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Catarina Martins: “Adiar a dívida de empresas, trabalhadores e famílias não vai resolver nada”

Coordenadora do Bloco de Esquerda considera que algumas medidas de emergência e de estabilização tomadas pelo Governo não estão a acautelar o futuro. E teme que empresas que poderiam ser viáveis acabem por fechar portas quando tiverem de pagar empréstimos abrangidos pelas moratórias.
15 Junho 2020, 08h17

As moratórias ao crédito são um presente envenenado para os atingidos pela crise pandémica, defende a coordenadora do Bloco de Esquerda (BE), Catarina Martins, que quer mais apoios a fundo perdido e critica a capitalização dos juros dos empréstimos, sobretudo quando a banca se está a financiar em condições muito vantajosas.

O Bloco de Esquerda (BE) defendeu que os salários deveriam ser pagos a 100%, mas no Orçamento Suplementar e no Programa de Estabilização Económica e Social (PEES) está previsto um novo regime que não cobre a totalidade dos salários. Vão propor alterações na especialidade?

É uma das matérias que para nós não está resolvida, pelo que um voto a favor seria claramente precipitado neste momento. Achamos que os salários não devem ter cortes. Quem ganha mil euros não pode viver com um corte de 30%. É muito pesado até ao final do ano. As despesas fixas levam praticamente todo o salário de quem ganha o salário médio. Pagamos energia e supermercados a níveis alemães e depois temos salários muito baixos. Não é justificável que se mantenham cortes quando as pessoas não conseguem nenhuma folga para aguentar. O Governo, ao criar o complemento de estabilização, reconhece como o lay-off abalou as famílias nestes primeiros meses. Imaginem o que é manter cortes, ainda que menores, mas acima de 20% para muitos trabalhadores, até ao final do ano. Outra matéria em que o Governo já foi ao encontro do BE é que a Segurança Social fosse compensada não apenas pela parte do salário que paga, mas também pela quebra de receitas de taxa social única (TSU). Diminuir as reduções de TSU patronal e garantir que a parte de redução é compensada pelo Orçamento do Estado é muito importante. Não queremos que a resposta à crise hoje signifique pressão sobre as pensões amanhã. Como os financiamentos que são necessários e extraordinários irão agora para o Orçamento do Estado, tanto o que for emissão de dívida pública, tanto o que for recurso aos mecanismos europeus, é importante garantir que o esforço extraordinário da Segurança Social é compensado pela transferência do Orçamento do Estado. O Governo costuma separar entre medidas de emergência, de estabilização e da recuperação, mas se as duas primeiras não estiverem a calcular o futuro podem gerar desequilíbrios futuros. Foi muito importante que o Governo se aproximasse da visão do BE. Em relação aos salários deram um passo que consideramos ainda pequeno. Mas, do ponto de vista social, há outras duas matérias que para nós são importantes. Foi aprovado na generalidade no Parlamento, na terça-feira, o subsídio de desemprego que passa a incluir regimes especiais em que as pessoas não têm acesso ao subsídio de desemprego. O Governo criou uma prestação que seria acessível pelos informais, mas trabalhadores que não são informais ficavam sem nenhum apoio: trabalhadores temporários cujos prazos de garantia nunca chegam para o subsídio de emprego e não são informais, trabalhadoras domésticas que têm um regime especial que não lhes dá acesso, na sua generalidade, tendo em conta os descontos que os patrões fazem…

…quando fazem.

Temos 100 mil trabalhadoras domésticas registadas na Segurança Social sem acesso ao subsídio de desemprego. Ou a questão dos advogados e solicitadores, particularmente complicada para uma geração mais jovem, que paga muito para a Caixa de Previdência e não tem acesso a nenhum apoio. Propusemos acesso a um subsídio de desemprego especial, que é defendido por algumas pessoas no PS, apesar de o partido ter votado contra, mas que passou na generalidade na semana passada. Parece-nos importante que uma medida que já provou ter maioria parlamentar, e que é tão necessária, seja incluída no Orçamento Suplementar. E também, por estarmos a falar daqueles que ficaram excluídos de tudo, que o complemento de estabilização não deve deixar de fora os precários. No início da crise chamámos a atenção para que as medidas de apoio deviam incluí-los. Agora o Governo já não fala só nos postos de trabalho nas medidas de lay-off e de retorno à vida ativa, falando já no volume total de emprego das empresas. Obriga-as a manter os postos de trabalho, pelo que à partida há alguma segurança de os trabalhadores a prazo verem os contratos renovados, mas no princípio da crise foram despedidos às centenas por empresas que logo a seguir recorreram a apoios do Estado. Estes trabalhadores, que perderam o rendimento e o emprego, não deviam excluídos do complemento de estabilização, que é dedicado a quem teve acesso ao lay-off ou ao acompanhamento dos filhos. Perderam muito rendimento, em alguns casos todo, sem ter acesso a medidas. Quando falamos de o Orçamento não deixar ninguém cair, é destas medidas que falamos: não esquecer os mais precários e os mais vulneráveis na segurança social.

As moratórias de crédito têm permitido que famílias adiem o pagamento das prestações numa altura de quebra de rendimentos, mas esse pagamento terá que ser feito no futuro. Não se poderá estar a camuflar uma nova bolha de endividamento?

Para todas as moratórias há uma questão que o BE tem colocado, que é a capitalização dos juros. Uma vez que a banca está a financiar-se em condições muito vantajosas, não se percebe porque é que não se pode arranjar um regime que permita que a dívida não vá aumentando ao longo dos tempos da moratória. Não dizemos perdoar as prestações, mas não permitir que os juros vão capitalizar e aumentar a dívida. Isso seria um passo essencial que já deveria ter sido implementado. Há depois a questão de saber se a moratória é a solução correta para toda a gente. Não é. Adiar a dívida de empresas, trabalhadores e famílias não vai resolver nada. Há uma proposta em que o Governo se aproximou do BE, na questão das rendas e ao subsídio de renda do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), que estabelece claramente que 1,5 milhões de euros dos empréstimos para a renda serão um subsídio a fundo perdido se as famílias estiverem em situação de carência. E nas micro e pequenas empresas defendemos que seria importante o Estado pensar num mecanismo de apoio a fundo perdido com garantia de manutenção de salário e de emprego, devidamente fiscalizado. Nos setores em que a perda de rendimento foi muito grande, dizermos que deixamos a empresa endividar-se e depois pagará as dívidas não corresponde à realidade. Muitas empresas acabarão por fechar pelo excesso de dívidas ainda que pudessem vir a ser viáveis se tivessem vindo a ter um apoio mais consistente para ultrapassar este período.

Mas reconhece que o aumento do crédito malparado é um risco para a economia portuguesa depois desta crise…

Por isso mesmo era importante que a solução para as empresas não fosse só crédito. Era por isso que nas grandes empresas que distribuíram dividendos não as deveriam deixar fazê-lo, para não se descapitalizarem. A própria Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) veio chamar a atenção para o problema: as empresas estão a distribuir dividendos com base nos resultados do ano passado, não pensando no esforço que esta crise vai obrigar. Com o recurso a crédito que pode vir a ser malparado, não sabemos exatamente o que vai acontecer. Todos queremos que não haja mais nenhum surto, mas qual de nós é que tem neste momento garantias do que irá acontecer? Às vezes dizem que as nossas medidas custam muito dinheiro. Esta crise vai precisar de uma ação pública forte e o problema é que o que retrairmos de apoio à economia pode-nos ficar muito mais caro no futuro. A questão do crédito é uma delas.

A Comissão Europeia já deu deu ‘luz verde’ ao empréstimo do Estado de até 1,2 mil milhões de euros à TAP, estando previstos no Orçamento Suplementar 946 milhões este ano. O ministro Pedro Nuno Santos disse que foram apresentadas condicionalidades aos investidores privados. Um empréstimo obrigacionista conversível parece-lhe uma solução razoável?

É uma solução possível. Há dois pontos que temos dificuldade em compreender. O primeiro é que o Governo não assuma a necessidade de ter presença executiva na administração. A TAP tem capital público, vai ter ainda mais, pode ter uma injeção de capital público que pode ser convertível em capital e nenhum de nós está à espera que a TAP consiga pagar estes empréstimos. Não pela TAP, mas pela situação da aviação internacional. Lembro que ainda antes da crise já houve o problema dos bónus, nesta crise houve o problema das rotas… Estamos a deixar que uma administração decida coisas que o Estado considera inaceitáveis sistematicamente, o Estado vai colocar mais dinheiro e continua sem presença executiva na gestão. Parece-nos bizarro. Contraria não só o que foi dito por Pedro Nuno Santos, mas pelo próprio primeiro-ministro, que noutras alturas já tinha feito afirmações no sentido de ser necessário que a empresa respondesse a esses desígnios de interesse público. Em segundo lugar, achamos que era preciso debater publicamente o que queremos da TAP. A aviação não pode ficar como estava. Pela crise pandémica que nos obriga a repensar, porque a TAP já não estava bem antes. Tendo o Estado uma voz executiva na gestão poderia haver um debate mais vasto sobre a estratégia para a empresa, tendo em conta a necessidade de ligação às regiões autónomas, mas também às comunidades emigrantes espalhadas pelo Mundo, aos interesses estratégicos e económicos do país e sua coesão territorial e também as questões climáticas. O pior de tudo seria se a reestruturação da TAP fosse uma coisa mais ou menos como uma folha de excel, em que se vende x aviões e se despede x trabalhadores para a TAP continuar a fazer mais ou menos o que fazia até agora, sem discutirmos o que queremos da TAP. Seria um erro profundo.

Uma das convergências do BE com Pedro Nuno Santos é que ambos já admitiram a nacionalização da TAP.

Que é uma boa solução.

É evidente que para o BE nacionalização não é palavrão e sim solução…

Já reparei que agora já não é um palavrão para ninguém, não é? Desde que há uma crise não há liberal que não queira Estado na economia (risos).

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