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‘Caso Marega’. Especialista considera regulamento disciplinar da Liga “subjetivo, com sanções de valor reduzido e pouco disuasoras”

Sobre o artigo 187.º do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, que prevê a infração disciplinar de “Comportamento incorreto do público”, o consultor da Abreu Advogados, Alexandre Mestre, começa logo por apontar um conceito “juridicamente indeterminado”.
20 Fevereiro 2020, 07h45

Alexandre Miguel Mestre, consultor da Abreu Advogados, explica em entrevista ao JE quais as penas que estão em causa no designado “caso Marega”, nomeadamente no que diz respeito ao Vitória de Guimarães e adeptos. No que diz respeito ao artigo 187.º do mesmo Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, que prevê a infração disciplinar de “Comportamento incorreto do público”, este especialista realça que a redação do mesmo “não será a mais feliz”: “é subjetivo e prevê sanções de valor reduzido e pouco disuasoras”.

Qual o enquadramento legal deste tipo de situações como aconteceu ontem no Estádio do Vitória SC?

Os fatos sucedidos no Estádio do Vitória SC remetem-nos para três ângulos de análise distintos: um plano disciplinar – que tem que ver com eventual responsabilidade disciplinar do Vitória, por força do alegado comportamento racista de alguns adeptos, aplicando-se aí o Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional; um plano contraordenacional, que tem que ver com eventual coima (estamos no domínio de ilícitos de mera ordenação social) a aplicar pela recém-criada Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto (APCVD), nos termos de uma Lei, da Assembleia da República, que combate a violência associada ao desporto, incluindo fenómenos de racismo; e um plano criminal – apurar da existência de eventuais crimes que possam ter sido praticados, algo já desencadeado pelo Ministério Público, que, como se sabe já ordenou a abertura de um inquérito.

 

Que penas podem estar em causa neste caso?

No plano disciplinar, há, desde logo um artigo, o 113.º do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, referente a “comportamentos discriminatórios em função da raça, religião ou ideologia”, sancionado com 1 a 3 jogos à porta fechada e, acessoriamente, com multa a fixar entre 200 UC (20.400 euros) e 1000 UC (102 mil euros). Note-se porém – e tenho vindo a alertar para isso mesmo – que para que o Vitória seja sancionado terá que se fazer prova, que se demonstrar, que aquela sociedade desportiva promoveu, consentiu ou tolerou a entoação dos cânticos racistas, os insultos racistas. Não há aqui uma responsabilidade objetiva, independente de culpa. Há sim, uma responsabilidade subjetiva: tem de se demonstrar que houve dolo, intenção, vontade, propósito do Vitória, ou, pelo menos, uma postura mais negligente, displicente, no sentido em que consentiu, tolerou, não fez tudo o que esteve ao seu alcance para evitar os danos. E isso, na prática, parece-me muito difícil de conceber que tenha ocorrido e, a ter ocorrido, que seja facilmente demonstrável.

Existe ainda uma outra norma eventualmente aqui aplicável, o artigo 187.º do mesmo Regulamento Disciplinar, que prevê a infração disciplinar de “Comportamento incorreto do público”, segundo o qual o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamentos social ou desportivamente incorretos, designadamente insultos, é sancionado com multa de 5 UC (510 euros) a 15 UC (1.530 euros). Também aqui a redação não será a mais feliz: “comportamento incorreto do público” é subjetivo, é um conceito juridicamente indeterminado; por outro lado, parecem-me sanções de valor muito reduzido, pouco dissuasoras.

No plano contraordenacional, a lei sanciona a prática de atos de incitamento ao racismo com uma contraordenação punível com coima entre mil e 10 mil euros. Pode ainda ser aplicada uma sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos por um período até dois anos. Enfatize-se aqui que, ainda nos termos da lei, se houver fortes indícios da prática dos atos de incitamento ao racismo, pode o presidente da APCVD, mediante proposta do instrutor do processo, impor ao arguido, logo como medida cautelar, a interdição de acesso ou permanência em recinto desportivo onde se realizem espetáculos desportivos, no caso de futebol, até decisão (final) do processo.

No plano criminal, podemos estar aqui perante um “crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência”, tipificado no artigo 240.º do Código Penal, sendo aqui aplicável a alínea b) do respetivo n.º 2, se pune com pena de prisão de seis meses a cinco anos quem, publicamente, difamar ou injuriar outrem por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional. Note-se que o legislador não prevê uma pena de multa alternativa à prisão, à privação da liberdade, o que evidencia a censurabilidade social do que aqui está em causa. Falamos de um crime público, não dependente de queixa, daí também que o Ministério Público já tenha agido.

Que pena pode ser aplicada a um adepto que seja identificado a proferir este tipo de insultos?

Antes de mais, diga-se, que nos termos da lei, é condição de permanência de um adepto num estádio o não entoar cânticos racistas ou xenófobos, pelo que deveriam os assistentes de recinto desportivo (stewards) e as forças policiais, se e quando identificados os adeptos, ter ordenado a sua saída: “afastamento imediato”, como prevê a lei.

Por outro lado, e como já referido, os adeptos podem ser sancionados com uma coima entre mil e 10 mil euros e pode ser-lhes igualmente aplicada uma sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos por um período até dois anos, e mesmo a referida medida cautelar até decisão final do processo.

Se no caso concreto os adeptos envolvidos nas manifestações racistas forem associados do Vitória, manda a lei que o Vitória os sancione, impedindo o acesso no estádio ou mesmo expulsando-os.

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