No tempo, de má memória, em que Abebe Aemro Selassie liderava a missão do Fundo Monetário Internacional (FMI) no resgate a Portugal, demonstrava sempre tranquilidade mesmo em momentos tensos. Essa característica zen esteve novamente vísivel na semana passada, quando o economista etíope, que agora é diretor do departamento africano da instituição, teve de explicar em conferência de imprensa as perspetivas que a economia da região subsaariana enfrenta devido à Covid-19.
O tom era calmo, mas os números e as palavras estavam carregados de drama. O FMI projeta uma contração de 1,6% na economia da região este ano, a maior desde 1970, e cinco pontos percentuais abaixo da estimativa anterior. “Este golpe no crescimento reflete um cocktail venenoso de choques”, referiu. Os ingredientes dessa receita são o confinamento, o fecho de fronteiras, a quebra na produção e na procura por bens e serviços, especialmente as commodities. “Nenhum país vai ser poupado e o maior impacto será nos mais vulneráveis”.
O clima, a baixa densidade populacional, uma demografia com menos idosos ou a menor capacidade de testar a população podem ser alguns dos fatores que explicam a relativamente baixa taxa de infeções e mortes face aos números da Ásia, Europa e Américas. O impacto económico deverá, no entanto, ser mais grave, segundo os especialistas contactados pelo Jornal Económico.
Na Cidade do Cabo, Lucy Corkin disse que o governo da África do Sul tem recebido elogios por ter tido em conta as dúvidas sobre a capacidade de o sistema de saúde lidar com uma crise com a magnitude das que ocorreram em Espanha ou Itália, e ter implementado um estrito confinamento que já dura há mais de um mês.
A analista de mercados globais no Rand Merchant Bank explicou que, “como a economia já estava em mau estado antes da pandemia, o receio´agora é que as implicações económicas do lockdown possam ser severas, especialmente para as pequenas e médias empresas, que são responsáveis por uma grande parte do emprego no país”.
Corkin salientou a importância da economia informal na África do Sul, tal como no resto do continente. “Implementar um lockdown de uma economia informal é muito complicado, e para muitos sul-africanos é mesmo uma impossibilidade”, vincou.
“Além disso, temos uma população com risco em termos de imunidade, devido à elevada taxa de HIV/SIDA, e o facto de serem os idosos a cuidar das crianças quando os pais estão no trabalho”, explicou. “Por isso, vamos ver as consequências sociais e económicas da Covid-19 durante muito tempo”.
Em Angola, as perspetivas são eventualmente ainda piores. Em recessão desde 2015 devido à queda dos preços do petróleo, o governo projeta uma contração de 1,21% este ano, ligeiramente mais otimista que a de 1,4% esperada pelo FMI.
Allan Cain, diretor da organização não-governamental Development Workshop, disse o JE que os sinais não são animadores. “Angola está muito mal posicionada e as coisas vão piorar”, referiu. Explicou que no trabalho que faz no microcrédito, a ONG tem visto a diminuição dos fluxos de dinheiro do governo e de outras fontes para a economia informal desde de 2014, uma tendência que resulta numa “deterioração séria dos níveis de rendimento”.
“E isso foi antes de o coronavírus chegar, o que vai ser devastador. O dinheiro que escoa da economia formal vai cair 50% ou mais, e já vimos que a amortização de emprestímos por parte dos nossos clientes desceu 60%”, sublinhou Cain.
Lideranças pressionadas
Filipe Pathé Duarte, professor auxiliar no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna e na Universidade Autónoma de Lisboa, frisou que a pandemia e a subsequente crise podem afetar as lideranças no continente africano de duas formas. “A primeira é o problema do petróleo e a segunda a eventual subida de tensões sociais devido ao estado de emergência”.
O analista utilizou três exemplos para ilustrar estes efeitos. Recordou que em Angola as exportações de hidrocarbonetos representam mais de 90% das receitas externas, e que mais de metade das vendas da estatal Sonangol são para a China.
“Tendo em conta a queda nas importações chinesas de petróleo, o acordo de cortes de na produção no âmbito da OPEP+ e o crash dos preços, tudo isto irá provavelmente causar primeiro um forte colapso económico, seguido de um colapso político”.
Pathé Duarte acredita que os problemas económicos, com a dívida pública angolana a disparar, vão frustar o ímpeto reformista do presidente João Lourenço, que inclui um plano de privatizações e a construção e renovação de infraestruturas. “A médio ou longo prazo, Angola poderá ver comprometida a estabilidade”.
A contribuir para esta hipótese, o estado de emergência poderá provocar um aumento nas tensões sociais. Este fenómeno já se vê na Guiné-Bissau, com alguns protestos contra as medidas, e onde se espera que Umaro Sissoko Embaló “tire partido do estado de emergência para se manter no poder e consolidar o golpe de estado”, sublinhou.
Tal como em Angola, os governos da Argélia e da Nigéria poderão vir a sentir pressão devido à queda da procura e preços dos recursos naturais. Pathé Duarte explica que, na Argélia, o movimento social Hirak poderá intensificar as manifestações, num país em que a taxa de desemprego jovem é superior a 30%, e onde qualquer aumento de austeridade deverá fomentar protestos.
Na Nigéria, o presidente Muhammad Buhari tem um novo orçamento mas não o consegue implementar, explicou o analista, recordando que o país sofreu com o facto de o seu maior comprador de petróleo, os Estados Unidos, se terem tornado num dos seus maiores concorrentes.
Maior polarização China-EUA
A partir da Califórnia, o angolano Assis Malaquias, docente da State University Martime Academy, explicou ao JE que o risco político que rodeia João Lourenço tem de ser visto tendo em conta os contextos nacional e internacional.
“João Lourenço pode estar confortável por um tempo, porque muitos angolanos o veem como alguém que está a salvar o MPLA, e o próprio país, do abismo”, referiu. Para Malaquias, o anterior presidente “estava a conduzir o autocarro para o abismo e pelo menos agora há um condutor que carregou nos travões”.
Por esta razão, os angolanos poderão conceder uma oportunidade ao presidente, “porque embora saibam que ele ainda tem de conduzir o autocarro em direção à prosperidade e à harmonia social, também sabem que isso não acontece num par de anos”.
Malaquias, que foi advisor de segurança marítima no Departamento do Estado dos EUA, salientou a importãncia do aspeto geopolítico. Na opinião deste especialista, os Estados Unidos veem Lourenço como um aliado, especialmente útil na tentativa de influenciar a estabilidade na Região dos Grandes Lagos.
No entanto, na última década e meia, o grande player internacional em África tem sido a China, que através de parcerias se tornou num grande fornecedor, comprador e financiador de vários países do continente. Allan Cain e Lucy Corkin concordam que a China terá de restruturar algumas das enormes dívidas que esses países acumularam.
“Em termos estratégicos, credores como o China Exim Bank ou o China Development Bank são instrumentos de política externa de Pequim e não é do interesse de ninguém deixar colapsar um país devido ao fardo de dívida numa altura de força maior”, afirmou Corkin.
A analista sul-africana sublinhou, no entanto, que a tendência a seguir é a do envolvimento das empresas chinesas no continente. Jack Ma, até há pouco chairman da gigante chinesa de comércio eletrónico Ali Baba, recentemente doou à África do Sul o equivalente a mil milhões de dólares em equipamento hospitalar. A África do Sul, contra a vontade dos Estados Unidos, vai implementar a rede 5G com equipamento da chinesa Huawei.
“O nível de sofisticação da diplomacia chinesa está a aumentar, já não é um instrumento tão cru como era há uma década”, salientou Corkin, adiantando que a China tem planos para alargar a utilização do servico de mensagens We Chat e de pagamentos da UnionPay e da Alipay para a África do Sul, num continente que é recetivo a produtos e serviços chineses.
Salim Vallimamade, economista da Universidade Católica de Luanda, acredita que a crise que vai ser espoletada pela pandemia da Covid-19, “a polarização entre os Estados Unidos e a China vai tornar-se ainda mais intensa”.
“São dois países rivais, incluindo na tecnologia”, explicou. “Os países africanos vão ter de escolher quem é que querem como parceiro numa espécie de Plano Marshall para África ultrapassar esta crise severa.”
Artigo publicado no Jornal Económico de 24-04-2020. Para ler a edição completa, aceda aqui ao JE Leitor
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