Ao possibilitar um número quase infinito de formas de comunicação, a internet livre e aberta, como a conhecemos no Ocidente, criou também um problema: os nossos dados, os nossos produtos e a nossa privacidade tornaram-se vulneráveis.

Como podem então os Estados democráticos proteger a vida online dos seus cidadãos e empresas sem recorrer aos mecanismos de vigilância e policiamento dos regimes autoritários?

Foi para responder a estes desafios que a administração Biden revelou, há dias, a “Declaração para o Futuro da Internet”, assinada pela Comissão Europeia e por outros 60 Estados, incluindo Portugal, onde denuncia o “autoritarismo digital” que censura informação independente, interfere em eleições, promove a desinformação e nega liberdades civis.

Na verdade, entre os signatários figuram democracias que já cederam à tentação de combater fogo com fogo e que utilizaram o manual de práticas autoritárias para contrariar os seus adversários online. Basta lembrar que há apenas dois anos, o Facebook removeu da sua rede três operações estatais por utilizarem contas falsas para interferir nos assuntos internos de outros países. Por trás destas campanhas estavam duas capitais: Moscovo e Paris.

Tratando-se de um documento político, sem imposições legais, a Declaração pretende sobretudo afirmar o sentido para onde o mundo liderado pelos Estados Unidos está a orientar a sua política geotecnológica. Ao avançar esta agenda, o Ocidente está a criar a sua própria esfera de influência digital.

Estamos, portanto, a assistir à aceleração de um decoupling tecnológico e à emergência de duas internetes, uma baseada na rede descentralizada de empresas, criadoras de software e donas das infraestruturas por onde navegam os dados, e outra onde são os Estados que dirigem e detêm o controlo sobre a atividade, os conteúdos e as relações estabelecidas online entre pessoas e empresas. O problema das esferas de influência é que, por natureza, são excludentes.

Se o tipo de arquitetura digital favorecida por países como a Rússia e a China já criava domínios de soberania digital, onde os utilizadores vivem experiências online muito diferentes dos que estão no país vizinho, a proliferação de iniciativas para reformar a governança da internet arrisca-se a fragmentar ainda mais a web.

Ainda que não seja do interesse do Ocidente cavar um fosso digital, sem vasos comunicantes entre as duas esferas, a Declaração americana oferece os benefícios de uma internet livre apenas àqueles que aderirem às suas regras, partindo o mundo cyber em dois. Adicionalmente, acaba por isolar mais de metade da população mundial, por via dos regimes políticos onde vivem: dos 10 países mais populosos do mundo, apenas um é signatário do documento – os próprios Estados Unidos.

A internet pode ser uma ferramenta para consolidar o Estado de Direito e a economia de mercado, como pode fraturar o sistema internacional e acelerar a corrosão interna das nossas sociedades. Os ciberataques a grupos de media, como aquele que o próprio Jornal Económico sofreu recentemente, só demonstram que os meios de comunicação continuam a ser alvos preferenciais pela importância política, económica e estratégica que têm nas democracias, enquanto garantes do pluralismo proibido nos regimes autoritários.