O episódio “Sobre Cozinhar Bebés” do programa “Coisa que não edifica nem destrói”, de Ricardo Araújo Pereira, explora as reações a uma piada de 2021, um panfleto de 1729 e um desenho de 2008. Ele conversa com Nuno Amaral Jerónimo sobre a diferença entre uma coisa e a representação dessa coisa. O episódio questiona o que acontece quando as pessoas deixam de perceber a diferença entre o mal e a representação do mal.

Enfim, posso estar a fazer um resuminho muito pequenino, mas convido-vos a ouvir o podcast que vale bem a pena e fico-me por aqui só para introduzir o assunto e tentar tornar o artigo mais interessante. Portanto, calha que uma piada é uma piada e a realidade é a realidade. Pode-se fazer piadas sobre a realidade, mas não deixam de ser uma piada, ou seja, uma representação humorística dessa realidade. Podemos gostar ou não da piada, até não a perceber de todo, mas não deixará, necessariamente, de ser uma piada.

O episódio levanta um ponto crucial sobre como o humor pode ser mal interpretado. Essa má interpretação pode ainda ser mais provável num ambiente polarizado. Por exemplo, cartoons políticos que satirizam figuras públicas podem ser vistos como ofensivos por um grupo, enquanto o outro grupo os vê como uma crítica muito oportuna. Isso reflete um viés de confirmação, onde as pessoas tendem a interpretar informações de uma forma que confirme suas crenças pré-existentes.

Os vieses cognitivos podem assim afetar a nossa percepção do humor. O humor, seja sobre que forma for, pode atuar como um espelho, refletindo os nossos próprios medos e preconceitos. Uma piada ou cartoon que alinhe com nossas crenças políticas ou sociais será mais prontamente aceite e considerado “engraçado”, enquanto algo que desafie essas crenças poderá ser visto como ofensivo ou inapropriado. Com mais polarização. Mais nós e eles. Mais os que rejeitam completamente a piada ou a adoptam, até como arma de arremesso.

O humorista é, frequentemente, considerado tanto como agente de uma das facções como da outra… em momentos que são quase simultâneos. Se a piada é sobre o líder de um partido, então é porque ele é de um dos outros e vice-versa.

Os tempos mais recentes, com o advento da internet, trouxeram novidades no que a isto se refere. Se parece não haver evidência de evoluções muito significativas na nossa espécie nos últimos 50 anos (nomeadamente em termos de processos mentais), o mesmo não se poderá dizer de quase tudo à nossa volta.

A teoria da desinibição online sugere que as pessoas são mais propensas a expressar opiniões extremas ou ofensivas online do que fariam pessoalmente. Isso pode explicar por que piadas ou cartoons políticos muitas vezes recebem reações extremas nas redes sociais ou nas caixas de comentários dos jornais na sua versão digital, com pessoas a interpretá-los literalmente em vez de como uma forma de sátira ou crítica social.

Mas porquê? A combinação de anonimato, invisibilidade, assincronia, dissociação imaginativa e minimização da autoridade cria um ambiente onde as inibições sociais normais podem ser reduzidas, levando a um comportamento mais extremo ou polarizado.

As eleições que se avizinham vão mostrar muito disto de forma amplificada. “Partidarites”, levam a menos diálogo e menos cooperação. Partidos e “partidarites” não são a mesma coisa, mas podem, por vezes, parecer muito a mesma coisa. Uma demasiado intensa lealdade e identificação na bolha partidária, comum na “partidarite”, podem facilmente levar a mais polarização.

Se juntarmos a utilização de estratégias de demonização[i], conjugadamente com falácias como a da bola de neve[ii], usadas no discurso público das lideranças políticas, não ajudamos nada a evitar os extremismos. Estamos assim a desviar-nos da discussão fundamentada e racional das questões reais substituindo-as por ataques emocionais e hiperbólicos.

Daqui, de positivo, parece-me que apenas poderemos vir a usufruir do trabalho dos nossos humoristas, com estímulos à sua criatividade e produção artística. Esta é uma ficção de boa qualidade e divertida, pois a realidade que a inspira, já essa, é contrastantemente de qualidade muito duvidosa e triste. E, já agora, desde o panfleto de 1729 às vezes até parece que regredimos no sentido de humor.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

[i] desacreditar o adversário retratando-o ou comparando-o com uma figura histórica qualquer que o simbolize o perigo que se quer associar ao adversário.

[ii] Esta falácia ocorre quando se argumenta que uma ação relativamente pequena ou moderada inevitavelmente levará a uma cadeia de eventos que culminará em algo extremo ou desastroso. No contexto político, isso pode se manifestar como a sugestão de que as políticas ou crenças de um adversário, mesmo que moderadas, são apenas o início de um caminho que levará a consequências extremas ou totalitárias.

NOTA: “incorrigível e manhosa”, no título, foi uma adaptação da expressão introdutória do sítio da internet https://www.josevilhenahumorista.com.