O ano de 2024 foi tenso e pleno de instabilidade política. Em Portugal, o governo minoritário navega à vista, intuindo que o mandato provavelmente não chegará ao fim. Ainda assim, e pese embora ter-se instalado o microciclo político no governo regional da Madeira, a situação nacional arrisca-se a parecer estável se comparada com o panorama europeu e internacional. Recordemos alguns dos eventos marcantes recentes e respetivas incertezas associadas que fazem do ano que vem uma caixinha de surpresas porventura não muito agradável.
Será a democracia um ideal que ainda inspira?
Uma tendência que não dá sinais de desvanecer é a força da direita radical e da extrema-direita e a fragilidade das democracias. Se dúvidas houvesse, a vitória de Trump desvaneceu-as. Essa vitória, por si só, marca grande parte do que podemos esperar para o ano vindouro.
Já para não falar de tudo o resto, não deixa de ser caricato ver um antigo Presidente cujo primeiro mandato foi marcado por um total desrespeito pelas instituições, incluindo o papel que teve no ataque ao Capitólio e na sombra da suspeita lançada sobre as eleições presidenciais de 2020, ser novamente eleito como se nada fosse.
Parece-me que a vitória de Trump em 2024, por muito que possa ser contextualizada pelo comportamento errático do partido democrata no ano que antecedeu a eleição, é indício de um sintoma mais profundo e preocupante para o respeito pelo estado de direito democrático.
A equação é simples. Algumas sondagens, incluindo as realizadas à boca da urna colocavam a democracia como uma das prioridades dos votantes norte-americanos, e mesmo a primeira prioridade entre os apoiantes de Kamala Harris. E esta insistiu com veemência (e certamente com razão) que Trump era uma ameaça à democracia. E no entanto, de que valeu, em última instância, tal tema, em termos eleitorais? Não muito, dada a expressão da vitória de Trump.
Por muito que nos custe, parece que a democracia, sobretudo para quem não tem memória de não a ter vivido ou um legado familiar ou geracional próximo que avive a perceção da repressão política, dá sinais de já não ser um ideal mobilizador por si só. O sucesso da ideia do ‘homem forte’ que ‘venha pôr ordem nisto’ (e que nem precisa de vestir farda, mas se vestir, também não está nada mal) e que ‘corte a direito’ (sejam boas ou más as suas decisões) parece estar aí para o mostrar – e a impunidade de todos os autocratas ou quase-autocratas deste mundo deixa pouca margem para dúvidas a este respeito.
Como resistirão as instituições norte-americanas a um segundo mandato de um Presidente Trump sem quaisquer motivos para se restringir, impune face a casos judiciais e pronto para perdoar os invasores do Capitólio? É difícil dizer, mas poucos obstáculos parecem existir a um poder arbitrário e quase absoluto, tendo em conta que tem todos os ramos do poder na mão.
Europa e Médio Oriente
No contexto das nossas principais preocupações, os riscos são grandes. A Europa, e nomeadamente o eixo franco-alemão, estão em declínio. Em França, François Bayrou dificilmente conseguirá ter margem de manobra para fazer o que quer que seja e o cerco do Rassemblement National a Macron é cada vez maior. Na Alemanha, Scholz teve o que queria ao perder o voto de confiança e abrir caminho a eleições antecipadas, mas nada leva a crer que reforce a sua posição na sequência das mesmas. Na verdade, a estagnação da economia alemã faz-nos apenas esperar mais descontentamento e o apelo do populismo.
À escala europeia, avizinham-se decisões difíceis. Sendo provável que as relações se tornem mais tensas no eixo transatlântico, e com uma preocupação dupla a pairar em muitas capitais europeias – medo da ameaça russa no contexto de um menor compromisso de Trump com a segurança europeia, e receio de uma recessão económica na Europa – adivinha-se a mais que provável transição do Estado social para o estado letal. Menos proteção social (e menos aposta na ciência fundamental, já agora) e mais indústria de defesa – oxalá me engane… mas os sinais estão cá.
No Médio Oriente, tudo continua a mexer. Caiu um ditador brutal como Assad e é muito pouco claro o tipo de regime que se seguirá. A Saddam seguiu-se o Estado Islâmico. A Assad, só o futuro o dirá. Nisto, Netanyahu, é claro, não perdeu tempo. Das centenas de ataques às bases militares sírias, assegurando-se que as novas autoridades não tenham qualquer estrutura militar funcional, ao plano para aumentar os colonatos nos Montes Golã, o passo foi curto. Depois da catástrofe em Gaza, e dos mandados do TPI, Netanyahu continua a agir impunemente no Médio Oriente, sem que isso pareça causar grande preocupação. Quanto à Síria, outra das questões imediatas é o povo curdo – tendo em conta o envolvimento, ainda não totalmente esclarecido, da Turquia, fica a questão: serão os curdos, tantas vezes usados e em seguida descartados pelo Ocidente no passado, mais uma vez abandonados à sua própria sorte?
À primeira vista, dir-se-ia que Netanyahu e Putin terão sorrido com a vitória de Trump. Também a Ucrânia será provavelmente forçada a ceder na sua resistência; resta saber em que termos.
E o clima?
Finalmente, podemo-nos perguntar a que velocidade continuaremos a caminhar para a catástrofe climática. No filme recentemente estreado de Pedro Almodóvar, O Quarto ao Lado, John Turturro interpreta a personagem de Damian Cunningham, um académico dedicado a questões ambientais, e que admite uma certa monomania com as alterações climáticas.
Numa cena importante do filme, lança-se numa tirada nestes termos (aqui em tradução livre, da minha responsabilidade): “Lê a ciência e depois vê o que o mundo faz com isso… estão a libertar a maior quantidade de sempre de CO2 para o ar. Mais tarde ou mais cedo, e temo que seja mais cedo, isto vai tudo para o inferno. E nada vai acelerar mais o fim do planeta do que a sobrevivência do neoliberalismo e a ascensão da extrema-direita. E aqui temos ambos a marchar lado a lado.”
Voltemos da ficção à realidade. Na comunidade de cientistas climáticos a reeleição de Trump foi recebida com natural preocupação. Ninguém se esquece das trapalhadas durante a pandemia, ou da saída dos Acordos de Paris (provável de se repetir agora). Para compor o ramalhete, temos a anunciada nomeação de Robert F. Kennedy Jr, cujas posições estão muito perto das de um negacionista das vacinas (incluindo o apoio à tese, tantas vezes desmentida, de uma alegada correlação entre o autismo e as vacinas).
Tudo isto traz-nos a uma situação que tem qualquer coisa de irracional. A personagem de Turturro tem piada pelo exagero; mas o alarme é justificado. A confiança nas instituições (incluindo as democráticas e científicas) vai-se dissolvendo. Há um simulacro de normalidade mas, a confirmarem-se as previsões, a velocidade com que se vai destruindo o planeta não nos pode deixar tranquilos. No meio das incertezas, resta a esperança que, com coragem e resiliência, uma transformação com sentido possa germinar.