O doutor Fernando Medina, com a humildade que normalmente anima a sua vida política, não se tem cansado de elucidar os cidadãos que: “Este Orçamento foi entregue por mim à Assembleia da República e estou aqui a defendê-lo e a apresentá-lo porque é o meu orçamento”. Ou seja, não é o Orçamento do Estado (OE) de Portugal, nem mesmo do Governo: é o OE do doutor Medina.

Diz isto com a sofisticada inocência de alguns jovens:  “a bola é minha!”. Se não gostam das minhas regras, levo a bola para casa e já não há jogo. E agora, se este tenro país se não se apaixonar pelo OE do doutor Medina? Que fará ele? Fugirá com o OE? Irá choramingar para o gabinete do doutor António Costa? Fará uma birra? Talvez não. O OE, que é para vigorar durante muito pouco tempo, será aprovado pelo Parlamento sem uma reprimenda, porque o PS vota e cala tudo o resto.

 

 

É claro que este OE de retórica é um caldo verde: cabem lá repolhos frescos e cenouras pouco viçosas. Não importa. Mas, na entremeada do OE, surgiu uma nabiça amarelada. Um projecto do ISCTE que recebe directamente fundos do OE, e que, por acaso, é a casa para onde o doutor João Leão vai trabalhar como vice-reitor. O instituto é dirigido pela doutora Maria de Lurdes Rodrigues, que tornou os professores o “inimigo público” da sociedade num governo do doutor Sócrates.

Este mistério digno de Hercule Poirot  será uma boa maneira para avaliar os tempos de maioria absoluta. E elucidar o país sobre a transparência. É certo que esse dinheirito não será “cativado”, como foi norma de funcionamento do doutor Leão no Governo e que em muitos casos serviu para pôr em causa o funcionamento de serviços essenciais como o SNS. As “cativações” foram ideias divinas. Lembram quando o senhor Elon Musk disse que talvez fazer dinheiro não é um bom objectivo. Como se sabe isso quase sempre isso corresponde a que devamos esconder a carteira.

Logo no início do segundo governo do doutor Costa a transparência desta insinuação servirá para separar as águas: haverá um vácuo no coração deste Governo? Sabe-se que longas estadias no poder e maiorias absolutas deixam os partidos frágeis de ideias e desprovidos de qualquer sentido de propósito, excepto manter-se no poder, como o governo do doutor Sócrates provou há não muito tempo.

Vivemos tempos de grande mudança. A inflação não é um fenómeno meteorológico nem uma catástrofe natural, é um imposto cruel, que vai empobrecendo o cidadão. Atirando-o para a sopa os pobres. Ao mesmo tempo as sociedades estão a tentar sobreviver à custa de um cobertor nostálgico em vez de existirem como um conjunto vibrante de ideias. Qualquer distinção entre políticas substanciais e truques desesperados há muito que se dissolveu. E raramente a classe política parece ter algo a dizer sobre as realidades quotidianas da vida das pessoas.

“O tempo é a derradeira arma”, disse o cardeal Richelieu. E no meio de uma guerra na Europa, uma nova ordem pós-democrática está em marcha. As eleições presidenciais francesas exemplificam o que aí vem. A decadência dos socialistas e dos Republicanos mostra que os votos da destruída classe operária vão para a senhora Marine Le Pen, e que os que têm mais rendimentos votam no senhor Macron. Os mais novos votaram no senhor Mélenchon.

O complexo sistema de segunda volta que o General De Gaulle inventou para impedir que extremistas ocupassem o poder, permite ver a reconfiguração dos blocos. O eixo esquerda-direita mudou. E o velho espectro transformou-se. Um poderoso centro une esquerda cultural e direita económica e deixa soltos os extremos. E temos uma imagem digna de uma série da Netflix: um centrista liberal contra uma extremista iliberal; um moderado frente aos radicalismo “populista”.

A velha dicotomia esquerda-direita transformou-se numa outra fronteira: centro-extremos. E aqui estamos no território de uma luta entre a velha Europa do Iluminismo e o nacionalismo totalitário. Mas isso esconde outra coisa: O senhor Macron representa quem está instalado económica, institucional e culturalmente. Em confronto com ele estão os que têm rendas baixas, que ouvem facilmente o discurso nacional anti-globaização e contra o preço da gasolina, e pedem “mão dura”.

A França permite-nos ver como a divisão direita-esquerda está a perder importância. Porque vivemos num outro mundo: o do confronto entre a elite e o povo, com este a radicalizar-se. Numa Europa que nunca esteve realmente em paz, percebemos que tivemos ténues tréguas.

Zygmunt Bauman tinha razão, porque estamos numa Retrotopía. Regressámos à década de 1930. Estamos a voltar à era dos ciclos (guerra, epidemias, ignorância, autoritarismo). Os antigos viam assim a história e não um progresso contínuo. Portugal, neste seu baile sem sentido, deveria perceber o que está a mudar no mundo. Mas, por enquanto, as suas lideranças, tristes e analfabetas, parecem estar mais preocupadas com o seu reluzente umbigo. E em quem é o dono da bola.

 

 

Um herói duvidoso

Antes de “The Catcher in the Rye” de J.D. Salinger, houve um autor que escreveu sobre jovens desajustados com talento e paixão: John Fante. Na depauperada década de 1930, Fante começou uma série de romances que tinham como “herói” duvidoso Arturo Bandini, um aspirante a escritor, detestável, socialmente incompetente e sem um tostão nos bolsos. O primeiro romance de Fante, ”The Road to Los Angeles”, foi rejeitado e ficou inédito até depois de sua morte em 1985.

O segundo, ”Wait Until Spring, Bandini” (1938), ganhou elogios da crítica, mas foi o seu terceiro, “Ask the Dust” (“Pergunta ao Pó”, de 1939), que o colocou muito à frente de seu tempo. Não foi fácil. Tudo mudou porque um jovem Charles Bukowski, encontrou-o numa biblioteca pública depois de ficar sem dinheiro para beber. A escrita de Bukowski foi fortemente influenciada por Fante.

Hoje “ Pergunta ao Pó” é considerado um clássico. Segue Bandini enquanto ele luta para pagar o aluguer de um quarto em Los Angeles e se apaixona. A maioria de suas frases são musculosas e despojadas – e, no entanto, assim como Bandini ocasionalmente quebra os seus instintos machistas quando a emoção o domina, às vezes volta à terra. No primeiro capítulo soa a sua paixão (e revolta) com a cidade dos anjos: “Los Angeles, dá-me um pouco de ti! Los Angeles, recebe-me como eu te recebo, a vaguear pelas tuas ruas, linda cidade que eu tanto quis, flor triste da areia, linda cidade.”

Muitos autores escrevem sobre as dificuldades de estar falido numa cidade grande, mas só Fante poderia transformá-lo num caso de amor não correspondido.

Arturo Bandini é um escritor aspirante e falido italiano de segunda geração que se muda de Boulder, Colorado, para Los Angeles para ter sucesso como escritor. Vive num quarto de hotel alugado, sobrevivendo de laranjas, cigarros e de um enorme ego. O romance é centrado em torno do seu encontro e aproximação a Camilla Lopez, uma empregada mexicana, entre uma batalha de vontades e uma enxurrada de insultos racistas. Somos apresentados a um mundo de personagens estranhos, mas simpáticos, como Hellfrick, um vizinho bêbado, e Mr. Hackmuth, o editor de Bandini, que não conhecemos, mas entendemos o seu papel através da obsessão doentia de Bandini por ele.

A história avança enquanto Camilla e Bandini continuam o seu relacionamento tumultuoso, até descobrirmos que ela está apaixonada por Sammy, um cozinheiro doente. Aos poucos Bandini começa a ter sucesso como escritor e o seu amor não correspondido desfaz-se mentalmente. Ela desaparece mas Bandini fica com a opção da fama e dinheiro. “Pergunta ao Pó” aborda as questões de etnia e classe na América dos anos 1930, no meio da Grande Depressão. A sua natureza descaradamente egocêntrica e grandiosa é um contraste interessante com o seu medo de intimidade com as mulheres. Por vezes Fante faz Bandini regressar à Terra e é isso que o torna tão mortal como qualquer outro. Este é um clássico da literatura. Moderno, ainda hoje.

John Fante, “Pergunta ao Pó”, Alfaguara, 239 páginas, 2022

 

 

Tóquio escondida

Entre 1985 e 1989 o PIB do Japão cresceu 30%. Acumulava-se dinheiro como nunca. O valor do imobiliário em Tóquio era superior a de todo o existente nos Estados Unidos. Lojas e restaurantes abriam em todo o lado. Dois anos depois tudo cairia a pique. No meio de tudo isto reinavam  os “gangs” da Yakuza, que se dedicavam a todos os negócios, desde o jogo à protecção e prostituição. Isto antes de evoluir e se legalizar nos conselhos de administração de empresas legais. Legitimou-se o dinheiro ilegal.

“Tokyo Vice” (HBO Max) é a história de um jovem judeu do Missouri, fã de punk e aprendiz de karaté, que acaba como o primeiro jornalista de investigação estrangeiro num jornal japonês. E que conseguiu reportagens exclusivas sobre o pior inimigo que se pode ter no Japão: a Yakuza.

Baseado num livro de Jake Adelstein (aqui interpretado por Ansel Elgort), centra-se nos primeiros passos do repórter no início da década de 1990. Não por acaso a cultura popular japonesa (a manga onde os yakuzas eram muito populares e atraíam os jovens para a yakuza, que eram apresentados como heróis e os polícias como vilãos)  é ilustrada como base da série, já que na altura tinha muito sucesso na Tóquio de então e isso liga-se ao romantismo do personagem, Dizia-se que os yakuzas tinham códigos morais, mas têm de ser actores para sobreviver. E isso nota-se aqui.

Adelstein deixa de lado a sua vida pessoal para prosseguir a sua actividade como jornalista de investigação e isso torna-se uma tensão constante ao longo de toda esta primeira temporada. O exotismo de uma Tóquio decadente também ajuda como fuga à realidade (“em Tóquio não há homicídios” diz-lhe um polícia). O grisalho Katagiri (Ken Watanabe, uma presença dominante) coloca Jake sob a sua asa e explica-lhe  a elaborada teia de mentiras acordadas que mantém a paz inquieta entre clãs de gangsteres em guerra. O que importa é prevenir um conflito total.

O trabalho de Adelstein exige que ele faça ondas nessas águas estagnadas, colocando os dois lados da lei numa corrida para torná-lo o seu aliado útil. Num clube de anfitriãs, surge um trama envolvendo uma funcionária com ambições de abrir o seu próprio palácio de prazer. Mas Samantha (Rachel Keller) acaba por, com a sua presença compor a questão escorregadia das relações entre japoneses e estrangeiros. Não é uma televisão revolucionária, esta do realizador Michael Mann, mas a série é feita com alguma subtileza.

 

 

Poesia poderosa

Kae Tempest foi outrora conhecida como Kate Tempest. Mudou o nome, mas não a tempestade associada à sua música e à sua poesia. “To be known and loved/It’s so disgusting man, I’ve had enough”, canta no primeiro tema do seu novo álbum, “The line is a curve” (CD Fiction 2022). Porque o seu olhar vira-se para dentro, mesmo quando observa o mundo que a cerca. Desde que ganhou o prémio anual Ted Hughes de melhor nova obra de poesia em 2013, a londrina foi elogiada, com razão, como poeta e intérprete de palavras faladas, e publicou um romance e um livro de não-ficção.

A música trouxe mais sucesso. Em 2014, Tempest lançou “Everybody Down”, um álbum conceitual marcante e ambientado num submundo londrino sexualmente forte e tráfico de drogas. “Let Them Eat Chaos”, de 2016, seguiu esse destino.

Contra esse passado, “The Line Is a Curve” conta uma história muito diferente. Temas de crise e fracasso são recorrentes. A recuperação vem no final, mas é difícil e frágil – uma curva, não um ângulo agudo. “Não pode haver cura até que tudo esteja quebrado”, explica Tempest numa das faixas. As letras articulam uma dolorosa sensação de dissociação, um estado em que “a minha mente não está conectada ao meu corpo”, como Tempest canta a certa altura.

A faixa de abertura “Priority Boredom” é um arranjo electrónico pensativo. Tempest recita os seus versos com intensidade emocionante. A pressão aumenta em torno do tópico das redes sociais, num mundo de pessoas falsas e carência. Esta música de aço corre como uma espinha dorsal ao longo do álbum. “Nothing to Prove” expressa a alienação de um estilo de vida de busca de prazer e consumo. “Move” é um número de rap de batalha urgente sobre uma luta de vida ou morte com um adversário psíquico diabólico.

Comparado com os traços ousados do álbum anterior, “The Line Is a Curve” proporciona uma experiência mais sombria. Não há comédia. Quando personagens fictícios aparecem, como o retrato de três lutadores em “No Prizes”, eles são mensageiros de uma visão do mundo rígida baseada em frustração, opressão e desafio e que apresenta um refrão ternamente cantado de Lianne La Havas ao lado do hábil fluxo de palavras de Tempest. Após 12 faixas cuidadosamente inteligentes, não podemos deixar de dizer como ela: “Nothing To Prove.”

 

 

O Fado da Cesaria

Lisboa sabe a Fado. E algumas casas onde se canta o fado para os que não são turistas ainda atestam isso. Ao longo de décadas as suas vozes de fadistas encheram as noites, cantando as suas aventuras apaixonadas, os ciúmes, as sombrias ideias sobre a vida dos outros. E os nomes ficaram: de Cesaria a Amália Rodrigues. Cesaria, por exemplo, era de Alcântara e terá cantado pela última vez em 1877 numa casa que terá depois ficado com o seu nome perpetuado. Foi um ícone, como se recordaria mais tarde no “Fado da Cesária” numa opereta sobre esta canção popular de Lisboa. Com um cartaz ilustrado pelo genial Stuart Carvalhaes.