Com o fim do estado de emergência, o Governo equaciona decretar a situação de calamidade pública para continuar a ter um instrumento legal que lhe permita impor um confinamento domiciliário ou uma restrição total ou parcial dos movimentos da população, mas o constitucionalista Vital Moreira alerta que “só a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência permite a suspensão do exercício de direitos fundamentais”.
“O Governo deixou cair na imprensa hipótese de, após terminado o estado de emergência em vigor, decretar o “estado de calamidade”, previsto na Lei de Proteção Civil. A hipótese está a gerar dúvidas de constitucionalidade, e não sem fundamento”, defende Vital Moreira no blogue Causa Nossa, para o qual contribui.
Segundo este constitucionalista, as coordenadas jurídicas da questão são as seguintes: o estado de calamidade, que é decretado pelo Governo, só pode sê-lo em situações suscetíveis de mobilizar a proteção civil – o que para Vital Moreira levanta desde logo a questão de saber se a pandemia cai tipicamente nessas situações – e, conclui, “não pode permitir fazer aquilo que somente o estado de emergência consente”.
Para Vital Moreira há uma série de direitos como a proibição de internamento compulsivo e o direito à greve que só podem ser afetados por via de declaração do estado de exceção constitucional (estado de sítio ou estado de emergência), decretado pelo PR com aprovação da AR, nos termos constitucionais.
O alerta surge numa altura em que o primeiro-ministro anunciou já que o Governo vai decretar a proibição de deslocações entre concelhos no fim de semana prolongado de 01 a 03 de maio, tal como vigorou no período da Páscoa. De imediato, no entanto, colocou-se a questão sobre os poderes do Governo para impor essas limitações em 3 de maio, já após ter cessado o estado de emergência às 24:00 do dia anterior.
Vital Moreira defende que “o estado de calamidade não pode, porém, afetar direitos que não podem ser restringidos em situações de normalidade constitucional, como é o caso, por exemplo, da proibição de internamento compulsivo (salvo por anomalia psíquica), da inviolabilidade da habitação, da liberdade de culto ou do direito à greve”.
O constitucionalista afirma que “estes direitos só podem ser afetados por via de declaração do estado de exceção constitucional (estado de sítio ou estado de emergência), decretado pelo PR com aprovação da AR, nos termos constitucionais”, realçando que “mesmo em relação aos direitos fundamentais que podem ser restringidos em situações de normalidade constitucional, como por exemplo a liberdade de circulação, o estado de calamidade não pode restringi-los senão nos termos do art. 18º da CRP”. Explica aqui que esta restrição de direitos só poder ser feita, nomeadamente “com estrito respeito pelo princípio da necessidade e da proporcionalidade, assim como de intocabilidade do ‘núcleo essencial’ de cada direito, o que não sucederia, por exemplo, com uma medida de confinamento doméstico obrigatório”.
“De novo, só a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência permite a suspensão do exercício de direitos fundamentais”, conclui, dando conta de que a distinção-chave aqui é justamente entre restrição do exercício e suspensão do exercício. Por isso, diz, “o estado de calamidade administrativo não pode fazer o que só o estado de exceção constitucional, por decreto presidencial, pode fazer, ou seja, suspender direitos”.
Para Vital Moreira “a distinção pode não ser fácil de fazer em situações limite”. Mas, nesse caso, o constitucionalista diz que “o mais aconselhável é renunciar a tais restrições ou então repetir o estado de emergência”.
Governo sinaliza estado de calamidade
No final da semana passada, o Executivo adiantou que “esses cenários ainda a ser estudados e não há decisões tomadas. Até ao Conselho de Ministros da próxima quinta-feira consideraremos várias hipóteses. Mas a situação de calamidade pública é uma delas.
De acordo com a Lei de Bases de Proteção Civil, a resolução do Conselho de Ministros que decreta a situação de calamidade pode estabelecer “limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas, outros seres vivos ou veículos”, assim como “cercas sanitárias e de segurança”.
“Independentemente do estado de emergência, há um conjunto de outros instrumentos legais, seja a legislação de saúde pública, seja a Lei de Bases de Proteção Civil, que permite manter normas de confinamento, de restrição à circulação ou de condicionamento no funcionamento de determinados estabelecimentos”, argumentou António Costa.
Ou seja, segundo o primeiro-ministro, independentemente daquilo que o Presidente da República decidir sobre um eventual prolongamento do estado de emergência a partir de 2 de maio, “é certo e seguro que, mesmo que acabe o estado de emergência, o país não voltará à normalidade”.
“Vão continuar a vigorar restrições com a habilitação legal que for necessária para esse efeito. Para o dia 03 de maio, há medidas legais que permitem aplicar essas regras de restrição à circulação”, avisou.
Segundo a lei de bases da Proteção Civil, a situação de calamidade pode ser decretada pelo Governo, através de resolução do Conselho de Ministros (e não pelo Presidente da República, como acontece no caso do estado de emergência) em caso de existência ou iminência de um “acontecimento inusitado com efeitos relativamente limitados no tempo e no espaço, suscetível de atingir as pessoas e outros seres vivos, os bens ou o ambiente”. Ou então em caso de “acidente grave ou uma série de acidentes graves suscetíveis de provocarem elevados prejuízos materiais e, eventualmente, vítimas, afetando intensamente as condições de vida e o tecido sócio-económico em áreas ou na totalidade do território nacional”.
Tanto o primeiro-ministro como o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disseram esperar que o atual período de estado de emergência, o terceiro decretado desde 19 de março neste contexto de pandemia de covid-19, seja o último.
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