O advogado Ricardo Maia Magalhães, sócio da Cerejeira Namora, Marinho Falcão, defende que a habitação pública, enquanto resposta para a falta de oferta de habitação, não deve ser “desarticulada do setor privado” nos esforços de resolução do problema da habitação em Portugal.
“Passamos um período muito significativo em que a regra do mercado gerou um aumento exponencial dos preços, quer ao nível da aquisição, quer ao nível dos arrendamentos. Portanto, houve aqui um aumento exponencial dos valores e, de facto, a habitação pública aparece como sendo uma das várias soluções. Não acredito que seja uma solução que funcione sozinha, desarticulada do setor privado, mas é um excelente instrumento”, diz o advogado de Direito Público, em entrevista ao Jornal Económico (JE).
Debruçando-se sobre a habitação pública, Ricardo Maia Magalhães considera “muito importante saber separar a verdadeira habitação social, que é gerida normalmente por municípios, por institutos públicos e que, no fundo, é cedida gratuitamente ou a rendas muito baixas, de um segundo tipo de habitação pública, que é a habitação a cursos controlados”, recordando que a classe que mais tem sofrido como o mercado imobiliário em Portugal são as classes média e média baixa.
Sobre as Habitações a Custos Controlados (HCC), construídas ou adquiridas com o apoio financeiro do Estado português, “não estamos a falar de bairros sociais”, mas sim de casas “até um certo nível em termos de construção”, seguindo critérios de eficiência energética dos imóveis, “colocados no mercado normalmente de arrendamento, a valores economicamente muito mais acessíveis do que aqueles que estão a ser praticados no mercado”, explica o jurista que liderou recentemente a assessoria legal a um projeto inovador de Habitação a Custos Controlados com o Município de Vila Nova de Gaia.
“No Porto, é a diferença de estarmos a arrendar, por exemplo, um T2 a mil/1.100 1.200 euros no mercado privado, e um T2 com as mesmas características a ser arrendado a 600/700/750 euros”, diz Ricardo Maia Magalhães. “É uma diferença muito significativa que, por um lado, ajuda a classe média/média baixa a conseguir ter uma habitação condigna que faça jus àquilo que são os respetivos agregados familiares e, por outro lado, o facto de existirem estes imóveis no mercado faz com que o mercado privado também tenha de baixar o preço”, analisa.
Pronunciando-se sobre as oportunidades para a habitação pública em Portugal através do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), o advogado aponta os constrangimentos que os municípios encontram para “conseguirem executar” as verbas dos fundos europeus.
“As grandes dificuldades neste momento na habitação pública prendem-se com a circunstância de haver muito valor a investir. O programa 1.º Direito teve verbas muitíssimo grandes do ponto de vista do PRR, para que os municípios pudessem apresentar candidaturas e aplicar essas verbas. Estamos a falar de um pacote de PRR muito relevante e a grande dificuldade nem está nos municípios terem acesso ao dinheiro, está depois em conseguirem executar essas verbas”, começa por explicar.
“Houve, durante muitos anos, um modelo tradicional em que os municípios construíam as habitações, agarravam nesse financiamento e promoviam concursos públicos, contratavam os empreiteiros, faziam as habitações, e depois ficavam as dívidas do parque habitacional. Há um segundo nível de complicação, porque o município têm a habitação feita e depois é preciso criar regras para saber a quem é que se vai atribuir aquela habitação. Isto gerava muito desperdício de tempo do ponto de vista da própria burocracia. Entretanto, houve um outro modelo, também difícil de colocar em prática – modelo das construções a privados. Os municípios davam os terrenos a um privado, que construía o edifício e ficava a gerir aquele património. Era o privado que geria a entrada e saída dos inquilinos, até amortizar o investimento que tinha realizado”, prossegue. Atualmente, existe um modelo mais fácil, com uma execução mais simples, em que se abre uma oferta pública ao mercado, diz.
“O município que diz ao mercado que quer adquirir X casas, já prontas, a construir. No fundo, o mercado responde a esta oferta, traz os terrenos, faz os imóveis. E a única coisa que o município faz para proteger esse investimento privado é, no início do procedimento, definir quais são as regras. O município faz, no fundo, um contrato-promessa em que se compromete a adquirir aquelas habitações quando elas estiverem prontas e que paga um sinal de 10/15%. Se chegarmos ao fim da construção e o imóvel respeitar tudo aquilo que chama as condições que tinham sido definidas lá atrás no procedimento, o município adquire os imóveis e passa muito mais rapidamente a ter os imóveis do seu lado”, detalha.
Ricardo Maia Magalhães levanta uma outra questão, que considera ter um “impacto significativo” no mercado da habitação. “Temos de nos habituar à ideia de que a construção em massa, os níveis de construção que nós tivemos ali durante os anos 80 até 2000, não se vão repetir. Já não temos espaço nas cidades, nas zonas urbanas com muito espaço por construir. Se pensarmos nas grandes cidades, os espaços livres para construir massa já não são significativos. E, portanto, o conceito de reabilitação urbana é fundamental. Temos de nos começar a habituar à ideia de que nós vamos reinventar a construção que já existe. Vamos transformar fábricas em habitação, vamos transformar zonas comerciais em habitação”, analisou.
Nos últimos meses, Ricardo Maia Magalhães liderou a assessoria prestada ao Município de Vila Nova de Gaia pela Cerejeira Namora, Marinho Falcão num projeto inovador de Habitação a Custos Controlados da autarquia, cujo investimento global chega aos 111,5 milhões de euros.
“O município [de Vila Nova de Gaia] obteve um financiamento muito grande – o maior do país –, junto do IHRU [Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana]. A preocupação foi juntar dois vetores simples. Sabíamos que havia um problema, e cada dia que passava sem resolver esse problema era um encargo acrescido para os munícipes que viviam em Gaia e na zona do Porto. Por outro lado, sabíamos que os modelos tradicionais de habitação – quer da empreitada em que é o município que faz a obra, lança o concurso público para fazer o projeto, tem de lançar o concurso público para fazer a empreitada, escolher o empreiteiro, fazer a obra, demoram dois/três anos e meio. Esses modelos tradicionais demoram muito tempo e o município não tinha esse tempo”, explica o sócio da Cerejeira Namora, Marinho Falcão, que é, desde o ano passado, Comissário do Grande Núcleo Norte da ADA (Associação de Direito Administrativo).
E como é que este processo se desenvolveu? De acordo com o advogado, na base esteve a publicação de dois editais pelo Município presidido por Eduardo Vítor Rodrigues: um edital “vocacionado para habitações que já existiam e outro para habitações a construir”.
“No fundo, o município disse ao mercado que tinha X milhões para gastar de habitação. As habitações, se já estiverem construídas, têm de ter estas características, e as a construir têm de ter aquelas características, mais exigentes, naturalmente. Ao que vai ser construído pode-se impor, por exemplo, características do ponto de vista da eficiência energética”, explica. Neste processo, o IHRU tornava obrigatória a classificação A+, a “mais exigente do ponto de vista energético”, sublinha.
A autarquia convidava, assim, os potenciais proprietários interessados a apresentar uma candidatura no âmbito da iniciativa “Oferta Pública de Aquisição de Habitações”, sujeita a uma avaliação em vários cenários.
“O município analisava as candidaturas, fazia vistorias para verificar se os imóveis estavam como nas fotografias, se os terrenos estavam bem medidos e se existia viabilidade urbanística para se construir ali. Com as candidaturas selecionadas era celebrado o Contrato-Promessa Compra e Venda (CPCV), em que o município pagava um sinal, e comprometia-se a que, se no final da construção os imóveis estivessem conforme estava na candidatura, o município adquiria-os pelo preço definido a metro quadrado pelo programa do 1.º Direito”, detalhou, sublinhando que, nestes moldes, a autarquia “ficava salvaguardado porque todos os concorrentes apresentavam garantias bancárias”.
“O processo foi um sucesso absoluto. Em Portugal, nunca tinha sido feito este esquema do edital, de se apresentar ao mercado, no fundo, um pedido de ajuda para suprir e correu muito bem”, afirmou, avançando que a Cerejeira Namora, Marinho Falcão “já está a trabalhar com outras entidades em sistemas muito similares”.
Em janeiro, Ricardo Magalhães alertou, em entrevista ao JE que a relação entre as empresas e o Estado “nunca foi tão difícil como é hoje”, criticando a elevada burocracia presente em vários procedimentos. Recorde a conversa no programa “Falar Direito”.
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