Se há evidência que os europeus que vivem no interior da União Europeia foram construindo ao longo dos anos é que, para além de alinhados, os vários poderes no interior do bloco são muitas vezes concorrentes – com o referido alinhamento a ser uma formalidade institucional sem tração na realidade. Esta concorrência entre poderes – que não parece ter nenhum benefício – é mais visível entre a Comissão Europeia e o Conselho Europeu – os dois órgãos que, ao contrário do Parlamento Europeu, não emanam da vontade direta dos cidadãos dos Estados-membros, anteriormente tratados pelo substantivo coletivo ‘povo’, entretanto mais ou menos desaparecido do léxico geral.
A presidência de Ursula von der Leyen foi, neste particular, especialmente mal-sucedida. Diz isso um conjunto alargado de especialistas – entre os quais se contam o embaixador Francisco Seixas da Costa. A presidente da Comissão ultrapassou, em larga escala, as competências do Alto Representante para as Relações Exteriores (nas mãos do espanhol Josep Borrell) e, em menor escala mas também com vários atritos, as competências do presidente do Conselho Europeu (nas mãos do belga Charles Michel, agora substituído por António Costa). O ex-primeiro-ministro português pode, por isso, contar com atritos, complicações e outros desentendimentos com a alemã. Até porque Von der Leyen deu mostras de estar muito confortável com a extrema-direita que se ‘engrandeceu’ no Parlamento – o que, por maioria de razão, indica que preferiria ter de lidar com um liberal (como Michel) em vez de ter de privar com um socialista (Costa).
Seja como for – e sendo certo que a agenda de António Costa não é a sua, mas a dos chefes de Estado e de governo dos 27 – há cinco grandes temas que o ex-primeiro-ministro português terá que ter em atenção.
A abertura de negociações entre a União Europeia e Ucrânia (e Moldávia, com o pequeno país eslavo a seguir ‘à boleia’ do seu gigante vizinho) está em cima da mesa há uma semana e todos sabem que será um debate demorado e não necessariamente consensual. Uma parte da Europa quer pressa – mas são só 11 países em 27, entre os quais Portugal – mas a outra nem por isso. Essa outra sabe que a entrada da Ucrânia vai criar fortes desequilíbrios – nomeadamente na sensível área da agricultura. A narrativa segundo a qual a entrada da Ucrânia na União promoverá a autossuficiência alimentar é tão improvável como dizer-se que a entrada da Suécia iria conferir um Volvo a cada família da União. Consensual, ou assim parece, é o facto de a Ucrânia não poder entrar na União antes do fim da guerra com a Rússia
A abertura de negociações com a Ucrânia (e Moldávia) quase fez esquecer a fila de espera que já se formou às portas da União – e que é constituída por países dos Balcãs Ocidentais: Bósnia-Herzegovina (que só por si são três países diferentes, Sérvia, Kosovo (que nem todos os Estados-membros reconhecem como país), Montenegro, Macedónia do Norte, Albânia. Entre eles estão forças que alguns Estados-membros recusam como associados (a Bulgária e a Grécia têm muitas reticências) – mas também bons amigos de Vladimir Putin.
Seria apenas um pequeno exagero afirmar-se que o Pacto para as Migrações é de tal forma impactante no interior da União, que é suscetível de criar uma guerra civil (se é que pode usar-se o termo para uma contenda entre países do bloco). O assunto é dos que tem suscitado maiores desentendimentos entre o norte e o sul – ou mais propriamente entre o norte e o sul e o leste em conjunto. E nada leva a crer que venha a ser diferente do que foi até aqui. Pior: o tema tem tudo para fomentar fortes desentendimentos nos próximos cinco anos – ficando tudo ainda mais difícil quando (e se) os Balcãs fizerem parte da União.
Tão urgente como polémico, o pacto para o clima teve um forte impulso no período da pandemia – que também deixou a descoberto as dependências estratégicas da União Europeia. Mas tudo isso passou muito rapidamente – nomeadamente na área da energia: a Europa tornou-se independente da Rússia para se lançar feliz na dependência de outro país produtor qualquer, e até os investimentos em gasodutos e oleodutos, que estavam em cima da mesa há um par de anos, desapareceram misteriosamente da agenda. Quanto ao mais, o pacto tem repercussões diretas na economia – e num quadro de taxas de juro elevados (e que nunca mais serão as que eram há três anos), convém não fazer grandes ondas com a sustentabilidade, a economia circular e essas ‘modernices’.
Pode não parecer, mas este é o grande tema da União Europeia em termos estratégicos e de futuro a médio prazo. A maioria dos analistas considera que a União continuará a ser submissa à estratégia de política externa dos Estados Unidos – o que quer dizer o bloco dos 27 continuará a tentar afastar a China da sua cercania. O que em princípio é mau por uma razão infantil: não é a estratégia dos 27 – até podia ser, mas como a motivação é seguir as indicações de Washington, nunca se vai saber se é ou não.
Evidentemente que todos estes pontos estão rodeados de um outro que lhes é transversal: a política de segurança. O tema da criação de um exército europeu – mais que o tema da criação de uma indústria de defesa – será com certeza suficientemente fraturante para colocar a União em fogo. E António Costa será um dos ‘bombeiros’ de serviço.
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