O anúncio do Euro Digital pelo Banco Central Europeu tem multiplicado as discussões sobre o futuro dos pagamentos no espaço SEPA (Single Euro Payments Area). Essa também tem sido, aliás, a preocupação oficial do Banco de Portugal, pois o Euro Digital nas wallets dos consumidores traria à economia a eficiência de se poder realizar qualquer pagamento com a facilidade de enviar mensagens de texto ou ler QRcodes.
Será que o Euro Digital virá mesmo a fazer a diferença no que toca aos pagamentos do dia-a-dia?
Os pagamentos no espaço SEPA passam hoje pelo uso intensivo do numerário e das transferências bancárias, com ou sem cartão. É que o dinheiro físico tem provado continuar a ser a escolha preferencial dos consumidores para os pagamentos são de baixo valor.
Ora, segundo um recente relatório do Euro Retail Payment Board (ERPB), mais de 80% dos pagamentos no ponto de venda ainda são realizados em dinheiro físico e essa contagem aumenta para mais de 90% se o valor da transacção for inferior a cinco euros (nota: o ERPB é a face visível SEPA Council, do qual fazem parte representantes de todos os tipos de actores no mundo dos pagamentos, das empresas aos consumidores, passando por todas as entidades financeiras, incluindo os bancos centrais).
A utilização intensa do numerário no espaço SEPA contrasta com o que se passa na China, que é talvez o país mais avançado na adopção de pagamentos electrónicos, e seguramente à frente do que se passa também nos EUA. A China, entre outros países asiáticos (e também alguns africanos) não passou pela adopção em massa das contas bancárias e dos respectivos cartões como suporte aos pagamentos electrónicos, tendo saltado diretamente, desde 2008, para a realidade dos pagamentos móveis, neste caso com o Alipay. Curiosamente, o mesmo aconteceu, exactamente no mesmo ano, no Quénia, com o M-PESA (significa dinheiro móvel em swahili), apesar desta solução recorrer a telefones celulares tradicionais em vez de Smartphones.
O sucesso dos pagamentos móveis na China tem sido tremendo. Podemos encontrar a prova disso no aviso aos comerciantes do próprio banco central chinês, lembrando-os veementemente da obrigação de não poderem aceitar apenas pagamentos electrónicos! Já o SEPA Council, para além da preocupação com os pagamentos móveis (neste caso chama-lhes instantâneos), também refere no seu relatório mais recente a necessidade de garantir a utilização do numerário como meio de pagamento inclusivo.
Sabendo da importância da palavra do SEPA Council, estará o Euro Digital em linha com sua estratégia?
No espaço SEPA, as transferências bancárias são a infraestrutura de todo o sistema de pagamentos electrónicos. Por exemplo, o pagamento com um cartão de débito vai dar sempre origem a uma transferência entre contas bancárias. O PSD2 (Payment Services Directive de 2015) veio introduzir os Smartphones no processo, agregando a identificação bancária (IBAN) a um número do telefone (com uma App ou uma wallet), para que o pagamento feito a partir de um Smartphone possa ser associado automaticamente a uma conta bancária sem necessidade de passar pelo homebanking.
Porém, esta norma esqueceu-se de incluir os pagamentos directos entre utilizadores, conhecidos por Peer-to-Peer (P2P), e o SEPA Council vem agora determinar a generalização dos pagamentos instantâneos ao P2P, com base nos números de telefone. Assim, as wallets dos smartphones passarão finalmente a poder executar pagamentos entre todas as entidades com conta bancária, empresas e consumidores, exactamente como já acontece na China. É, portanto, de prever que o sistema de pagamentos actual evolua no sentido da harmonização e interoperabilidade entre todos os processadores de pagamento e respectivos bancos.
Esta harmonização tem de começar num standard SEPA para QRcodes e pressupõe que os pontos de venda (POI – POint of Interaction) estejam preparados para processar os pagamentos instantâneos desta forma (nota: o ERPB chama QRcode standard e API Scheme a esta vertente da referida harmonização). De notar que um POI pode ser uma caixa registadora electrónica, mas nada impede que possa ser o próprio TPA (Terminal de Pagamento Automático) a suportar os QRcodes, tal como já acontece hoje com o MBWay.
Ora, para que o Euro Digital seja eficaz, também tem de poder ser transaccionado com wallets a partir de QRcodes. Além disso, os POI também têm de estar devidamente preparados com as respectivas API, o que é exactamente o que o SEPA Coucil vem agora a preconizar. Até parece que está a abrir o caminho à rápida adopção do Euro Digital assim que estiver disponível. Contudo, a interpretação mais correcta não é bem essa, pois, quando os QRcodes já fizerem parte do nosso dia a dia, o Euro Digital também não vai adiantar grande coisa, uma vez que a desmaterialização do dinheiro já manipula os euros no suporte digital dos actuais sistemas bancários.
O Euro Digital pode, sim, vir a simplificar extraordinariamente a arquitectura de entidades de processamento de pagamentos, tornando-a mais eficiente e que se reflectirá na diminuição das taxas do serviço, o que está longe de ser disruptivo.
Assim, mais uma vez se demonstra que Euro Digital não fará a diferença como meio de pagamento. Tal como já aqui defendi, é a programação do dinheiro como medida de valor que fará a verdadeira diferença. Encontramos assim o verdadeiro valor das CBDC (sigla inglesa para moedas digitais emitidas por bancos centrais) na livre auto-execução dos nossos direitos na blockchain, abrindo em definitivo o inelutável caminho da 4ª Revolução Industrial.