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Alqueva. Aldeia da Luz foi submersa há 20 anos, mas habitantes continuam a pagar IMI

Habitantes da Aldeia da Luz, em Mourão (Évora), ainda hoje pagam Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) dos terrenos que possuíam e ficaram submersos na antiga povoação, 20 anos após o início do enchimento do Alqueva.
8 Fevereiro 2022, 08h39

A situação, que “não cabe na cabeça de ninguém”, é um dos problemas existentes na pequena freguesia alentejana, cuja grande parte do território foi submersa pelas águas do Alqueva, revelou a presidente da Junta de Freguesia da Luz, Sara Correia.

“Isto é frustrante para quem está à frente da autarquia”, argumentou a autarca, no cargo desde 2013, atribuindo a situação ao facto de não ter sido feito cadastro atualizado dos terrenos.

“Um proprietário de um terreno rústico não pode, simplesmente, ir às Finanças e dizer que é dono deste ou daquele prédio rústico e que quer pagar IMI dele. Estamos dependentes do cadastro feito pelo Instituto Geográfico”, que “não foi feito na altura”, disse.

A verba para essa atualização do cadastro, necessária porque “existe um lago imenso” na zona da antiga aldeia, “foi orçamentada e existiu”, mas “terá sido “gasta noutra coisa qualquer”, alegou.

“E todos os proprietários rústicos da Luz pagam IMI de terras submersas ou expropriadas, mas que não são deles. E pagam isso há 20 anos”, contou, realçando que o mesmo não se passa com prédios urbanos, que “estão devidamente escriturados e nas Finanças”.

Caso “a população estivesse disponível para pagar”, o cadastro podia ainda ser feito. Só que “a população não pode estar disponível, não obstante muita gente, se calhar, já o querer fazer” por estar “cansada”, afiançou.

“Não pode ser, porque lá na antiga aldeia tínhamos as coisas devidamente feitas. Isto não foi procurado por nós, fomos forçados e, portanto, tem que ser o Estado”, sustentou.

O que a população contesta, até porque o valor de IMI nem deve ser “muito elevado”, visto as Finanças não poderem atualizar “os valores de terras submersas”, é “ter de pagar sobre um bem que não lhe pertence” e do qual “não tira usufruto”, criticou.

O emparcelamento rural, ou seja, o registo das novas terras em nome de quem já possuía terrenos na anterior localização, também merece críticas da autarca, que alega que o processo “não foi concluído”.

“A maior parte está feito, mas ainda existem uns quantos” por registar. “Qualquer um que seja, ao fim de 20 anos, é muito”, argumentou.

Segundo Sara Correia, estes e outros problemas são conhecidos dos governantes: “Não há ninguém lá em cima que não saiba que isto acontece, porque nós fazemo-lo chegar a todos os governos que passaram por lá” e até “ao Presidente da República já fomos. Não falta pedido, falta interesse em resolver”.

A transferência da Aldeia da Luz, no verão/outono de 2002, para uma nova povoação construída de raiz a poucos quilómetros da anterior, desmantelada e submersa, foi o impacto social mais significativo da construção da barragem do Alqueva, cuja albufeira começou a encher em 08 de fevereiro desse ano.

A água do Alqueva transformou a agricultura e tornou-se a “salvação” de muitos agricultores no Alentejo, como quatro irmãos de Beja que criaram um negócio para investir em olival e um agricultor em Cuba que mudou para regadio.

“É a nossa salvação. É a única maneira. Só temos água do Alqueva, não dá para regar de outra maneira aqui, não temos nem furos, nem charcas, só Alqueva”, diz à Lusa o agricultor Miguel Gomes, de 41 anos, numa parcela de 25 hectares de olival perto de Beja.

Esta é uma das parcelas de olival da empresa criada por Miguel e os seus irmãos Luís, João e António Gomes, graças à água do Alqueva.

Os irmãos tinham uma exploração agrícola familiar, que “foi vendida”, mas “nunca” quiseram “deixar o campo”, conta.

Entretanto, começaram a trabalhar “em grandes grupos de investimento espanhóis” e perceberam “a mais-valia” que é a água do Alqueva e que a cultura do olival é “certa”.

Por isso, juntaram-se para criar um negócio e investir em olival, diz Miguel, lembrando que o investimento começou em 2016, quando arrendaram e plantaram a parcela de 25 hectares.

O negócio foi crescendo e os irmãos Gomes já têm três parcelas de olival de regadio em sebe a produzir, duas no concelho de Beja e uma no de Serpa, num total de 86,5 hectares.

E vão plantar este ano mais 60 hectares no concelho de Beja, “aproveitando todas as condições com a facilidade da água do Alqueva”, que “dá uma garantia”, sobretudo nos atuais tempos de seca.

“São tempos complicados e sem o Alqueva não havia hipótese para fazer este investimento”, frisa, referindo que na recente campanha olivícola produziram uma média de 3.400 quilos de azeite por hectare.

“Tivemos uma produção muito alta. Se fosse sequeiro, se calhar, nem metade tínhamos”, vinca, explicando que a azeitona produzida é transformada em azeite virgem extra no lagar da Cooperativa Agrícola de Beja e Brinches, à qual vendem a produção.

A “ideia” dos Gomes é “continuar” a investir, “com calma”, para aumentarem a área de olival, refere Miguel, que se dedica “a 100%” à empresa, enquanto os irmãos mantêm os empregos.

No vizinho concelho de Cuba, nas terras de António Vieira Lima, de 46 anos, só há vestígios da plantação de milho do ano passado, mas os pivots de rega não enganam. O Alqueva mudou o negócio do agricultor, que passou a produzir sobretudo duas culturas de regadio.

A “maior mudança” foi, “sem dúvida nenhuma”, a garantia de produtividade, diz à Lusa António, junto a um dos pivots da herdade onde planta 370 hectares de milho.

Os ambientalistas que há duas décadas se uniam contra o Alqueva continuam hoje a apontar mais defeitos do que virtudes da barragem e destacam a agricultura intensiva como o pior dos males.

Das organizações que integravam o movimento ambientalista destacavam-se o Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), Liga para a Proteção da Natureza (LPN), Quercus e o Centro de Estudos da Avifauna Ibérica (CEAI).

De fevereiro de 2002 a fevereiro de 2022, os ambientalistas ouvidos pela Lusa pouco mudaram no que ao essencial diz respeito. “Tínhamos e continuamos a ter receios, no regadio por exemplo”, afirma à Lusa José Paulo Martins, à época dirigente da Quercus e hoje na organização ambientalista Zero.

E acrescenta: “A pressão é imensa para o regadio. O agronegócio instalou-se, o pequeno agricultor morreu. Agora há grandes grupos, fundos financeiros. O território passou a ser um espaço de produção, como uma fábrica”. Para produzir, frisa, não o que país precisa mas o que for mais rentável, seja o olival, seja o amendoal.

José Paulo Martins admite que há água para a rega, mesmo com seca, mas avisa que está a aumentar a superfície, o que pode não ser bom.

Joaquim Pedro Ferreira, biólogo, que há 20 anos representava o CEAI, critica também a agricultura. Diz que a qualidade da água e o regadio são questões dramáticas e afirma-se chocado com o que chama passividade do poder local em relação à proliferação da agricultura intensiva.

Alqueva, diz, não levou ao Alentejo nem habitantes nem emprego, e a população local tem à sua volta um olival intensivo carregado de fitofármacos e degradação de solos, que prejudicam a saúde.

O ambientalista cita o INE para falar da perda de população. E José Paulo Martins também diz que Alqueva nem conseguiu fixar pessoas e inverter a tendência de desertificação.

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