Human Flow” (2017), documentário de 140 minutos que apresentou no Festival de Veneza. Como poderia não denunciar a tragédia dos migrantes quando, de férias com o seu filho na ilha de Lesbos, na Grécia, se apercebe da chegada de um pequeno barco à praia. Não era um barco de recreio, mas sim um barco de refugiados abandonados à sua sorte. Agarrou no telemóvel, começou a filmar e fez o que a consciência lhe disse para fazer: registar a via-sacra dos que sonhavam chegar à Europa.

A exposição “Rapture”, que pode ser visitada até 28 de novembro na Cordoaria Nacional, em Lisboa, representa 35 anos de criação e reúne cerca de 85 obras, divididas em dois núcleos, ou “facetas” – fantasia e realidade, ou, mitos e ativismo. A curadoria é do brasileiro Marcello Dantas, conta com produção da Everything is New, de Álvaro Covões, e tem uma ambição antológica, ao trazer a Lisboa peças que já fazem parte da história da arte contemporânea. Isso e, quiçá, recordar a força, o poder da arte.

A contestação também chegou aos ‘materiais portugueses’

Comece por olhar para cima, para a instalação que percorre o teto com a forma de uma cobra gigante, “Snake Ceiling” (2009), composta por centenas de mochilas de crianças, em memória dos estudantes mortos no terramoto de Sichuan em 2008. E depois, ao fundo, a imensa e negra jangada em forma de barco insuflável, com 16 longos metros de comprimento, parece carregar o ar de um pesado silêncio: “Law of the Journey (Prototype B)”, de 2017.

É impossível ficar indiferente perante este colosso. É impossível não recordar palavras de Weiwei a propósito do simbolismo das ‘suas jangadas’, quando diz que mais que uma crise de refugiados, estamos perante uma crise humanitária. E voltamo-nos para o imenso painel de azulejos que fecha a ala e que se quer uma inequívoca alusão aos refugiados: “Odyssey Tile” (Azulejo Odisseia). Inspira-se em ilustrações de antigas peças gregas e egípcias, e está povoado de imagens que o artista recolheu na internet, nas redes sociais e no documentário que realizou sobre o tema, “Human Flow”.

Criada em colaboração com artesãos da histórica fábrica Viúva Lamego, este imenso painel ilustra a Europa raptada por Zeus disfarçado de touro, mulheres migrantes em tendas, cargas policiais e toda uma panóplia de desenhos em tons azuis e brancos que obedecem a seis temas: Guerras, Ruínas, a Viagem, Cruzar o Mar, Campos de Refugiados e Manifestações. No fundo, os três temas sociais mais caros a Weiwei continuam presentes nesta intervenção, i.e., a denúncia de violações dos Direitos Humanos, os ataques à liberdade de expressão e as migrações.

Mas também há mármore e cortiça impregnados de contestação. O artista chinês deixou-se imbuir das tradições nacionais e criou “Brainless Figure in Cork” (Figura sem Cérebro em Cortiça), um autorretrato produzido pela Corticeira Amorim que une a tecnologia de uma máquina industrial CNC à escultura manual. E ainda uma enorme escultura de mármore em forma de rolo de papel higiénico, “Pendant” (Toilet Paper). Um produto humilde que ganhou um caráter épico durante a pandemia.

Perseguido pelas autoridades chinesas

Em 2018, à publicação “The Art Newspaper”, afirmou que se considerava “um refugiado high end: “Posso falar com os media e consigo fazer muitas exposições, mas tenho uma pátria à qual não posso regressar.”

Weiwei foi autorizado a viajar depois de ver o seu passaporte apreendido durante cinco anos. Mais. Viveu represálias do governo chinês pelas crescentes críticas aos problemas existentes no seu próprio país. Apesar de ser um artista reconhecido na China, quando trabalhou com o ateliê Herzog & Meuron na criação do estádio olímpico de Pequim, que ficou conhecido como “Bird’s Nest”, Weiwei entrou para o radar das autoridades chinesas ao afirmar que a competição era um mero “sorriso falso”. Ou seja, areia para os olhos do público, nacional e internacional.

O “episódio” que veio a retratar em S.A.C.R.E.D (2013) – Supper (Ceia), Acusadores, Cleansing (Limpeza), Ritual, Entropia e Dúvida, e que também está patente na exposição em Lisboa – sintetiza os 81 dias que passou numa pequena cela de detenção acolchoada. O seu ativismo não esmoreceu, pelo contrário, e quando foi autorizado a viajar, a liberdade só podia ser no exílio. Em 2015, de novo com o passaporte na mão, saiu da China e tornou-se um refugiado político.

A Europa foi o seu destino. E Berlim e Londres as cidades onde residiu vários anos, antes de encontrar em Montemor-o-Novo, a pacata vila alentejana, um refúgio a que poderá chamar “home sweet home”. Um lugar onde talvez tenha tido a tranquilidade necessária para ‘arrumar’ memórias e recordações, nomeadamente aquelas que habitam o seu livro de memórias, “1000 Years of Joys and Sorrows” (“Mil Anos de Alegrias e Mágoas”), cuja publicação está prevista para novembro deste ano.

Na mesma data, também será dado à estampa “Selected Poems”, da autoria do seu pai, numa nova tradução, disponível pela primeira vez em língua inglesa no espaço de uma geração, com prefácio de Weiwei e capa original desenhada por Ai Lao, filho do artista e neto de Ai Qing. O poeta que, depois de militar nas fileiras de Mao Tse-Tung, foi acusado de derivas direitistas por críticas feitas aos comunistas, e castigado.

Enviado para um campo de trabalho com a família, numa região remota do deserto de Gobi, e forçados a viver numa caverna subterrânea (forrada com folhas de jornais), só em 1976 lhes foi permitido regressar a Pequim, onde Weiwei nascera em 1957. Com a ascensão ao poder de Deng Xiaoping, o pai foi reabilitado e pôde retomar a sua carreira literária. Weiwei estudou na Academia de Cinema de Pequim e depois rumou a Nova Iorque, onde viveu o seu american dream. Interrompido em 1993, quando regressou à China para acompanhar o pai na sua doença. Ai Qing viria a falecer três anos depois.

Se o livro a lançar promete um retrato da China nos últimos cem anos, também trará mais pistas sobre o processo artístico de Ai Weiwei, as idiossincrasias da sociedade chinesa, a sua ascensão de artista desconhecido a superstar mundial da arte e ativista internacional dos direitos humanos. A busca de liberdade enquanto lema de vida, a força da arte enquanto instrumento para mudar mentalidades. Pedindo emprestadas as palavras pelo próprio ao jornal “The Guardian”, “um artista tem de ser um ativista”.

Rapture” pode ser visitada até 28 de novembro na Cordoaria Nacional, em Lisboa, todos os dias das 10h30 às 19h30. Bilhetes disponíveis online e no local.

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