Há pouco mais de três anos publiquei aqui um ensaio sobre a tokenização de activos e o direito de propriedade. Como a web3 já está a começar a fazer toda a diferença, faz sentido revisitar o tema do ponto de vista da sua utilidade como veículo de direito.

É preciso não esquecer que tudo começou com a Bitcoin no mundo das finanças descentralizadas (DeFi). Não deixou de ser surpreendente o aparecimento de sistemas tecnológicos a gerir reservas de valor e respectivas transacções sem precisar de nenhuma entidade de direito responsável por todo o processo.

É, por exemplo, muito diferente das transacções bancárias, onde o nosso dinheiro não passa de um registo informático sob a responsabilidade das instituições financeiras licenciadas para tal. De notar que se um banco entrar em falência, na União Europeia (UE), apenas temos direito a uma verba com um tecto máximo na casa dos cem mil euros.

Ou seja, o dinheiro que temos depositado no banco não é uma representação desmaterializada de um direito inalienável no contexto da nossa economia, mas apenas uma responsabilidade do próprio banco, e essa mesma responsabilidade tem limites.

Já com uma DLT (ou Blockchain para simplificar), o direito é exercido de uma forma muito mais conveniente, sem precisar de envolver nenhuma entidade responsável, pois é a simples posse de um token que confere esse mesmo direito. Foi essa a revolução que deu origem à DeFi e às criptomoedas em particular. E é essa forma tão conveniente de poder exercer o direito que abre caminho à tokenização de qualquer outro tipo de activo. Sabendo que vivemos num Estado de direito, e no pressuposto de que queremos que assim continue a ser, até que ponto são os token compatíveis com a nossa sociedade?

Um token é uma chave criptográfica que começa por ser anónima, pois ninguém saberá quem o criou até que tal seja desvendado na primeira transacção. É por isso que se diz ser pseudo-anónimo. Ora, os Estados de direito são razoavelmente avessos ao anonimato a partir do momento em que o exercício do direito, ou os activos envolvidos, tenham valor significativo. E assim vai continuar a ser enquanto haja vontade em poder penhorar os bens dos malfeitores.

Então, será que poderemos tokenizar o direito de propriedade na economia regulada, beneficiando da tremenda eficiência transaccional dos token? Tal só fará sentido se também pudermos contar com os activos e direitos sujeitos a registo.

Na verdade, é muito simples. Tal como hoje, tudo passará pela identidade digital dos intervenientes na transacções, pessoas e bens.

A identidade digital das pessoas jurídicas já tem um caminho trilhado com a chave móvel digital, uma solução de extrema utilidade mas ainda longe de conseguir rivalizar com a conveniência de uma Super app. Essa conveniência poderá aparecer em breve, assim que as carteiras digitais baseadas na identidade auto-soberana conquistem os bolsos e os corações dos consumidores, tema aliás já aqui discutido.

A bem dizer, o registo tokenizado de direitos já começou com a tokenização dos primeiros activos financeiros, cujas licenças puderam começar a ser pedidas desde Março de 2024. Seguir-se-ão outras alternativas, nesta fase ainda dependentes de uma entidade depositária centralizada para garantir o registo e a custódia dos direitos. Apesar de ser uma solução que passa ao lado das potencialidades da auto-execução ecossistémica, é a única aplicável no contexto do actual ordenamento jurídico, o que é válido, aliás, para todos os espaços geopolíticos actuais.

O futuro da identificação jurídica tokenizada de bens será diferente e ainda mais interessante, pois a Res Digitales permitirá uma redução extraordinária dos custos de transacção por não precisar de qualquer tipo de depositário para garantir o controlo das identidades e das transacções no cumprimento da lei.

O exercício do direito de propriedade na web3 com a tokenização demonstra que já estamos na entrar a era da 4ª Revolução Industrial e o sucesso pertencerá a quem que melhor souber aproveitar a mudança subjacente. Apetece dizer outra vez: vamos a isto?

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.