Óscar Afonso antecipa que o PS vai facilitar a aprovação do Orçamento sem grandes contrapartidas, ou que queira mesmo fazer acordos a mais longo prazo em matérias fundamentais como fiscalidade e a reforma do Estado. Dá aqui o exemplo da retoma do acordo de 2014 entre PSD e PS para o corte gradual da taxa de IRC até 17%.
Quais as dificuldades que antecipa em fazer o próximo OE face à incerteza mundial?
Um Orçamento de Estado (OE) é uma previsão de despesa da qual depende uma previsão de receita, que por sua vez está fortemente associada a um cenário de crescimento económico que deve ser credível.
Tanto o FMI como a Comissão Europeia baixaram recentemente as previsões de crescimento para Portugal em 2025 e 2026 (para 2,0% e 1,7%; e 1,8% e 2,2%; respetivamente, que compara com as projeções de 2,4% e 2,6% da AD no programa eleitoral com que ganhou as eleições).
No que se refere à evolução da economia em 2025 – o que terá influência na atividade do ano seguinte e na elaboração do OE 2026 –, o CFP indicou, no início de maio, que o crescimento de 2,4% do PIB previsto pelo governo para 2025 é “provável, mas não prudente”, por ser superior às projeções mais recentes para a economia portuguesa apresentadas por outras instituições.
A Comissão espera agora um défice de 0,6% do PIB em 2026, em vez de um excedente, o que significa que o novo governo terá de fazer escolhas difíceis com um ‘bolo a crescer menos’, admitindo que as previsões da Comissão, mais atuais, são mais certeiras.
E se a Comissão tiver razão?
Se a economia crescer apenas 1,8% em 2025, muito provavelmente será o investimento público a ser sacrificado, como habitualmente, para compor as contas e manter um ligeiro excedente, isto se as ‘folgas’ embutidas no OE2025 não bastarem. Quanto a 2026, a seu favor, em termos de estímulo da economia, o Ministro tem a execução do PRR até 2026, mas com as segundas eleições legislativas antecipadas no espaço de um ano, estamos em risco de não conseguir executar tudo e vir a perder fundos, como tenho alertado. Vejamos se a recente reprogramação do PRR é suficiente para evitar a perda de apoios europeus.
Quais são os principais riscos externos?
São vários. Desde logo, a guerra tarifária entre os EUA e a UE, bem como, indiretamente, entre os EUA e a China.
Portugal, enquanto pequena/média economia aberta, tem um mercado interno pequeno e só pode almejar a uma subida sustentada do seu nível de vida através das exportações (alargamento do mercado). Ora, o aumento das tarifas penaliza precisamente as exportações, ao elevar os custos das trocas comerciais. Se não houver um acordo entre EUA e UE, que limite o agravamento tarifário bilateral, muitas empresas portuguesas deixarão de exportar para os EUA e a economia ressentir-se-á até que haja um reajustamento (diversificação para outros mercados). Este é apenas o impacto direto da guerra tarifária, relativamente limitado.
Vê outros impactos?
Mais penalizador é o efeito indireto, pela redução do crescimento da própria UE – nomeadamente da Alemanha, cuja crise económica se agravaria –, que é o nosso principal mercado de exportação. Num cenário ainda pior, se os EUA e a China não chegarem a acordo, então corremos o risco de um escoamento na UE dos produtos chineses de baixo preço que deixariam de ir para os EUA, sendo crucial a capacidade de negociação das autoridades europeias nos vários tabuleiros e a uma só voz.
Os riscos geopolíticos continuam elevados, com realce para os conflitos na Ucrânia e no Médio Oriente. A permanência ou agravamento desses conflitos é uma ‘nuvem’ bem escura no horizonte da economia mundial.
Há ainda riscos de uma nova crise financeira global no horizonte, que pouco ouço falar.
No mesmo fim de semana das eleições legislativas antecipadas em Portugal, a agência de notação Moody’s retirou o rating máximo de ‘triplo A’ à dívida soberana dos EUA – com perspetiva negativa, pelo que poderá haver novos cortes – devido ao acumular de dívida pública, e os republicanos não se entenderam quanto ao programa orçamental da Administração Trump, que prevê a extensão e até ampliação dos cortes de impostos (incluindo aos mais ricos), sendo a redução de despesa prevista insuficiente (para já) para evitar que a dívida continue a aumentar.
Ingredientes para novas crises…
Juntem, à perda do rating máximo da dívida soberana dos EUA, os riscos do sistema bancário ‘sombra’ (shadow banking), a emergência das criptomoedas e o afrouxamento regulatório da banca promovidos pela administração Trump, bem como os desequilíbrios macroeconómicos globais, só para falar dos principais fatores, e temos os ingredientes para uma futura nova crise financeira global. Relembro que a crise imobiliária do subprime, que levou à crise financeira e grande recessão global de 2008 – desencadeando depois a crise de dívidas soberanas e o pedido de ajuda externa de Portugal – teve origem nos EUA. Convém estarmos atentos, sobretudo o governo e os reguladores do setor financeiro, ao que se vai passando nestas áreas.
Portugal tem vindo a reduzir o rácio da dívida pública…
… e está hoje menos exposto a oscilações nos mercados internacionais. É crucial que prossigamos uma estratégia de redução gradual do rácio da dívida – particularmente perante um contexto internacional complexo e com riscos crescentes –, mas com uma melhoria da composição e da qualidade dos agregados orçamentais, com menos peso da despesa corrente primária para acomodar um maior peso do investimento púbico e um corte significativo da carga fiscal de IRS e, sobretudo, de IRC. A reforma fiscal e do Estado são fundamentais, mas há muitas mais que o país precisa fazer.
Quais são as principais dificuldades que o governo vai ter a fazer o próximo OE?
É mais do que apenas o próximo OE que está em jogo proximamente, é o futuro do nosso sistema político e do país. O OE2026 será apenas uma consequência do desenrolar desse jogo.
A meu ver, face aos resultados eleitorais, caberá ao novo governo da AD conseguir os acordos necessários com os dois principais partidos da oposição – Chega e PS –, consonante os temas, para levar a cabo o seu programa eleitoral, que a meu ver peca pelo défice de reformas ou falta de detalhe.
Dado o grau de desgaste e atritos pessoais entre os líderes da AD e do Chega, com vários episódios de desavenças na anterior legislatura, é difícil perceber se e como alcançarão algum acordo de incidência parlamentar, mesmo que pontual, mas exige-se profissionalismo, a bem do país.
Se a AD não se entender com o Chega, pelo menos nalgumas matérias, associando André Ventura a algumas medidas e opções de governação, com os custos políticos inerentes, corre o risco de nas próximas eleições perder mesmo a maioria para o Chega ou ter de dar lugar a uma nova liderança na AD que consiga entendimentos com esse partido, sobretudo se continuar a adiar reformas essenciais e não conseguir resolver problemas cruciais do país.
E do lado do PS?
Ao novo líder do PS exige-se que esteja à altura das circunstâncias e da história do partido, pois é a sua sobrevivência que está em jogo, o que poderá conseguir, a meu ver, aproximando-se do centro e abrindo caminho a acordos com a AD em matérias fundamentais para o crescimento e desenvolvimento do país.
Por exemplo, sinalizar a retoma do acordo de 2014 entre PSD e PS para a redução gradual da taxa de IRC até 17% – celebrado entre o governo de Pedro Passos Coelho e o então líder do PS, António José Seguro, tendo sido depois ‘rasgado’ por António Costa –, que está prevista no programa de 2025 da AD, seria um passo importante (e uma inversão face à anterior liderança, que correu mal) e uma vitória sobre o Chega, se fosse alcançado um acordo.
Entendo que a eliminação da progressividade do IRC é mais prioritária para a atração de investimento estruturante, mas ainda mais importante é a previsibilidade e confiança dos investidores na não reversão do desagravamento fiscal. Ressuscitar o acordo de 2014 seria um sinal de confiança do PS e da própria AD na recuperação da tradicional alternância de poder em Portugal.
E quanto à reforma do Estado?
É crucial um acordo sobre a reforma do Estado, pelo menos quanto a objetivos – com realce para a redução do rácio de entradas por cada saída de funcionários públicos para um valor inferior a 1, o que deve resultar de melhorias na gestão e maior eficiência da despesa pública –, podendo ser atingidos com medidas de política da respetiva preferência. O retorno a um défice público em 2026 (0,6% do PIB) sinalizado pela Comissão Europeia apenas sublinha a urgência da reforma do Estado. O que está em jogo, além da capacidade de diálogo do novo governo AD, pois não tem a maioria absoluta, é a liderança efetiva da oposição, o que poderá até beneficiar a AD se a competição for responsável.
Se o Chega se moderar…
… e mostrar responsabilidade e capacidade para se substituir ao PS como principal líder da oposição, poderá mudar, desde já, o futuro do sistema político em Portugal.
O OE2026 será o resultado destas dialéticas. Se não houver acordos, dada a impossibilidade de realização de novas eleições, ficaremos em duodécimos, o que significa usar o OE2025 em 2026.
Como será também um ano de execução do PRR, essa possibilidade não deverá levantar grandes problemas. Julgo mesmo que o OE2025 foi preparado – maximizado – tendo em mente a possibilidade de vir a ser também usado em 2026, dada a dificuldade de obtenção de acordos com a oposição. Penso que todos se lembram ainda das negociações rocambolescas do OE 2025 entre o governo AD e o PS, que não levaram a um acordo por causa de um ponto percentual de IRC, mas acabaram por permitir a viabilização do documento pelo PS. Se não tivesse havido eleições antecipadas e o governo tivesse continuado, seria ainda mais difícil um acordo para viabilizar o OE2026, justificando um OE2025 ‘2 em 1’.
No atual cenário, com a ‘derrocada’ eleitoral do PS, é possível que a nova liderança facilite a aprovação do OE2026 sem grandes contrapartidas, ou, melhor ainda, se for mais ambicioso, queira fazer acordos a mais longo prazoem matérias fundamentais como tendo em vista preservar a lógica de alternância tradicional de poder entre PSD/AD e PS, e retirar espaço para negociações entre o governo e o Chega, que poderão tornar o PS irrelevante a prazo, como sucedeu em situações similares noutros países.
Para fazer o OE com incerteza, é crucial uma abordagem flexível. Mas o que deve incluir concretamente?
Essa flexibilidade passa, desde logo, pela referida necessidade de diálogo do governo tendo em vista alcançar acordos com o PS e o Chega, consoante as matérias, o que será crucial para implementar as medidas e reformas necessárias, bem como limitar as contrapartidas e os custos orçamentais associados, tanto quanto possível.
Em matéria de cenários macroeconómicos, deve ser reforçada a análise de riscos do OE2026. Num cenário em que a incerteza se prolonga na vertente comercial, o relatório do OE2026 deverá ter especial atenção à análise de sensibilidade (riscos) que acompanha o cenário macroeconómico, adaptando os choques simulados à gravidade do contexto, se necessário. Por exemplo, o relatório do OE2025 simulou uma redução de 2 p.p. no crescimento da procura externa face ao cenário base e de 1 p.p. no caso da procura interna, valores que poderão ser elevados se o cenário de guerra comercial se agravar. E as ‘folgas’ não devem ser exageradas e devem ser em montante ajustado ao contexto e ao grau de incerteza, devendo ser explicadas por uma questão de transparência e prestação de contas.
Mais importante, e o maior garante da sustentabilidade orçamental, do Estado Social e do nível de vida, é elevar o potencial de crescimento económico do país, o que requer reformas estruturais, que devem ser incorporadas no próximo Orçamento e nos seguintes.
Podem ser ajustadas às adversidades?
Elas são cruciais para o desenvolvimento do país e devem ser prosseguidas mesmo que o seu ritmo possa ter de ser ajustado em função da adversidade do contexto externo, mas este não deve ser um pretexto para que as reformas continuem a ser adiadas sine dia.
Uma boa parte dos problemas atuais mais prementes – com realce para a saúde, a habitação e o elevado esforço fiscal, associado à ineficiência dos serviços públicos e da despesa pública – exigem reformas e tempo, não pensos rápidos. A emergência do Chega resulta precisamente da insatisfação da população com a incapacidade de resolução dos seus problemas pelos sucessivos governos – sobretudo dos do PS, que tem estado mais tempo no poder –, porque privilegiaram sempre uma lógica eleitoral curto prazo em detrimento do médio e longo prazo, em grande parte porque nunca foram capazes de dialogar e alcançar entendimentos a uma ou mais legislaturas, como o fizeram outros países mais desenvolvidos, como a Irlanda.
Tagus Park – Edifício Tecnologia 4.1
Avenida Professor Doutor Cavaco Silva, nº 71 a 74
2740-122 – Porto Salvo, Portugal
online@medianove.com