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António Arnaut: o homem que temia pela sustentabilidade da democracia

Socialista, maçon, poeta, António Arnaut era uma espécie de socialista completo, dos que marcavam o socialismo europeu antes da sua deriva para a social-democracia. Ministro de um dos governos mais efémeros da democracia, a criação do SNS subtraiu-o para sempre do esquecimento dos portugueses.
21 Maio 2018, 17h04

Se a democracia não conseguir sustentar os direitos fundamentais das pessoas – como a saúde e a educação – então é preciso “temer pela sustentabilidade da própria democracia”. António Arnaut, o socialista que assinou o decreto que criou o Serviço Nacional de Saúde, não tinha dúvidas de que contribuiu de forma indelével para transformar a democracia ganha a 25 de Abril de 1974 num instrumento ao serviço de todo o país.

Nascido em Coimbra a 28 de janeiro de 1936, cidade onde acabaria por licenciar-se em Direito (1959), António Arnaut chegou muito cedo às fileiras dos que, na universidade, se opunham ao regime de António Salazar e mais tarde de Marcelo Caetano.

Participou na comissão distrital de Coimbra da candidatura presidencial de Humberto Delgado, (1958), foi arguido no processo da carta dos católicos a António de Oliveira Salazar (1959), e candidato à Assembleia Nacional pela Comissão Democrática Eleitoral (CDE), no círculo de Coimbra, nas eleições legislativas de 1969.

Não foi por isso com espanto que os seus colegas o viram envolver-se na criação do Partido Socialista ao lado de Mário Soares, em 1973, na cidade alemã de Bad Munstereifel. Tinha o cartão de militante número quatro.

Como todos os socialistas de então – os verdadeiros republicanos – esteva também envolvido na Maçonaria, onde, já depois de acabar a sua atividade política, teve uma posição de revelo: foi Grão Mestre da Loja do Grande Oriente Lusitano entre 2002 e 2005. Nessa circunstância, tentou uma disrupção: a abertura da Maçonaria à sociedade. Nem todos o compreenderam – até porque parecia haver ali uma incongruência, mas para António Arnault, a dissimulação e o secretismo quase clandestino já não fazia muito sentido numa democracia madura como acreditava ser a portuguesa.

Muito anos antes, logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, rumou com os restantes socialistas que haviam fundado o PS para a Assembleia Constituinte – que haveria de ter como função criar a Constituição, que saiu laica, republicana e socialista. Outros tempos.

Foi depois deputado da Assembleia da República (onde chegou a desempenhar funções de vice-presidente) e ministro dos Assuntos Sociais do 2º governo constitucional, liderado por Mário Soares (1978). Foi nessa circunstância, apesar de o governo de que fazia parte (uma estranha coligação entre socialistas republicanos e democratas-cristãos, PS e CDS) ter durado pouco mais que meio ano, que tomou parte na redação do quadro jurídico do que viria a chamar-se Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Acabaria por decidir retirar-se da política ativa – talvez porque percebeu que os socialistas deixavam o republicanismo e insistiam na social-democracia – mas não desistiu da intervenção cívica, que nunca abandonou, tanto por via de palestras, textos e livros.

De livros fala veementemente a sua biografia: não apenas de ensaio político, mas também o romance e a poesia estiveram presentes, no seguimento de uma tradição que é muito cara a Coimbra. Foi aliás por isso que criou o Círculo Cultural Miguel Torga, que chegou a dirigir e a Associação Portuguesa de Escritores Juristas (1995), de que foi presidente.

O ano de 2016 seria de consagração – já muitas homenagens lhe tinham feito, mas umas que marcam mais que outras: a 7 de abril de 2016, nas comemorações do Dia da Saúde, foi elevado ao grau de Grã-Cruz da Ordem da Liberdade pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa; e foi nomeado presidente honorário do PS no XX congresso do partido, após a morte de António de Almeida Santos.

“Breve é a vida e o seu rasto. A posteridade é apenas a memória acesa de uma vela efémera. Para que a memória não se apague, temos que nos dar uns aos outros, como elos de uma corrente ou pedras de uma catedral”, escreveu numa das suas obras. A criação do Serviço Nacional de Saúde é matéria necessária e suficiente para que António Arnault dificilmente seja apagado da memória coletiva dos portugueses.

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