Ao longo desta legislatura, a interrelação entre o Partido Socialista (PS) e o Bloco de Esquerda (BE) nem sempre foi pacífica, apesar dos acordos de incidência parlamentar – envolvendo também o Partido Comunista Português (PCP) e o Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV) – que suportam o atual Governo. Os momentos de tensão e críticas mútuas acentuaram-se nos períodos de negociação dos orçamentos do Estado, mas acabaram por se esvaziar (gradualmente) após a aprovação dos mesmos. Algo que não se verificou, porém, depois da aprovação do Orçamento do Estado para 2019 (OE2019). Pelo contrário, nos primeiros meses de 2019, a “guerra fria” entre o PS e o BE intensificou-se e há quem receie que possa resvalar entretanto para um “ponto de rutura”.
É nesse sentido que apontam vários elementos da bancada parlamentar do PS contactados pelo “Jornal Económico”. Manifestam o seu desagrado quanto a recentes declarações de Catarina Martins, líder do BE, nomeadamente a comparação entre António Costa e Pedro Passos Coelho no que concerne à gestão do sistema financeiro, ou a sugestão de “uma reflexão dentro do Governo e no PS (…) para que os cargos públicos não sejam ocupados tendencialmente por um grupo de pessoas com muitas afinidades”.
Trata-se de “sucessivos exercícios de deslealdade”, lamenta um deputado do PS. Mesmo “descontando” o clima pré-eleitoral, “há ataques que ultrapassam o limite do razoável”, aproximando-se “perigosamente” de um “ponto de rutura”, avisa outro deputado. Não está em causa a conclusão da presente legislatura, ressalvam, até porque já não será necessário aprovar mais nenhum Orçamento do Estado. Mas o aprofundamento da desconfiança mútua poderá inviabilizar a possível renovação dos acordos de incidência parlamentar depois das eleições legislativas de outubro de 2019.
A sensação de mal-estar parece ser recíproca. Nas fileiras do BE também há quem expresse o seu incómodo perante recentes declarações de dirigentes do PS, com especial destaque para o respetivo líder da bancada parlamentar, Carlos César, o qual salientou esta semana que “tivemos [no PS] que trabalhar, às vezes muito penosamente, com aqueles que nos dizem apoiar”. Os bloquistas contactados pelo “Jornal Económico” não temem uma eventual rutura entre os dois partidos, mas sinalizam e criticam várias demonstrações de “menosprezo” do PS em relação ao BE, nos últimos meses, sobretudo desde a aprovação do OE2019. Uma fonte próxima da direção do BE refere-se mesmo a “provocações gratuitas e desnecessárias”.
Hostilidade transitória
Na perspetiva de António Costa Pinto, professor de Ciência Política e investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, apesar da crescente tensão entre o PS e o BE, com críticas mais agressivas à medida que se aproximam as eleições europeias e legislativas de 2019, “não é de crer” que isso possa levar a uma rutura no próximo ciclo eleitoral. Não obstante, Costa Pinto recorda que “esta solução de Governo foi produto de Passos Coelho, isto é, da ameaça de continuação do Governo de Pedro Passos Coelho [coligação PSD/CDS-PP] em 2015, algo que já não se verifica em 2019. Pelo que se trata de uma solução de Governo irrepetível, pelo menos nos mesmos moldes”.
De qualquer modo, Costa Pinto relativiza o afastamento entre o PS e o BE no presente “clima de campanha pré-eleitoral” e sublinha que “os estudos de opinião ou sondagens indicam que tanto o BE como o PCP deverão manter o seu eleitorado, com mais ou menos votos, não se prevendo grandes perdas ou ganhos de votos. Ou seja, o PS continuará a precisar deles para o próximo Governo, o que torna improvável esse cenário de potencial rutura”.
Por outro lado, o politólogo salienta que “nem sequer é um fenómeno novo, já se tinha verificado esta dinâmica de ‘guerra fria’ ao longo da legislatura, no plano discursivo. Agora parece ter-se acentuado, mas é por causa da aproximação das eleições. Deverá até agravar-se nos próximos meses”, antecipa. Mas ainda assim “não é de crer” que inviabilize novos acordos no próximo ciclo político. “Esta maior agressividade retórica entre os partidos é transitória”.
Armas de arremesso político
A deterioração do relacionamento entre os socialistas e os bloquistas acentuou-se a partir do Verão de 2018, na sequência da revelação do “caso Robles” (o vereador do BE na Câmara de Lisboa que acabou por se demitir, após ter sido noticiado que era coproprietário de um prédio em Alfama, Lisboa, destinado a exploração turística na forma de “alojamento local”, em contradição com o discurso político do BE e do próprio vereador) pelo “Jornal Económico”. Em entrevista ao jornal “Expresso”, a 11 de agosto, o primeiro-ministro António Costa abriu as hostilidades com o seguinte comentário: “Nunca imaginei que quem prega com tanta virulência a moral política cometesse pecadilhos”.
O afastamento entre os dois partidos não impediu a aprovação do OE2019 e, aliás, na XI Convenção do BE, realizada nos dias 10 e 11 de novembro de 2018, vários dirigentes bloquistas assumiram a ambição de integrar o próximo Governo. Ao ponto de até terem indicado potenciais ministros como Mariana Mortágua nas Finanças, Joana Mortágua na Educação, Moisés Ferreira na Saúde, Jorge Costa na Energia, Luís Monteiro no Ensino Superior ou José Soeiro no Trabalho. “O Bloco é hoje um partido mais determinante, mais preparado, mais sólido nas suas análises e nas suas propostas. O Bloco mostrou que tem gente capaz, que sabe mais do que tantos ministros, porque conhecemos os problemas da vida”, declarou então a líder do BE, Catarina Martins.
A resposta de Costa foi servida friamente, cerca de uma semana mais tarde. Em entrevista à Agência Lusa, o primeiro-ministro sinalizou uma posição de princípio contra a disponibilidade do BE para vir a integrar um próximo Governo juntamente com o PS. Costa argumentou que “é melhor uma boa amizade do que uma má relação” entre o PS e o BE, PCP e PEV. “Portanto, acho que devemos preservar uma boa relação, sem prejuízo de que, como em todas as relações, possa haver evoluções. Agora, acho que não faz sentido começar a discussão sobre se há ou não há um Governo conjunto antes de se saber sequer se há ou não há uma posição conjunta”.
No início de 2019, com o Governo e todos os partidos em pré-campanha eleitoral, os ataques do PS ao BE e vice-versa estão a tornar-se mais frequentes e violentos (ver caixas). Desde os apoios à banca até às relações familiares na esfera do poder político, entre outras armas de arremesso.
Artigo publicado na edição nº 1982 de 29 de março do Jornal Económico
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