[weglot_switcher]

Aplicação da taxa sobre lucros inesperados no retalho “pode ser bastante controversa”

A escalada dos preços gerou “lucros inesperados” na energia e na distribuição, que serão agora sujeitos a uma nova contribuição. A aplicação dessa medida corre, porém, o risco de deixar dúvidas, em particular quanto ao retalho.
27 Janeiro 2023, 00h01

Já está em vigor a nova contribuição sobre os chamados lucros “caídos do céu” das empresas dos sectores da energia e da distribuição alimentar. A regulamentação comunitária apenas prevê a tributação da primeira dessas áreas de atividade, mas, em Portugal, o Governo quis ir mais longe e incluir nomeadamente os hipermercados, já que também estes têm registado, nas palavras do primeiro-ministro, António Costa, “lucros injustificados” por efeito da escalada dos preços. Mas, desde o seu anúncio, essa decisão tem gerado polémica, e a aplicação da nova contribuição ao retalho alimentar corre mesmo o risco de ser “bastante controversa”, avisa Luís Marques, country tax leader da EY.

Ainda antes de o Executivo ter anunciado que também a distribuição alimentar seria tributada, já os especialistas, como o advogado Francisco Castro Guedes, alertavam que esta medida poderia levantar questões ao nível da constitucionalidade, uma vez que está em causa um sector ao qual já é aplicada um tributo extraordinária: a Contribuição sobre o Sector Energético (CESE). E também quanto à tributação da distribuição alimentar, essas questões foram colocadas, com o presidente da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED), Gonçalo Lobo Xavier, a indicar que “estava tudo em aberto” a este respeito.

Em declarações ao Jornal Económico (JE), o fiscalista Luís Marques destaca, contudo, que as dúvidas não são as mesmas para os sectores em causa. Na energia, afirma, é importante notar que existe “um primado do direito comunitário sobre o direito nacional”, diz. Já no retalho alimentar, “o tema pode ser mais controverso”, enfatiza.

“Trata-se de uma opção exclusiva do legislador nacional, sendo que, noutros casos, os tribunais têm sido consistentes no sentido de apenas permitirem que alterações ou introduções de novas taxas ou tributos apenas produzam efeitos prospectivamente, ou seja, para o futuro”, explica o especialista da EY. De notar que, apesar de ter entrado em vigor no dia 31 de dezembro de 2022, a nova contribuição vai aplicar-se não só aos “lucros excedentários apurados em 2023”, mas também aos verificados no ano passado, ainda que, nessa altura, a medida não estivesse em vigor. “A aplicação da contribuição de solidariedade ao sector do retalho alimentar a todo o ano de 2022, pode ser bastante controversa”, prevê, assim, o country tax leader.

Já sobre o valor da contribuição, o regulamento europeu define um mínimo de 33% e foi também essa a opção tomada por cá. “Portugal, como tem sido hábito noutros momentos, acaba por ir sempre um pouco mais além do que aquilo que as entidades europeias preconizam. [Ainda assim], o regulamento [comunitário] indica que a taxa deve ser, no mínimo, 33%. Podia ser ainda superior e aqui Portugal manteve o limiar mínimo”, frisa Luís Marques.

Sobre este ponto, a APED tem questionado os períodos temporais que serão usados para comparação, isto é, a tal taxa de 33% será aplicada aos lucro que exceda em, pelo menos, 20% a média dos resultados obtidos entre 2018 e 2021, mas o ano de 2020, em particular, ficou marcado pela pandemia, levando a uma quebra dos resultados, à boleia, por exemplo, das restrições impostas pelo Governo para conter a propagação da covid-19. “Entende-se o ponto levantado pela APED”, reconhece o referido especialista da EY. Mas atira: “esta fórmula de cálculo foi a que a União Europeia decidiu e aí o Governo português limitou-se a adotar a regra aprovada centralmente por Bruxelas”.

Uma medida temporária ou que promete perpetuar-se?
A contribuição sobre os lucros excedentários da energia e da distribuição alimentar é nova, mas não é o primeiro tributo extraordinário a ser aplicado em Portugal, sendo que os que até agora têm sido adotados (como a já mencionada CESE) têm-se prolongado no tempo, perpetuando-se. Há especialistas que já avisaram que há risco de o mesmo se verificar com esta nova medida, mas Luís Marques mostra-se mais otimista. “Uma vez que estamos perante uma medida que se baseia num regulamento da União Europeia, o risco de se perpetuar é muito baixo, para não dizer que inexiste”, acredita.

Por outro lado, considerando que os sectores em questão já pagavam mais do que a taxa de IRC, há quem questione se é justo serem alvos de uma nova contribuição, ainda que os seus resultados tenham sido “injustificadamente” positivos nos últimos meses. “Pode ser excessiva, de fato, mas percebe-se a necessidade, também no plano político, de adotar esta medida”, responde o country tax leader da EY, que salienta que esta é uma contribuição excecional, que decorre de um contexto particular: a escalada dos preços e a crise energética. “O lado menos mau é que existem outros sectores, como a banca e ainda o farmacêutico, que também já têm todas essas incidências tributárias e acabaram por estar de fora do âmbito de aplicação desta nova contribuição”, ressalva o fiscalista.

A propósito, Ana Chacim, consultora da EY, na área de tax services, nota que, se se incluíssem outros sectores nesta nova contribuição, seria possível “arrecadar um nível idêntico de receita”, mas com um “menor esforço” de cada contribuinte. A fiscalista deixa, porém, claro: “a decisão de quais são os sectores sobre os quais deve recair distribuir este esforço adicional de solidariedade é uma prerrogativa do legislador”.

Por outro lado, em declarações ao JE, Luís Marques aproveita ainda para explicar que, no caso português, os impostos e contribuições que já estavam em vigor devem ser entendidos como “fazendo parte do nosso sistema fiscal”, o que significa que “não contam para efeitos de limitar a aplicação desta nova contribuição de solidariedade”. “É assim que o mercado tem entendido, ainda que que possam desde já iniciar algumas discussões técnicas. Vamos ter de aguardar por alguns desenvolvimentos”, admite, ainda assim.

Por outro lado, convém destacar que o diploma que entrou em vigor no último dia de 2022 determina que a isenção prevista para micro e pequenas empresas não se aplica, quando estas se enquadram em grupos de sociedade com volume de negócios superior a 100 milhões de euros. “Claramente, há uma intenção de recolha adicional de impostos. Não há outra forma de olhar para esse [ponto]”, opina ainda Luís Marques.

Mas, afinal, como vai funcionar a nova contribuição?
Em vigor há cerca de um mês, a nova contribuição vai ser aplicada, tanto no caso da energia, como na distribuição alimentar, aos lucros tributáveis, que excedam o correspondente a 20% de aumento em relação à média dos lucros tributária nos quatros períodos de tributação entre 2018 e 2021. A taxa é, como referido e acordado a nível comunitário, de 33%. No caso do retalho alimentar, salvaguarda o diploma do Governo, as micro e pequenas empresas escapam a esta nova obrigação, exceto se integrarem sociedades.

Por outro lado, as regras já conhecidas ditam que, caso as empresas se atrasem no pagamento deste tributo, ficam sujeitas a juros compensatórios, sendo importante explicar que a receita cobrada no âmbito desta nova contribuição vai servir nomeadamente para dar apoio financeiro aos clientes finais de energia, em particular às famílias mais vulneráveis, mas também para contribuir para a autonomia energética e para apoiar as famílias com os encargos que têm com a compra de bens alimentares.

Segundo as previsões do Governo, esta medida deverá gerar receitas de 50 milhões a 100 milhões de euros por ano. “Um dos desafios que a atual conjuntura acarreta é assegurar que estas receitas tributárias inesperadas sejam efetivamente e atempadamente canalizadas para os mais afetados. Caso contrário, não se atinge o propósito que presidiu à criação destas contribuições de solidariedade”, remata, alertando, Ana Chacim.

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.