Haia, nos Países Baixos, é durante o dia de hoje e amanhã palco da mais aguardada cimeira da Aliança Atlântica. No topo da agenda do encontro dos chefes de Estado e de Governo dos 32 membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) está o pedido dos Estados Unidos para que os aliados aumentem os gastos em defesa para 5% do Produto Interno Bruto (PIB). O conflito na Ucrânia, a guerra entre Israel e Irão e a intervenção norte-americana — que Mark Rutte já disse ter respeitado a lei internacional — e a retaliação iraniana a uma base militar no Qatar serão outros pontos de análise incontornáveis da cimeira, que contará com a presença de Donald Trump, presidente dos EUA.
Mas o que se pode esperar desta cimeira perante um mundo reconhecidamente cada vez “mais perigoso”? E como sairá a NATO dela? “Se não houver mais tensões [no seio da NATO], e se não servir para afastar [os EUA], já não é mau”, analisa o embaixador Martins da Cruz em conversa com o Jornal Económico (JE). “Em política externa”, frisa o antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros, “o óptimo é inimigo do bom”.
O antigo embaixador de Portugal na organização atlântica sustenta que, apesar das tensões e divisões que têm marcado os tempos mais recentes, desde que Donald Trump regressou aos comandos da Casa Branca, os EUA “não têm nenhum interesse em acabar com a NATO, antes pelo contrário”.
“O que querem é que os europeus tenham um esforço maior em questões de defesa para não estarmos 100% dependentes da dissuasão dos EUA, sobretudo tendo em vista o risco que significa a Federação Russa depois do conflito na Ucrânia”, afirma Martins da Cruz, confiante de que da cimeira destes dois dias não haverá “nenhum corte” entre os EUA e a Europa. Pode, aliás, ser uma ocasião — “desde que os europeus façam um esforço” — para que os EUA “não se afastem” e “reafirmem o seu empenho em manter a NATO”.
A Aliança Atlântica, acrescenta o antigo governante, “precisa de reafirmar a sua unidade para ser credível face a eventuais inimigos, que não podem estar a pensar que estamos desunidos. Temos de projetar uma imagem de unidade e penso que isso vai prevalecer sobre as divisões”. Terá sido, de resto, para conseguir mais facilmente criar uma imagem de unidade e evitar o agravar de tensões ou divisões que a cimeira propriamente dita, o momento em que os vários chefes de Estado e de Governo estarão reunidos, “ficou resumida a três horas”.
O resto do tempo vai ser ocupado por reuniões bilaterais entre os vários membros. “Provavelmente vai haver também uma reunião com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky. Acho bem que se reafirme o compromisso da Europa e da NATO na defesa ucraniana”, assinala Martins da Cruz, antecipando que a Aliança Atlântica vai mostrar “uma certa flexibilidade” em relação à meta dos 5% do PIB em gastos de defesa, dos quais 3,5% incluem também vencimentos e segurança interna e 1,5% dirão respeito a infraestruturas de duplo uso (por exemplo, estradas que sirvam também para instalações militares; aeroportos que também sirvam para uso militar).
Portugal, que vai a Haia assumir o compromisso dos 2% já este ano, gasta atualmente 4.500 milhões — 1,58% do PIB. Para alcançar essa meta, que foi determinada em 2014 e que oito países (entre os quais Portugal, Espanha e Itália) ainda não atingiram, faltam 1.100 milhões. Para o conseguir, Portugal vai utilizar recursos de outros ministérios, por exemplo, da Administração Interna, no que diz respeito a serviços de emergência e à GNR. “Tudo o que é segurança pode ser incluído nas despesas de defesa, assim como salários e pensões dos militares da GNR. E por essa via, vamos chegar aos 2% no final do ano”, prevê o embaixador. Já sobre os 3,5% do PIB, num cenário otimista, só daqui a uma década lá chegaremos.
Para Portugal, país que é simultaneamente europeu e atlântico, “é muito importante que não haja um afastamento dos EUA da NATO”. “Somos simultaneamente um país europeu e um país atlântico, temos a maior Zona Económica Exclusiva do Atlântico de toda a Europa. Para nós, a segurança do Atlântico é essencial à nossa segurança. E para haver segurança no Atlântico, precisamos dos EUA como aliado”, finaliza o antigo governante e diplomata português.
Imagem de unidade (e a voz dissonante vinda de Espanha)
Seja como for, o principal objetivo da cimeira é “dar uma imagem de unidade” e de que a Europa está de facto a aumentar os gastos em defesa, analisa José Palmeira, professor de Relações Internacionais da Universidade do Minho. Porque há entre os aliados a noção de que o “pior que podia acontecer neste momento seria mostrar a Moscovo e a Pequim que na NATO ninguém se entende; que os EUA não se entendem com os europeus e que os próprios europeus estão divididos e não querem chegar aos 5% do PIB” em despesas militares.
E sendo certo que as cimeiras, quando começam, já têm as “conclusões alinhavadas”, é de esperar essa mensagem de unidade. Se assim não fosse, se não houvesse acordo, nomeadamente sobre a meta dos 5%, ainda que com criatividade contabilística, sustenta Palmeira, “Trump nem iria lá, mandava uma segunda figura”.
O professor de Relações Internacionais considera que Mark Rutte, que muitas vezes é criticado por “puxar os EUA para dentro” da aliança, “terá feito o trabalho de casa” ao ponto da cimeira de Haia ir de encontro ao que os EUA pretendem — fundamentalmente que os europeus paguem mais para a defesa.
E assim parece ser. Na antecipação da cimeira, esta segunda-feira, o secretário-geral da NATO declarou que os aliados vão tomar “decisões arrojadas para melhorar a nossa defesa coletiva, tornando a NATO numa aliança mais forte, mais justa e mais leal”. O que inclui, segundo Rutte, um novo plano substancial de investimento, elevando a marca do investimento na defesa para 5% do PIB.
“Um esforço concertado para melhorar a indústria da defesa em toda a aliança, dando não apenas mais segurança, como também mais empregos”, frisou o holandês, garantindo também que haverá, da parte da organização que lidera, um “esforço contínuo de apoio à Ucrânia e uma procura de um final justo e duradouro para a guerra de agressão russa”. “Tudo isto é essencial para manter em segurança os nossos mil milhões de habitantes”, argumentou Rutte.
José Palmeira acrescenta ainda outro prisma à exigência dos 5% dos EUA, que os próprios não atingem, lembrando que Donald Trump “não dá ponto sem nó”. Ou seja, poderá estar mais interessado que a Europa vá comprar material de guerra aos EUA do que propriamente na segurança dos aliados, diminuindo assim o défice norte-americano. Se os 5% do PIB em defesa forem uma meta longínqua, a Europa “tem tempo para desenvolver a sua indústria de defesa”, mas se a meta for para “amanhã” — aí “a Europa não terá capacidade suficiente” e os países vão ser “muito seduzidos pelo facto de o armamento norte-americano ser mais evoluído”.
Para o professor de Relações Internacionais, Espanha ter conseguido um compromisso que isentará o país da meta dos 5% do PIB é “curioso”, não se tratando de um país propriamente pobre.
A suposta cláusula de isenção (opting out), que Rutte desmentiu na conferência de ontem, teria sido negociada no fim de semana e anunciada pelo primeiro-ministro espanhol no domingo. Pedro Sánchez garantiu que o país afetará 2,1% do PIB às despesas com a defesa, “nem mais, nem menos”, o que lhe permitirá garantir todos os seus compromissos no âmbito da NATO, e sublinhou que a percentagem de 5% seria “desproporcionada, desnecessária” e incompatível com o Estado social.
“Respeitamos a vontade legítima dos outros países de aumentar o seu investimento na defesa, se assim o desejarem, mas não o faremos”, notou, assinalando ainda que o acordo alcançado com a Organização do Tratado do Atlântico Norte é “muito positivo”, uma vez que permite “respeitar a aliança transatlântica” e “preservar a sua unidade” sem aumentar as despesas com a defesa.
Na sexta-feira, o Presidente dos EUA tinha defendido que a meta de 5% do PIB para gastos de defesa dos membros da NATO não deveria aplicar-se a Washington e criticou a Espanha por “pagar pouco” no âmbito da Aliança Atlântica. Em resposta a estas críticas, no sábado, a ministra do Trabalho e vice-presidente do Governo espanhol, Yolanda Díaz, disse que a Espanha é soberana e “não vai fazer o que ele quer”.
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