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“A guerra revelou-nos o verdadeiro Zelensky”, realça biógrafo do presidente ucraniano

A biografia de Volodymyr Zelensky, assinada pelo jornalista Sergii Rudenko, retrata a vida do comediante de Kryvyi Rih que chegou à presidência da Ucrânia para enfrentar a maior prova de fogo – a invasão pela Rússia – e superar as expectativas.
24 Fevereiro 2023, 08h15

Visto através de um ecrã, Sergii Rudenko aparenta estar numa sala tranquila, na sua casa, na outrora pacífica cidade de Lviv. Lá fora, como sabemos, o cenário é outro.

Foi a invasão da Ucrânia pela Rússia que o fez sair da capital e rumar à zona oeste do país. O canal Espresso TV mudou as operações para Lviv e abdicou dos seus estúdios, que foram convertidos em abrigos antiaéreos. Mas o jornalista ucraniano, editor-chefe do site Espresso TV, tem raízes na cidade de Sumy, na fronteira com a Rússia. Quando Rudenko nasceu, há 52 anos, todo o território fazia parte da URSS. O historial soviético trouxe-nos até aqui, o presente conhecemos, mas o futuro, diz, será muito diferente.

“Na minha opinião, as gerações atuais e especialmente a dos meus filhos, que está a testemunhar todos estes horrores da guerra, não vão perdoar nada do que a Rússia está a fazer agora na Ucrânia”, afirma o autor da biografia do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, em entrevista ao Jornal Económico. “Depois disto, não creio que alguém na Ucrânia tente promover a cultura russa, nem exija que a língua russa seja reconhecida como uma das línguas oficiais do Estado”.

Ainda assim, Rudenko prefere não se prender muito a cenários futuros, preferindo olhar para o passado. O jornalista assina a biografia não autorizada do líder ucraniano, que é agora editada em Portugal pela Casa das Letras. O livro começou a ser escrito quando Zelensky ainda dava os primeiros passos na política ucraniana e foi terminado num bunker, no dealbar da guerra.

O tempo, esclarece, não trouxe só um conflito ao país, mas fez do comediante Zelensky um líder que ficará para a história, garante Rudenko. A ascensão e afirmação do presidente surpreenderam até o próprio autor, que confessa ter sido um cético face à pessoa e ao político.

“Parece que vimos o nosso presidente sem maquilhagem, pela primeira vez, quando esta guerra começou”, explica, recordando que o título original do livro é mesmo Zelensky Sem Maquilhagem. “Pessoalmente, estava irritado ao vê-lo tentar interpretar esse papel de presidente. As suas poses teatrais, os gestos, todo o seu comportamento era como se estivéssemos no cinema.”

O comediante que se transformou num ‘Macron ucraniano’
Rudenko refere-se aos primeiros tempos de Volodymyr Zelensky nas lides da presidência. Antes de se tornar no líder que atualmente discursa nos parlamentos de todo o mundo, e que é aclamado no Ocidente pela sua dedicação à defesa da independência e liberdade da Ucrânia, Zelensky foi ator, e até chegou a atuar nos palcos de Moscovo. Ficou popularmente conhecido na série “Servo do Povo”, cujo nome foi também adotado pelo partido que acabaria por criar. A candidatura às presidenciais foi quase que uma brincadeira, um desafio, revela-nos o livro de Rudenko, mas acabou eleito.

Ninguém esperava, conta o jornalista, nem mesmo Zelensky. Mas votos são votos, e 73% escolheram pôr a cruz em Zelensky. “Em 2019, quando ele concorreu à presidência, era como se essas eleições fossem uma revolução eleitoral, porque as pessoas queriam rostos frescos na política ucraniana. Queriam pessoas novas, queriam um ‘Macron ucraniano’.

E Zelensky tornou-se esse ‘Macron ucraniano’. E as pessoas acreditaram nele”, conta Sergii.

Contudo, o fascínio pelo novo líder, que veio afastar o opositor e presidente Petro Poroshenko da Rada Suprema (o parlamento ucraniano) durou pouco. O inexperiente Zelensky aprendeu rapidamente que mudanças súbitas e drásticas podem trazer reações adversas, especialmente quando se soma um rol de polémicas. “Durante os primeiros dois anos e meio da sua presidência, a maioria das pessoas tornou-se cética em relação a ele. Sendo um novato, Zelensky não conseguiu cumprir todas as suas promessas e repetia, com frequência, os erros do seu antecessor e opositor, Petro Poroshenko”.

A infância desta presidência é ainda marcada por alegados casos de corrupção, alertas de nepotismo e até acusações de que o partido do novo Presidente estaria a planear instaurar um sistema monopartidário. Zelensky viu o seu nome nas manchetes de todo o mundo quando foi revelado o conteúdo da chamada telefónica que manteve com Donald Trump, uma polémica que viria a motivar a primeira tentativa de impugnação contra o presidente norte-americano. A reputação de Zelensky sofreu um rude golpe, a somar à mossa causada pela conduta de alguns deputados do seu partido, o Servo do Povo, retratada neste livro.

O calcanhar de Aquiles
Narra-se o episódio em que o deputado Maksym Buzhanskyi insultou uma jornalista em público, ou quando Bohdan Yaremenko resolveu “assuntos íntimos com prestadoras de serviços sexuais em plena sala do parlamento”. Outros membros do partido não ficaram imunes a episódios insólitos. Para citar apenas alguns: Serhiy Bragar propôs a uma idosa que vendesse o seu cão para pagar a renda em dívida, Oleksandr Dubinskyi justificou a presença de 17 automóveis na declaração patrimonial da mãe dizendo que a mesma “adora conduzir” e Ruslan Stefanchuck recebeu um subsídio de alojamento no valor de 20 mil hryvnias (cerca de 632 euros), apesar de viver em casa da sogra.

Ao todo, “onze dos deputados do partido seriam suspeitos de receber luvas no valor de 30 mil dólares cada”, revela Rudenko. Mais gritante foi o caso de Oleksandr Yurchenko, que foi acusado de cobrar 300 mil dólares para introduzir alterações a projetos-lei. E depois veio o Wagnergate, que Rudenko classifica como o “calcanhar de Aquiles da equipa de Zelensky”.

O caso diz respeito à detenção dos membros do Grupo Wagner, um grupo privado de mercenários russos que há mais de oito anos se vê envolvido em conflitos na Síria e em países africanos, mas sobretudo no leste da Ucrânia. A organização tem sido repetidamente acusada de crimes de guerra e de violações de direitos humanos. Em julho de 2020, os serviços especiais da Bielorrússia detiveram 32 membros deste grupo em Minsk, nas vésperas das eleições presidenciais, com receio de eventuais ações dos mesmos. Veio a ser revelado que tudo, “desde o recrutamento à tentativa de atrair os ‘homens de Wagner’ para fora da Rússia, fazia parte de uma grande jogada dos serviços especiais ucranianos”, relata Rudenko.

Zelensky chegou a pedir ao presidente bielorrusso Lukashenko para entregar os detidos à Ucrânia, pedido ao qual este aquiesceu. No entanto, tal nunca veio a acontecer. Os mercenários voltaram para a Rússia e surgem agora relatos de que estão a atacar tropas ucranianas perto da fronteira. A história do Wagnergate “desapareceu por completo do radar com a invasão da Ucrânia”, admite Sergii. Mais, várias figuras rotuladas pela equipa presidencial como “agentes do Kremlin”, acabaram por emergir na invasão e liderar a resistência do povo ucraniano. “É um final inesperado do Wagnergate”, escreve o ucraniano. “Final esse que deve ser tomado em consideração já depois da vitória da Ucrânia sobre a Rússia”, remata.

A comitiva do presidente afundava-se assim na credibilidade e opinião pública, e arrastava consigo a promessa que Zelensky simbolizava. O início da guerra veio tirar o foco destes e outros escândalos, mas o jornalista ucraniano garante que os mesmos não estão esquecidos, apenas adiados.

“Houve muitas questões em torno dele, relativamente à corrupção e ao nepotismo”, explica Rudenko, até porque toda a campanha de Zelensky assentava numa mensagem antissistema e anticorrupção. As dúvidas adensavam-se quanto à capacidade do novo Chefe de Estado de corresponder às expectativas. “Há uma série de questões e elas permanecem”, garante Sergii, “mas nós, enquanto jornalistas, e a oposição dele, estamos a tentar não enfatizar essas questões agora”, adianta. Porquê? “Porque quando o teu país está em guerra e há mísseis a destruir cidades, casas, percebes que só tens um comandante geral. E a sua responsabilidade é proteger-nos, a nós, a nossa família, o nosso Estado. E cabe-nos apoiar este comandante. Estamos a testemunhar o nascimento de um novo Volodymyr Zelensky”, nascido a 24 de fevereiro de 2022.

Do verde-tropa à maquilhagem: um “outro líder”
A figura de Zelensky é uma presença incontornável da agenda mediática internacional nos dias que correm, e Rudenko assinala que houve uma transformação muito rápida da personalidade e postura de Zelesnky desde o início da invasão russa.

“Desde 24 de fevereiro, enquanto profissional com mais de 25 anos de jornalismo, vi alguém completamente diferente. A guerra revelou e mostrou-nos o verdadeiro Volodymyr Zelensky”, garante . “Passámos a vê-lo como um político sincero e como uma pessoa sincera, sem a sua teatralidade e comitiva, sem maquilhagem. É um político sincero, que está a falar da guerra agora em curso na Ucrânia”, defende.

Zelensky não deixou de ser um homem de “emoções e humores”, como descreve Rudenko, mas “desde que a guerra começou, vimos um outro Zelensky, um outro líder. Não só não teve medo de enfrentar o desafio de Putin, como não teve medo de fazer parte da defesa da sua nação, do seu povo. Liderou as pessoas e manteve-se a lutar junto delas, a lutar pela sua liberdade e independência”, diz Sergii ao JE. “Na verdade, vemos três Zelensky diferentes ao longo destes anos. O primeiro em 2019 e 2020, um novato (…), em 2020 e 2021 começou a interpretar o papel de presidente da Ucrânia e a habituar-se a esse papel. E, em 2022, vimos um novo líder completamente diferente. Não só um líder da nação ucraniana, mas um político de renome mundial que passou a ter uma grande influência na política”, na Ucrânia e no mundo inteiro.

O “presidente da Paz” em tempos de guerra
Nos últimos capítulos da biografia de Zelensky, escritos em abril, num bunker, Sergii Rudenko descreve o massacre de Bucha e recorda como Zelensky procurou sempre ser um “presidente da Paz”. As promessas de acabar com a guerra no Donbass e de colocar “os pontos nos ‘is’ nas relações complexas com a Federação Russa” tiveram um desfecho inesperado.

Calhou ao sexto presidente da Ucrânia liderar o país numa guerra.

“É um desafio tremendo para alguém que nem sequer fez serviço militar e nunca teve qualquer experiência política até 2019”, sublinha Rudenko, que reconhece estar preocupado “com todos os ucranianos, não só na Ucrânia mas também no estrangeiro”. Dos 40 milhões de ucranianos, mais de seis milhões estão, nesta altura, refugiados noutros países, segundo estimativas das Nações Unidas.

Para o jornalista, o sistema nervoso de quem ficou no país vai-se acostumando ao compasso do conflito. “Quando os primeiros mísseis atingiram a capital, Kiev, em fevereiro, acordei com o barulho. Foi verdadeiramente assustador”, conta.

“O pânico instalou-se e durou algum tempo. Mas agora, de certa forma… Habituámo-nos a isto. O nosso sistema nervoso habituou-se a isto”.

Sergii diz ainda que em Lviv, onde se encontra, não se sentem tanto ataques como os que sofreram Kharkiv, Chernigov ou Mariupol, cidades quase dizimadas e palco de alegados crimes de guerra que começam agora a ser investigados pela comunidade internacional. “A vida dos ucranianos mudou drasticamente… Diria que a nossa vida está em ‘suspenso’”, confessa. “Putin quer-nos assustados, quer-nos destruir fisicamente, matar-nos. Mas deparou-se com um combate não só com as nossas forças armadas, mas também com a nossa nação.”
Como será daqui para a frente? O jornalista ucraniano admite não saber. Sobre a possibilidade de Zelensky se recandidatar ao cargo, Rudenko preferia que não o fizesse “Preferia que não fosse presidente outra vez. Gostava que ficasse na história como uma pessoa que não teve receio de liderar a Ucrânia quando o agressor russo invadiu o país e começou a matar o nosso povo”.

Entrevista originalmente publicada na edição impressa do JE

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