Termina esta semana o ciclo de audições na comissão parlamentar de inquérito (CPI) à TAP. Os trabalhos encerram com três audições de peso: Hugo Santos Mendes, Pedro Nuno Santos e Fernando Medina. O ex-secretário de Estado, o ex-ministro e o atual ministro das Finanças são os últimos a ocupar o lugar dos depoentes na sala n.º 6 da Assembleia da República, por onde passaram nos últimos quase quatro meses mais de 40 personalidades ligadas à companhia aérea ou à sua anterior e atual gestão empresarial e política, seja no âmbito da tutela sectorial ou acionista.
Muito se escreveu e muito mais se poderá escrever ainda sobre a comissão que permanecerá como uma ‘unha negra’ do atual Governo, mas desde março (quando iniciaram os trabalhos) até à data, é inegável que grande parte do que se passou no palco político nacional descolou, aterrou ou pelo menos sobrevoou a CPI à TAP.
Depois desta sexta-feira, os deputados da CPI passam a digerir os últimos mais de três meses de audições e revelações, que geraram forte turbulência dentro do Executivo e nas relações entre o mesmo e a Presidência. O relatório final desta comissão será discutido e votado a 13 de julho, de acordo com o calendário de trabalhos em vigor. Até lá, importa recordar.
As audições na CPI à TAP começaram no final de março deste ano, com a audição do Inspetor-Geral das Finanças, António Ferreira dos Santos, que encabeça a entidade pública que determinou a “nulidade” do acordo de rescisão celebrado entre a TAP e a sua ex-administradora Alexandra Reis. Esse acordo, recorde-se, previa uma indemnização de 500 mil euros, que a IGF declarou “indevida”.
Quem decidiu o valor? Quem autorizou o pagamento? Quem justifica a soma entregue à engenheira que depois seguiu para a NAV e, por fim, para a Secretaria de Estado do Tesouro?
Foram questões ecoadas pelos diferentes grupos parlamentares que aprovaram em fevereiro a proposta do Bloco de Esquerda (BE) para a constituição da CPI. A iniciativa contou com a abstenção do PS e do PCP. Esta foi a 70.ª comissão de inquérito desde a primeira legislatura, em 1976, e a segunda em 20 anos que incidiu sobre a companhia aérea.
A polémica em torno da indemnização paga a Alexandra Reis, que depois se alastrou à própria progressão de carreira da antiga gestora da TAP, surgiu num contexto por si já conturbado para o Governo, com as sucessivas demissões e exonerações de membros do Executivo e do PS, por diversos motivos. Alexandra Reis fez manchetes e nelas ficou.
Os 500 mil euros foram o pontapé de partida da CPI, que na sua constituição tem como objeto a avaliação do “exercício da tutela política da gestão da TAP” entre 2020 (quando se deu a renacionalização) e 2022, mas quase quatro meses depois — e tendo uma parte do valor sido já devolvido à TAP pela própria –, rapidamente deram lugar a outras datas, figuras e números tanto ou mais controversos.
O chamado ‘objeto’ da CPI – isto é, aquilo que é de facto o período de tempo e o tema a abordar pela comissão – foi uma baliza de inquérito muito criticada por alguns grupos parlamentares, nomeadamente da ala da direita. O objeto pretende contrair a análise à gestão pública da empresa só a partir de 2020, quando esta é recomprada pelo Estado aos acionistas privados David Neeleman e Humberto Pedrosa, que juntos encabeçavam o consórcio Atlantic Gateway, a quem o governo PSD/CDS vendeu a TAP em junho de 2015.
Contudo, foi recorrente e até sistémico o desviar dessa janela temporal 2020-2022. Pode-se dizer que a comissão de inquérito recuou até aos tempos de Fernando Pinto, que liderou a TAP quase 18 anos, e até 2014, quando o governo da coligação Portugal à Frente (PàF) cumpriu o compromisso dado à troika de privatizar a TAP e desprender o Estado Português das rédeas da companhia aérea.
Desde esse momento, muito foi repescado nesta CPI. Desde o valor por que foi vendida aos privados – 10 milhões de euros – aos polémicos ‘fundos Airbus’ que terão sido entregues pela fabricante de aeronaves ao acionista David Neeleman no momento da renegociação do contrato de compra de 12 aviões A350. O novo acionista privado trocou a encomenda por 53 aviões A320 e A330 e, pelo valor considerável de aeronaves, terá recebido um desconto comercial de 226 milhões de euros.
Esse valor terá depois sido injetado pela Atlantic Gateway na TAP, o que muitos entendem ter sido uma capitalização feita com capitais próprios da empresa, algo que não é permitido por lei. O ex-presidente da Parpública, Pedro Ferreira Pinto, chegou mesmo a dizer que os ‘fundos Airbus’ eram “um problema político montado agora”, e que não havia qualquer irregularidade a notar.
Já a consultora Airbone estima que o negócio possa ter lesado a TAP em mais de 444 milhões de euros.
Sem grandes conclusões quanto a essa capitalização, os deputados focaram-se então nos 55 milhões de euros que foram posteriormente pagos a David Neeleman pelo Estado para readquirir o controlo acionista da empresa. Humberto Pedrosa diz ter saído do investimento que fez na TAP de mãos a abanar (e ainda assim, diz que voltaria), mas o dono da Azul que entrou na TAP com capital oriundo da Airbus recebeu 55 milhões – soma que, soube-se na CPI, resultou da negociação entre os advogados de Neeleman e a Vieira de Almeida (VdA), em representação do Estado.
Outros números foram frequentemente assunto de inquérito. Foi o caso dos 65,6 milhões de euros de lucros que a TAP registou no ano passado, um resultado que a tutela não terá autorizado a ex-CEO Christine Ourmières-Widener a apresentar publicamente, mas que ainda assim representam os primeiros lucros da empresa em vários anos.
Da casa dos milhões para os milhares de milhões, era incontornável mencionar os 3,2 mil milhões de euros do auxílio estatal à companhia aérea. O número astronómico terá que ser suficiente para alavancar a TAP nos próximos dez anos, já que a Comissão Europeia não permite nem mais um cêntimo vindo dos cofres do Estado durante esse período.
Desta soma, faltam entrar na TAP 686 mil euros, no final deste ano e do próximo, pagos em duas tranches.
No seu objeto, pretendia-se averiguar como era conduzida a tutela política da gestão da TAP. Enquanto entidade do sector empresarial do Estado, a administração e as equipas de gestão da TAP respondem, em última análise, ao seu principal acionista – o próprio Estado.
Acontece que, tal como há duas TAP – a TAP, SGPS e a TAP, S.A. -, há duas tutelas governamentais responsáveis pela TAP. De um lado, as Finanças, que se encarregam da tutela acionista. De um outro, as Infraestruturas, que são responsáveis pelo aspeto sectorial da empresa.
O caso Alexandra Reis e os contornos que a ele conduziram levantaram sérias questões quanto à eficácia dessa gestão pública. Cabe ao Estado gerir, ou cabe ao Estado nomear a gestão? E neste último cenário, como é que o Estado legitima a gestão ou, noutro verso da medalha, a avalia, recompensa ou responsabiliza?
As questões foram levantadas por todas as alas políticas, mas no fundo a CPI pretendia avaliar se o Estado foi ou não um acionista competente e sério nas decisões que impactaram a gestão da companhia aérea, que até ao fim do ano encara um novo processo de privatização.
A lista é longa e contempla mais de 60 personalidades, algumas das quais vão responder apenas por declaração escrita. Ao todo, serão ouvidas presencialmente 46 pessoas, já a contar com as três audições desta semana. Pode rever aqui todas as audições e recordar a cobertura especial do Jornal Económico sobre o futuro da TAP.
Desde março passaram pelo Parlamento muitas figuras centrais da “novela” da TAP, como lhe chamou o líder do grupo parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias. A começar desde logo pelo CFO, Gonçalo Pires, que escapou à dupla exoneração de 6 de março, que ditou a saída de Christine Ourmières-Widener e Manuel Beja, a ex-CEO e o ex-chairman da TAP, que foram ouvidos logo na semana seguinte.
Da mesma forma e ainda sobre o pagamento de 500 mil euros, foi ouvida Alexandra Reis e também o presidente da Comissão dos Mercados e Valores Mobiliários (CMVM), Luís Laginha de Sousa, bem como o presidente da Comissão de Vencimentos da TAP, Tiago Aires Mateus.
Seguiu-se depois uma ronda de inquérito a atuais e anteriores responsáveis da Parpública – entidade que gere as participações acionistas do Estado -, e insistiu-se em chamar ao Parlamento todos (ou quase todos) os sindicatos ligados à TAP, aos aeroportos e à aviação civil. Ao todo, foram ouvidas 14 estruturas sindicais.
Já em maio, chegou a altura de ouvir a Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF), que aprovou o polémico relatório da IGF. De seguida, vieram nomes ligados à gestão privada da TAP. Foi o caso de Ramiro Sequeira, que já está de saída da Comissão Executiva, ou de Humberto Pedrosa, Miguel Frasquilho ou Diogo Lacerda Machado.
Foram ainda ouvidos nesse âmbito o CFO que ocupou o cargo três meses, João Weber Gameiro, e vários ex-governantes e ministros: Miguel Cruz, Pedro Marques, Sérgio Monteiro, João Nuno Mendes, Mário Centeno, João Leão e António Pires de Lima.
Sem esquecer, claro, as audições ligadas aos acontecimentos de 26 de abril no Ministério das Infraestruturas.
A 26 de abril deste ano deu-se no Ministério das Infraestruturas um episódio entretanto classificado como “rocambulesco” e “insólito” por várias personalidades políticas, cujas descrições detalhadas dos acontecimentos dessa noite são altamente contraditórias.
O atual ministro das Infraestruturas, João Galamba, terá exonerado o seu adjunto Frederico Pinheiro por este ter alegadamente ocultado notas das reuniões mantidas entre a ex-CEO da TAP e o grupo parlamentar do PS, antes da ida desta ao Parlamento.
Nessa reunião, que terá servido para combinar as perguntas e respostas, participaram deputados do PS, entre eles Carlos Pereira, que esteve na CPI à TAP até se saber da reunião, apesar de oficialmente ter saído por outros motivos.
Foi pouco depois que saiu também o presidente da CPI, Jorge Seguro Sanches, insatisfeito com a condução dos trabalhos por parte dos deputados. Deu lugar ao também socialista António Lacerda Sales, que ainda se mantém à frente da comissão.
Mas voltando ao ministério das Infraestruturas e a Frederico Pinheiro: o caso teve contornos de agressões, de alegado sequestro e envolveu, entre outras entidades, o Serviço de Informações de Segurança (SIS). Quem o acionou ou mandou acionar? O que tem o computador de Frederico Pinheiro de tão valioso? A resposta depende de a quem perguntar — e há até quem no Parlamento queira uma nova comissão de inquérito para avaliar o caso.
Caso que, costurado nas já tortos bordados da gestão da TAP, fez tremer as boas relações entre o Governo e a Presidência e ameaçou a estabilidade governativa. João Galamba chegou a pedir a demissão, mas Costa rejeitou. Marcelo não aprovou e continua a não aprovar.
É uma pergunta carregada para a qual importa recapitular a cronologia que foi sendo pontilhada nas audições. O ponto de partida dá-se na decisão de privatizar a TAP em 2014, cumprindo o desígnio imposto pela troika. Nesse momento, questionou-se o valor pelo qual foi vendida a companhia aérea (10 milhões) e avaliaram-se os meandros da gestão privada.
Soube-se, por exemplo, que Humberto Pedrosa teria tido direito, à luz do acordo assinado com o Estado, a sair da TAP com os 12 milhões que lá colocou. Tal não aconteceu, como o próprio reafirmou. Soube-se que os 55 milhões de eurose pagos a Neeleman não resultaram de nenhuma fórmula pré-concebida, mas sim de uma negociação entre sociedades de advogados. Soube-se também que os responsáveis da Parpública da altura não viram qualquer irregularidade nos ‘fundos Airbus’, que Humberto Pedrosa chamou de “doação”, e que era prática comum pagar avenças milionárias a ex-gestores e administradores para trabalhos de consultoria.
Mário Centeno veio dizer agora na CPI que estes temas não constavam na pasta de transição, algo que mereceu forte contestação por parte do PSD.
Depois, veio a decisão de recomprar a participação pública na TAP. Aqui, vieram à superfície as chamadas cartas de conforto enviadas pela Parpública a dar garantia aos bancos de que o Estado recomprava a empresa caso os novos acionistas incorressem em incumprimento das obrigações. No momento em que o governo de António Costa, apoiado pelo BE e pelo PCP, decide tomar o controlo estratégico e acionista da empresa, já a dívida da TAP crescia de dia para dia no adverso contexto pandémico — no qual o sector da aviação civil se viu particularmente afetado.
A TAP volta então a ser uma empresa pública, mas a cumprir uma rigorosa dieta de reestruturação imposta por Bruxelas. Chega Christine Ourmières-Widener, cuja liderança da companhia foi fortemente escrutinada pelos depoentes da CPI. É a partir deste momento que incide de facto o objeto da CPI.
Mas em abril deste ano, já demitida, Widener dá lugar a Luís Rodrigues, vindo da SATA. A própria demissão da ex-CEO e de Manuel Beja – que já escapa temporalmente aos trabalhos – foi alvo de inquérito. O ex-chairman chegou a dizer que a tutela “começou bem, mas perdeu o norte” e que “o papel do PS tem sido de proteção do Governo”.
O Jornal Económico soube que o contrato da CEO previa um bónus de três milhões – que se soube não ter sido aprovado pela Comissão de Vencimentos -, e veio-se a saber que a tutela não o tencionava pagar uma vez que o contrato apresentava irregularidades.
Por fim, soube-se que a própria demissão de dois terços da administração não estaria suportada juridicamente como alegava o Governo. Dias depois de demitir a CEO, o Ministério das Finanças terá procurado dar seguimento jurídico à decisão, tal como avançou o JE. A notícia motivou um desmentido e uma queixa junto do regulador por parte do ministro Fernando Medina.
O parecer jurídico, que não o era, materializou-se por fim no relatório da IGF que o Governo passou a assumir como sendo “mais do que suficiente” para justificar a exoneração.
As longas – muito longas – audições desta CPI trouxeram à costa alguns dados novos.
A problemática inexistência dos contratos de gestão não era assim tão conhecida, tal como não era de conhecimento público que seriam frequentes as reuniões preparatórias com deputados antes de audições parlamentares, como disse João Galamba que era.
Não se sabia, até então, que o ex-secretário de Estado Hugo Santos Mendes teria pedido à TAP para alterar um voo de Marcelo Rebelo de Sousa de forma a manter o Presidente “como o mais importante aliado” da companhia. “Gravíssimo”, disse na altura o primeiro-ministro sobre esse e-mail. Já o líder do PS, Carlos César, classificou a conduta de Hugo Santos Mendes como “estúpida”.
Alexandra Reis, na sua audição, revelou que travou um negócio entre a TAP e a Zamna Technologies, empresa do marido da ex-CEO, motivo pelo qual diz ter ficado “marcada” como um alvo.
Tal como se ficou a saber, pelos sindicatos, que os cortes de salários que ainda vigoram na companhia não foram uma imposição do Bruxelas ao abrigo do plano de reestruturação, mas antes uma decisão arbitrária do acionista Estado.
Serão ainda ouvidos esta semana Hugo Santos Mendes, Pedro Nuno Santos – que já desvendou na semana passada, na Comissão de Economia, ao que vem – e Fernando Medina. Há, portanto, importantes respostas ainda a registar.
Depois de concluídas as audições presenciais e recebidas as declarações por escrito, cabe à deputada-relatora Ana Paula Bernardo, do PS, elaborar o relatório final, que será depois discutido e votado a 13 de julho. António Costa já disse que só se pronuncia sobre o tema depois da conclusão dos trabalhos.
O objetivo de privatizar a TAP mantém-se, e Costa reafirmou que os termos dessa privatização serão aprovados muito em breve em Conselho de Ministros. Até lá, há um futuro em espera.
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