É uma realidade para a qual os presidentes eleitos nas eleições de 12 de outubro terão de olhar: o consumo de droga nos grandes centros urbanos, como Lisboa e Porto, tem vindo a aumentar. A evolução, diz ao Jornal Económico o presidente do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), é “preocupante” e exige que o papel “absolutamente estratégico” das autarquias seja reforçado. “Não apenas enquanto entidades de proximidade, mas como atores-chave na coordenação das políticas públicas locais, na mobilização de recursos e na articulação com a rede social do território”, explica João Goulão. No que toca ao trabalho do instituto, o responsável fala de “desafios significativos” relacionados com financiamento e a capacidade de recrutamento de profissionais, e considera um “imperativo assegurar um modelo de financiamento estável, transparente e adequado à missão do instituto e das entidades parceiras”.
O consumo de droga tem de facto aumentado nos últimos anos em Portugal?
Portugal enfrenta atualmente uma evolução preocupante no panorama dos comportamentos aditivos, marcada por uma crescente complexidade dos consumos e pelo agravamento de fatores de risco sociais e de saúde. Os dados mais recentes revelam um aumento significativo do uso de cocaína, que se tornou, nos últimos dois anos, a principal substância associada na procura de tratamento, ultrapassando a heroína em vários contextos. Paralelamente, persistem padrões de consumo problemático de canábis, sobretudo entre os jovens, e uma crescente presença de novas substâncias psicoativas, incluindo opioides sintéticos de elevada potência, que representam um risco acrescido para a saúde pública.
A situação é agravada por fenómenos de policonsumo, que dificultam o diagnóstico e a intervenção clínica, e por vulnerabilidades específicas que afetam de forma desproporcional determinados grupos populacionais — nomeadamente pessoas em situação de sem-abrigo, com comorbilidades psiquiátricas e orgânicas, e em contextos de exclusão social severa. O abuso do álcool está também presente com muita frequência.
O número de inscrições nos serviços que dão resposta aos CAD, nomeadamente no que respeita ao tratamento, tem-se mantido em tendência crescente, o que aponta de facto para uma correspondente tendência crescente do consumo. Esta realidade nacional manifesta-se com particular intensidade nos grandes centros urbanos, como Lisboa e Porto, onde os desafios assumem contornos específicos: maior visibilidade do consumo em espaço público, concentração de populações vulneráveis em zonas críticas, e pressão acrescida sobre os serviços de saúde, segurança e apoio social. Estes territórios exigem, por isso, respostas territoriais diferenciadas, integradas e sustentadas numa forte articulação entre os serviços públicos, as autarquias e a rede social local.
Há novos consumos? Como se caracterizam?
Os atuais padrões de consumo de substâncias psicoativas em Portugal não podem ser considerados inteiramente novos, mas refletem uma transformação significativa nos perfis dos consumidores, nas substâncias utilizadas e nos contextos em que os consumos ocorrem. Esta evolução tem vindo a exigir respostas mais diferenciadas, integradas e adaptadas por parte dos serviços de saúde, apoio social e políticas públicas.
Um dos fenómenos mais visíveis é o do consumo em espaço público por pessoas em situação de vulnerabilidade extrema. Estes indivíduos apresentam padrões de policonsumo, combinando frequentemente substâncias como crack, heroína, medicamentos psicotrópicos e álcool. O consumo ocorre em locais públicos e em condições de insalubridade, o que potencia riscos acrescidos para a saúde pública e para os próprios consumidores. Este grupo evidencia uma elevada prevalência de doenças infeciosas transmissíveis, como o VIH e a hepatite C, risco significativo de overdose, práticas de consumo inseguro, perturbações de saúde mental não tratadas e ausência de suporte social estruturado.
Outro grupo particularmente vulnerável é o das pessoas em situação de sem-abrigo com consumos ativos. Estas pessoas vivem frequentemente em ciclos de exclusão social, alternando entre a rua, estruturas de acolhimento temporário e o regresso à rua. Esta instabilidade habitacional e social contribui para a degradação da saúde física e mental, dificultando a adesão a programas de tratamento e reinserção. Verifica-se ainda uma elevada rotatividade nos serviços de apoio, com fraca vinculação às respostas existentes, o que compromete a eficácia das intervenções. Estes grupos são frequentemente percebidos pela envolvente como uma grave ameaça à ordem pública, perceção muitas vezes sem correspondência com a realidade, mas que alimenta o discurso político de endurecimento da repressão e regresso à criminalização do consumo.
Adicionalmente, observa-se um aumento do consumo em contextos recreativos, sobretudo entre jovens adultos, com destaque para substâncias como canábis de elevada potência, MDMA, ketamina e LSD. Estes consumos, muitas vezes invisíveis aos serviços, ocorrem em ambientes festivos e são frequentemente acompanhados por uma baixa perceção de risco, o que pode levar ao desenvolvimento de padrões de uso problemático, especialmente em situações de fragilidade emocional ou psicológica.
A crescente diversidade de substâncias psicoativas, a multiplicidade de contextos de consumo — que variam entre espaços públicos visíveis e ambientes mais ocultos — e a complexidade dos perfis dos consumidores, cada vez mais marcados por vulnerabilidades sociais e de saúde, colocam desafios acrescidos aos serviços de saúde, da ação social, da saúde publica bem como às forças de segurança. Esta realidade exige uma abordagem multidimensional, centrada na pessoa, que articule de forma eficaz os diferentes setores envolvidos e que seja ajustada às especificidades de cada território. Só através de respostas integradas, flexíveis e territorialmente orientadas será possível enfrentar os impactos sociais e sanitários dos comportamentos aditivos e promover a inclusão, a dignidade e a recuperação das pessoas afetadas.
O assunto tem sido negligenciado pelos responsáveis políticos quer nacionais quer locais?
A operacionalização deste novo Instituto (ICAD I.P., desde 2024) constitui um sinal de que os últimos Governos compreenderam que esta problemática não se compadece com o desinvestimento e falta de atenção política; têm sido enfrentados desafios significativos, nomeadamente no que respeita ao financiamento e à capacidade de recrutamento de profissionais. A ausência de garantias claras quanto à dotação orçamental afeta a capacidade de resposta, a estabilidade das equipas técnicas e a continuidade dos programas em curso. A indefinição quanto aos recursos disponíveis compromete também a planificação estratégica e a implementação de medidas inovadoras, essenciais para dar resposta à complexidade dos fenómenos associados aos consumos e às dependências.
Neste contexto, torna-se imperativo assegurar um modelo de financiamento estável, transparente e adequado à missão do instituto e das entidades parceiras, de forma a garantir a eficácia das políticas públicas e a proteção dos direitos das pessoas em situação de vulnerabilidade.
Em termos de intervenção, importa ter em conta que diversas autarquias do país colaboram com o ICAD na oferta de respostas dirigidas a esta problemática; merecem destaque, quer a autarquia do Porto, quer a Edilidade de Lisboa, que têm investido no financiamento de várias respostas de Redução de Riscos e Minimização de Danos, através de protocolos firmados como o ICAD, que, conforme previsto na legislação que enquadra esta dinâmica, financia 80% do custo dos diversos projetos.
Que medidas se impõe que sejam tomadas? O que tem de fazer quem quer que venha a liderar as respetivas autarquias?
A resposta aos comportamentos aditivos e às dependências exige uma abordagem integrada, territorializada e centrada nas pessoas. Neste contexto, as autarquias têm vindo a assumir um papel absolutamente estratégico, que pode e deve ser reforçado, não apenas enquanto entidades de proximidade, mas como atores-chave na coordenação das políticas públicas locais, na mobilização de recursos e na articulação com a rede social do território.
A crescente complexidade dos fenómenos associados ao consumo de substâncias psicoativas — marcada pela diversidade de substâncias, pelo policonsumo, pelas vulnerabilidades sociais e pela visibilidade do consumo em espaço público — impõe uma intervenção sustentada, multidisciplinar e articulada. A atuação isolada de cada setor revela-se insuficiente. Por isso, a coordenação estratégica entre as autarquias, o Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), os serviços de saúde, ação social, habitação, educação, forças de segurança e justiça é essencial para garantir uma resposta robusta, contínua e ajustada às especificidades de cada território e das suas populações.
Uma das estratégias fundamentais para reforçar a eficácia da intervenção passa por superar a lógica reativa ou imediatista, muitas vezes centrada na gestão de crises. Em alternativa, deve promover-se a implementação de respostas consistentes, articuladas e baseadas na evidência científica, com enfoque na centralidade da pessoa e na promoção da dignidade humana.
Neste processo, é igualmente crucial reconhecer e acolher os receios legítimos das comunidades locais. A presença visível de consumo de substâncias e de resíduos associados em espaço público gera compreensivelmente desconforto e perceções de insegurança. No entanto, importa sublinhar que as respostas mais eficazes nem sempre coincidem com as mais intuitivas. Remover o consumo da vista pública não elimina o fenómeno, apenas o desloca, tornando-o mais invisível, mais perigoso e menos controlável.
A experiência acumulada, tanto a nível nacional como internacional, demonstra que as intervenções mais eficazes são aquelas que combinam proximidade, continuidade e base científica. A disponibilidade de programas de tratamento facilmente acessíveis e de qualidade, programas como os espaços de consumo vigiado, o trabalho de pares, o reforço das equipas de proximidade têm mostrado resultados positivos na melhoria da saúde pública, na redução de riscos, no reforço da segurança e na promoção de uma convivência mais harmoniosa nos espaços comuns.
Quais são as zonas, em Lisboa e no Porto, onde o problema se tem agudizado?
Nas cidades de Lisboa e Porto, os fenómenos associados aos comportamentos aditivos têm-se intensificado em zonas urbanas marcadas por múltiplas vulnerabilidades sociais e económicas. Embora distintas na sua configuração territorial, estas áreas partilham fatores estruturais que favorecem a concentração de consumos problemáticos.
Estas zonas urbanas caracterizam-se por uma elevada densidade populacional, défices habitacionais persistentes, presença significativa de pessoas em situação de sem-abrigo e uma cobertura insuficiente de serviços de saúde mental e apoio social.
A estas dinâmicas soma-se a existência de uma bolsa de pessoas utilizadoras de drogas com perfis marcados por elevada vulnerabilidade psicossocial, múltiplas comorbilidades e trajetórias de exclusão prolongada. Trata-se de indivíduos que, por diversos fatores — como a instabilidade habitacional, a ausência de suporte familiar, o historial de institucionalização ou a desconfiança face às instituições — revelam uma fraca adesão às respostas socio-sanitárias convencionais, mesmo quando estas estão disponíveis.
Este cenário coloca desafios acrescidos à intervenção pública, exigindo abordagens mais flexíveis, de proximidade e sustentadas no tempo, que combinem estratégias de redução de riscos, apoio psicossocial e promoção da dignidade humana. A atuação nestes territórios deve ser orientada por princípios de justiça social, equidade no acesso aos cuidados e corresponsabilização institucional, reconhecendo que os consumos problemáticos são, muitas vezes, expressão de desigualdades estruturais e não apenas uma questão de saúde individual.
Há risco de estas duas cidades virem a ter locais que se comparam ao antigo Casal Ventoso?
A situação atual do consumo de drogas em Lisboa e no Porto, embora preocupante, não é diretamente comparável ao cenário vivido no Casal Ventoso nos anos 1990. No entanto, apresentam semelhanças relevantes que justificam uma atenção redobrada por parte das entidades públicas e da sociedade civil. O Casal Ventoso foi, durante décadas, o maior centro de consumo e tráfico de drogas ao ar livre em Portugal, caracterizado por condições extremas de exclusão social, consumo endovenoso generalizado e ausência de respostas estruturadas. A intervenção pública que ali se concretizou foi profunda e multidisciplinar, envolvendo realojamento, reforço da segurança, cuidados de saúde pública e programas de reinserção social.
No âmbito do Plano Nacional para os Comportamentos Aditivos e as Dependências 2030 (PNRCAD 2030), a continuidade das respostas deve assentar na consolidação de práticas eficazes e na sua articulação com novas abordagens, de forma a garantir uma intervenção integrada, centrada na pessoa e sustentada por evidência científica, contribuindo para que estes cidadãos tenham uma maior esperança de vida com qualidade.
A prevenção continua a ser um dos pilares fundamentais da intervenção, devendo manter-se o investimento em programas universais, seletivos e indicados, com base em modelos validados e adaptados aos diferentes contextos sociais e etários. A promoção de competências pessoais e sociais, a literacia em saúde e a capacitação de agentes educativos e comunitários são elementos-chave para a sustentabilidade das ações preventivas.
No domínio da Redução de Riscos e Minimização de Danos, importa assegurar a continuidade e o reforço das respostas de proximidade, nomeadamente as equipas de rua, os programas de troca de seringas e outras intervenções de baixo limiar. Estas respostas devem manter-se orientadas para a redução dos impactos negativos do consumo, promovendo simultaneamente a ligação das pessoas aos serviços de saúde e apoio social. O acesso equitativo ao tratamento deve continuar a ser garantido, com enfoque em modelos integrados, multidisciplinares e centrados na pessoa. A articulação entre os serviços de saúde, emprego, habitação e proteção social é essencial para promover percursos de reinserção sustentáveis, que valorizem a autonomia e a inclusão social.
A manutenção do modelo de dissuasão e encaminhamento, assente na descriminalização do consumo de substâncias, constitui uma referência internacional e deve ser preservada. As Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência (CDT) devem continuar a desempenhar um papel central na articulação com os serviços de saúde e sociais, assegurando respostas céleres, proporcionais e orientadas para a recuperação. A regulação e fiscalização da oferta de substâncias psicoativas, incluindo o álcool e as novas substâncias, bem como dos comportamentos aditivos sem substância, como o jogo, devem manter-se como áreas prioritárias. A limitação da acessibilidade, a regulação da publicidade e a proteção dos grupos mais vulneráveis são medidas fundamentais para a proteção da saúde pública.
Por fim, a continuidade dos sistemas de monitorização, investigação e avaliação é indispensável para garantir a eficácia das políticas públicas. A produção de conhecimento, a análise de tendências e a avaliação de impacto devem continuar a informar a tomada de decisão e a orientar a afetação de recursos. A formação contínua dos profissionais e a capacitação das comunidades são igualmente determinantes para a qualidade e sustentabilidade das respostas, reafirmando o compromisso de uma abordagem integrada, baseada em direitos humanos, na redução de desigualdades e na promoção da saúde e bem-estar da população.
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