O Médio Oriente é uma terra que assistiu ao irromper de muitos conflitos lançados por sucessivas civilizações que agora estão enterradas no solo em camadas de História. Cada uma dessas camadas presta testemunho de inúmeras guerras milenares que ajudaram a moldar o nosso mundo. É uma terra santa mas também é terra de disputa e carnificina, onde conquistadores, profetas e zelotas competiram entre eles para liderar os povos e forçá-los a seguir as suas cartilhas.

As guerras de Iraque e Síria que tanto marcaram as primeiras duas décadas deste milénio abriram-nos os olhos para a complexidade religiosa e política que domina a região. Abriu velhas feridas entre os xiitas (fação do Islão predominante no Irão) e os sunitas (fação do Islão predominante nos países falantes de língua árabe), revelou a ambição crua de senhores de guerra e organizações que lutaram e ainda lutam por um pedaço de território que dê legitimidade às suas manobras por poder. A formação ilegal do Estado Islâmico (Daesh) em 2014 deu origem a uma organização jihadista baseada numa ideologia wahabita fundamentalista, e responsável por limpezas étnicas, violações de direitos humanos e ataques terroristas à escala global, com consequências sérias para o Médio Oriente e Europa.

Agora que a influência do Daesh tem vindo a diminuir, surge um novo perigo. O atual rei saudita escolheu um dos seus filhos, um jovem e ambicioso príncipe, para ser o seu sucessor. O Príncipe Herdeiro Salman tem orientado a guerra saudita contra os rebeldes houthis apoiados pelo Irão no Iémen e desencadeou uma crise do Golfo ao impor um bloqueio ao Qatar pelas suas ligações ao Irão. E nesta última semana, precipitou vários acontecimentos importantes: o Primeiro-Ministro libanês demitiu-se de forma inesperada a partir da cidade saudita de Riade, pressionado pelos sauditas que desejam exterminar no Líbano a influência de Hezbollah, a organização xiita apoiada pelo Irão.

No mesmo dia em que se deu esta demissão, surgiram notícias da súbita detenção de dezenas de príncipes sauditas e milionários influentes, consolidando o poder do príncipe herdeiro num golpe digno de A Guerra dos Tronos. Relatos subsequentes provaram o envolvimento da administração Trump que terá ajudado a delinear a purga.

O alvo é óbvio: o Irão está na mira dos sauditas e americanos, ao mesmo tempo que assistimos em Israel a uma vontade cada vez mais assumida de voltar a uma nova confrontação com o Hezbollah no Líbano. Uma aliança aparentemente desenha-se para uma guerra (direta?) contra a República Islâmica do Irão. Esta estratégia impulsiva e irrefletida tem tudo para correr mal. Falta avaliar o papel da Rússia de Putin, uma peça do tabuleiro de xadrez de enorme influência. Irão e Rússia foram aliados na Síria e têm velhos entendimentos. A liderança iraniana tem-se mostrado surpreendentemente contida face aos acontecimentos, mas estará certamente a preparar-se para a iminência de uma guerra.

Neste momento, o Médio Oriente e Golfo Pérsico encontram-se já abertamente em guerra fria, com a mão de ferro saudita a apertar-se em torno do Líbano, Iémen e Qatar, prosseguindo o conflito bélico fundamentalmente ideológico entre os xiitas e os sunitas. Na ausência de líderes fortes que possam chamar todos os envolvidos ao bom-senso, talvez todos os olhos se devam focar na região e tentar evitar a catástrofe que poderá causar uma nova crise do petróleo. Robert Fisk na sua monumental obra A Grande Guerra Pela Civilização escreveu: “A guerra não é sobretudo sobre vitória ou derrota, mas é sobre a morte e infligir a morte. Representa um fracasso total do espírito humano”. Se deixarmos que o Médio Oriente mergulhe em caos e sangue de novo, o que restará depois de tudo arder?