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A Captura de Portugal!

O vexame público e social da detenção, aliada à privação de liberdade nem que seja por uma noite, apenas devem ser usados em caso de extrema necessidade, e não como ato corriqueiro.
9 Julho 2021, 07h15

“A Justiça faz-se com condenações, não com detenções”. Estas palavras definitivas de Mariana Mortágua na noite da passada terça-feira à SIC- Notícias são o mais próximo que já vi entre uma intervenção política e um post numa rede social.

É evidente que a justiça faz-se com condenações, absolvições, pronunciamentos, não pronunciamentos, acusações e até com arquivamentos. Que a turba popular tenha ficado em êxtase com a detenção de outro cidadão para interrogatório, obrigando-o a passar a noite nos calabouços, borrifando-se para as garantias do Estado de Direito,  até nem me surpreende. Que uma deputada da nação o ignore já me parece mais grave.

A verdade é que a detenção de “Joe” Berardo agitou um país ainda magoado pela eliminação do Europeu. É legítimo perguntar, não por se tratar de Berardo, pois poderia ser o Manuel, o António ou mesmo o José (Sócrates), se era mesmo necessário deter Berardo para ser ouvido por um juiz e por procuradores do Ministério Público. Parece-me pacífico num Estado democrático que o primeiro, segundo e terceiro recursos terão de ser sempre os da intimação para estar presente nesse ato processual. Joe Berardo não será certamente um cidadão ingénuo. Depois de aberto um processo onde impende sobre si um alegado favorecimento fraudulento no acesso ao crédito, após uma inenarrável audição em sede de comissão parlamentar, e outras peripécias, o comendador saberia certamente que o dia do interrogatório judicial fatalmente chegaria. O facto de não ter fugido, ao contrário ainda realizou mais dois investimentos, pelo menos, com forte apoio público, pode dar um indício que talvez não fosse necessária a sua detenção nesta fase. Claro que não se pode criticar o cidadão comum por sentir um suave sabor de vingança quando alguém suspeito de lesar o sistema financeiro em mil milhões, sabendo nós que a fatura final recaiu sobre o Senhor Estado, como é habitual. Mesmo que essa vingança dure apenas algumas horas ou dias. Mas o sistema de justiça tem essa designação, “justiça”, precisamente porque, por definição, ser o antónimo de vingança. E, até ver, trata-se de alguém que o sistema garante a presunção de inocência que teve de passar a noite preso. Se fosse o caro leitor, gostaria? Eu digo-lhe já que não. E porque é que isto acontece?

Porque é um braço do sistema investigacional e de justiça que não acredita no outro. Porventura não acredita em qualquer outra parte do corpo da Dura Lex, Sed Lex. Se tem razões para isso? Porventura sim. Esta “facção” do sistema entende que no final os mais ricos, os que fazem os crimes mais complexos, logo mais “compensadores”, safam-se sempre, para usar um plebeísmo. Mas a justiça não pode, em circunstância alguma, ter “facções”. Ser uma justiça de “facção”!

A verdade porém é que aquilo que a nossa memória nos orienta é para essa sensação de impunidade. Mas nada justifica um desejo pouco escondido de cumprimento de pena ainda antes de qualquer acusação. O vexame público e social da detenção, aliada à privação de liberdade nem que seja por uma noite, apenas devem ser usados em caso de extrema necessidade, e não como ato corriqueiro. Se aceitarmos isso, apenas porque nos dá o gostinho de vermos um “poderoso” a ser humilhado, entre teremos transformado os órgãos de soberania numa gigantesca rede social.

Ludibriar Bancos

Ainda a propósito deste caso, não deixa de ser interessante a forma como a maioria dos órgãos de informação colocaram a situação. “Berardo detido por suspeita de ter ludibriado a banca em mil milhões de euros”. Vamos lá ver. Joe Berardo teve acesso a crédito em quantidades enormes, sem correspondentes garantias e, inclusive, para adquirir produtos tão frágeis como ações, ao arrepio de qualquer regra do bom senso na conceção de crédito e de investimento. Mas não consta que tenha apontado uma arma a alguém, ou que as administrações da Caixa, do BES ou do BCP fosse composta por insuficientes intelectuais. Senão vejamos: A CGD emprestou 360 milhões a Berardo apenas e só para uma progressiva e programada aquisição de participações naquele que era o maior banco privado português, há 15 anos, o BCP. Mais uns tantos milhões a Manuel Fino e a Pedro Teixeira Duarte com o mesmo fito.  Berardo ludibriou a Caixa ou houve uma indicação política para que essa operação acontecesse? Por muito que o comendador não gostasse pessoalmente do seu conterrâneos Jorge Jardim Gonçalves, e que quisesse ter influência na instituição financeira, qual o verdadeiro interesse por trás da substituição da administração do BCP, e do investimento em ações que já estavam em queda livre? Porque razão Carlos Santos Ferreira, a quem Sócrates teve pressa em entregar a gestão do banco público pouco tempo após a sua tomada de posse como 1º Ministro, substituindo o social democrata Vítor Martins, foi o escolhido, juntamente com o inevitável Armando Vara, para uma espécie de “nacionalização” da administração do maior Banco privado, transitando diretamente da caixa para o BCP? E porque razão este banco emprestou também duas centenas de milhões de euros a Berardo? O que está em causa, ainda e sempre, é toda uma era onde existiu um projeto de captura do poder de todos os sectores da sociedade portuguesa. E as ramificações são tantas que ainda estaremos muitos anos a assistir à tentativa de responsabilização política, até porque na vertente judicial já entrámos em período de prescrições..

Regressemos ao Berardo “ludibriar os bancos”.

Apenas pode ter ludibriado, quando a banca, já expurgada de práticas e cumplicidades antigas, foi atrás do seu património e, não podendo chegar diretamente à sua maravilhosa coleção de arte contemporânea, ficou com parte dos veículos que detinham essas obras, nomeadamente a Associação Coleção Berardo. O empresário, que se auto atribuiu da condição de presidente vitalício, terá utilizado a prerrogativa societária do aumento de capital, além de alterações estatutárias, para diluir a parte dos bancos, presumivelmente à revelia destes, o que justifica as célebres e infelizes gargalhadas com que coreografou a sua ida ao parlamento. Apenas aqui os bancos têm razão de queixa, e não é pouco, convenhamos. No passado, porém, tudo terá sido parte de algo muito maior. A captura de Portugal!

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