O país virou drasticamente à direita e, dentro desta, sobretudo à direita populista, reactiva, sem projeto, inconformada com os valores da Constituição, ressentida com o regime da 3ª República. Uma parte significativa do eleitorado virou em direcção a um caminho atreito às políticas erráticas, de descontentamentos desproporcionados, tomado pela vontade de castigar, encontrar culpados, política fulanizada, a identificação dos bons e dos maus, menor vontade de pensar razões além de quem as diga ou conteste.

Muito emoção, pouca reflexão. Por exemplo, a raiva por não se verem todos os corruptos que se imagina existir atrás das grades. Como a satisfação noutros tempos em ir até à maior praça pública de uma capital ver algumas cabeças rolar. Para, a seguir, passada a descarga, tudo ficar na mesma, ou pior.

Como se não bastassem cinco minutos de aritmética básica para concluir que, no essencial, os nossos impostos estarem a ser bem ou mal canalizados, por boas ou más políticas públicas, só muito marginalmente é um assunto de corrupção. Como o problema do emprego ou da segurança só muito marginalmente é um problema de imigração, ou o problema da intolerância um problema de credo religioso.

Somos filhos do nosso tempo e sucede-nos, sem lição aprendida, o que já foi acontecendo pelo mundo fora apesar de tantas evidências sobre como a direita populista tem sido nociva, ao ponto de não passar pelas democracias sem as pôr em risco.

Não é só nada fazer de significativo contra a corrupção – na verdade apenas pretexto, ao lado de outros, para fazer sociedades mais inflexíveis, mais julgadoras e castigadoras, com mais fulanização, e muitos excluídos, gente que não pertence, não merece, não é nossa, a que se atribuem culpas de acordo com uma qualquer narrativa hiperbólica conveniente para daí seguir-se que tenham de ser identificados e até perseguidos, tudo a bem do interesse dos bons, há que perceber –  e quem não salta não é verdadeiramente dos bons.  A diversidade torna-se um problema, o pluralismo outro. Dizer que é logo nos políticos que a corrupção começa é, no fundo, um convite à corrupção.

Pois, mas saberá o eleitorado do interior do país, os cidadãos de círculos eleitorais que apenas elegem três ou quatro deputados (Beja, Bragança, Castelo Branco, Évora, Guarda, Portalegre) que o Chega, em que muitos votaram, vai propor a redução do número de deputados e que assim se matam quaisquer expectativas de terem mais representantes do seu território na casa da democracia? Sabemos todos que seis dos sete maiores distritos de Portugal estão nessas condições? E que totalizam mais de 46% do território? Alguém acredita seriamente que uma democracia diminuída é capaz de combater a corrupção?

É claro que não queremos a corrupção à rédea solta, mas é o seu hiperbolismo que corrói as bases da própria democracia. Foi assim com Bolsonaro e Trump, mau grado todo o apelo do populismo ao povo, eles sim os grandes corruptores da democracia, como nunca antes se vira no caso dos Estados Unidos.

Aliás, a hipérbole da corrupção está para as finanças públicas como a hipérbole da bestialidade da Rússia está para as relações internacionais. Quais dois minutos de reflexão não confirmam que a Rússia não constitui ameaça global ou à Europa a não ser se for levada assim ao ponto de se activar a emoção atómica do “risco existencial”?

A Rússia não é derrotável, mas só é invencível se chamada às condições que a tornam inderrotável. A responsabilidade de a manter no plano de um conflito regional em que se enterrou como num pântano e para que é preciso encontrar uma solução também nos cumpre. Mas para isso era preciso menos hipérbole. Infelizmente, de hipérbole em hipérbole, avançamos em direcção a uma paisagem cheia de perigos, nacionais e globais, avanço que, este sim, não é hiperbólico. Talvez a oposição a este estado de coisas tenha de ser estilística. Contra as hipérboles, apontar ironias.

Há que fazer a grande ironia, fazê-la ouvir e, como em todas as grandes ironias, dá-la a pensar a ponto de suscitar a pergunta: e se as coisas não forem bem como parecem?  No plano nacional, basta compaginar os receios hiperbolizados como as notícias serenas do estado da economia da nação. Primeiro, a dívida pública abaixo dos 100% e o maior excedente orçamental desde o 25 de Abril. Podemos queixar-nos que esta inusitada folga não chegou aos trabalhadores, a quem mais dela precisava.

É com algum espanto que ouvimos Fernando Medina dizer, com a autoridade de quem foi o ministro das Finanças do exercício que agora cessou funções, que a acomodação das pretensões salariais de forças policiais e as pretensões dos professores não carecem de um orçamento rectificativo.

Parece que o Governo PS deixa o país com rara saúde financeira e assim teria sido também mesmo que tivesse sido mais sensível aos protestos sociais de segmentos importantes da sociedade portuguesa. Também recebemos notícia dos lucros recorde da Banca. A Caixa Geral de Depósitos entregou mais de meio milhar de milhões de euros ao Estado. Só isso pagava as pretensões de polícias e professores que, durante anos, protestaram com razões de sobra.

A ironia amarga vira-se contra o próprio governo de António Costa, pois a ironia maior é que o pecúlio granjeado vai beneficiar a direita que agora chega ao poder, com uma direita extremista à perna que ainda se vai cobrir de razão eleitoral justificando “vejam só o que a corrupção vos levava”.

A ironia é também isto suceder-nos quando celebraríamos com gáudio os 50 anos do 25 de Abril, reafirmaríamos valores por cumprir, D’s por renovar – mais e melhor democracia, outro desenvolvimento, mais envolvente e menos concorrente, descolonização levada mais a fundo. Precisávamos de uma grande pausa irónica sobre as nossas existências políticas, nas nossas cidades, no nosso país, no nosso mundo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.