Começar um texto sobre um tipo que trata(va) o Surrealismo por tu, um artista que detestava que lhe chamassem artista, convocando as palavras de outro desassossegado, poderá não ser elegante, mas é o que vamos fazer.
“Telefonaram-lhe para casa e perguntaram-lhe se estava em casa. Foi então que deu pelo facto. Realmente tinha morrido havia já dezassete dias. Por vezes as perguntas estúpidas são de extrema utilidade”.
Mário-Henrique Leiria escreveu (“humorizou”) e não surge aqui por acaso. Fez parte do círculo de amigos de Cruzeiro Seixas – um dos fundadores do Surrealismo português, movimento a que sempre se manteve leal, pelo simples facto de, dizia, ser “único e revolucionário”, na história da arte.
A exposição “O sentido do encontro” assinala o fim das celebrações do centenário de Artur Manuel do Cruzeiro Seixas, nascido na Amadora a 3 de dezembro de 1920, quatro anos antes do primeiro manifesto do Surrealismo. Descobriu-o na década de 40 e dele fez sentido da vida até à sua morte, em Lisboa, a 8 de novembro de 2020, prestes a completar um século de existência.
Manifestos não faltam na sua obra, sendo os títulos pistas acerca do que mostra e não mostra, do que podemos intuir ou ler nas suas linhas e traços. “Quando Não Ia À Escola Aprendia Muito Mais” é todo um tratado e um singelo exemplo. A colagem sobre papel, sem data, mas ainda dos tempos de menino, diz-nos o que Artur pensava sobre isso da escola. A formação era feita fora dela. Onde calhasse? Sem a presunção de termos a resposta desviamos para uma escola que existiu, de facto, no seu percurso: a António Arroio, em Lisboa.
O desassossego foi muito, mais pela provocação de colegas que pelas matérias. Júlio Pomar e Vespeira lá estavam para o inquietar, mas acima de tudo Mário. Mário Cesariny. Mas não só. A efervescência dos encontros de café com Alexandre O’Neill, António Areal, José Cardoso Pires, Luiz Pacheco e Mário-Henrique Leiria, para referir apenas alguns, foi igualmente estimulante para quem buscava caminhos. E assim levou o Surrealismo por caminhos marítimos ao alistar-se na marinha mercante. Foi assim que percorreu os mares da Índia, seguindo até ao Extremo Oriente. Acabou por fixar-se no continente africano, em Angola, em 1952, onde permaneceu até ao início da guerra da independência.
Regressou a Portugal em 1964 e continuou a tratar o Surrealismo por tu. Nunca teve problemas em destruir algumas das obras que criou ao longo de um percurso de cerca de oito décadas. Tal como não se coibiu de declarar à Lusa, numa entrevista em 2011, quando se preparava para celebrar 91 anos, que perfez “uma obra que não é genial. É um depoimento”. E acrescentou, em jeito de balanço. “Reuni uma das melhores coleções de arte em Portugal. E fiz uns disparates”.
Entre objetos, esculturas, desenhos à pena e pinturas, a mostra reúne 160 obras de Cruzeiro Seixas que utilizam diferentes técnicas desenvolvidas pelos surrealistas, a par de um conjunto de peças que remetem para sua passagem por África, nos 14 anos que viveu fora de Portugal.
A Fundação Cupertino de Miranda de V.N. Famalicão, o Ministério da Cultura e a Sociedade Nacional de Belas Artes uniram-se para o homenagear, organizando a maior exposição alguma vez dedicada a Cruzeiro Seixas em Portugal, sendo esta comissariada por Marlene Oliveira, diretora artística da Fundação, e Perfecto E. Cuadrado, coordenador do Centro Português do Surrealismo.
“O sentido do encontro” está patente ao público até 26 de fevereiro. Tem entrada livre e pode ser vista de segunda a sexta-feira, das 12h00 às 19h00 e aos sábados das 14h00 às 19h00. Encerra aos domingos e feriados.
Tagus Park – Edifício Tecnologia 4.1
Avenida Professor Doutor Cavaco Silva, nº 71 a 74
2740-122 – Porto Salvo, Portugal
online@medianove.com