“Custe o que custar”. Foi há doze anos que Mario Draghi salvou a zona euro, ao avisar os mercados de que o Banco Central Europeu (BCE) iria fazer o que fosse necessário para manter viva, e unida, a moeda única. Agora, regressa com um plano para salvar a economia europeia, num momento em que a China e os Estados Unidos da América (EUA) aprofundam o fosso entre os maiores blocos económicos mundiais.
A Europa está cercada: os EUA têm um ambicioso plano de fomento da economia verde, o IRA, que já está a atrair empresas europeias. A China é líder mundial na construção de painéis solares, aerogeradores e tem uma grande ambição nos carros elétricos. A resposta europeia e americana chegou tarde e da pior forma: impor elevadas tarifas alfandegárias aos elétricos chineses para tentar quebrar o espírito económico-expansionista de Pequim.
Mas há quem duvide desta tentativa de bloqueio, argumentando que os chineses conseguem absorver as tarifas nas suas margens e ainda assim serem competitivos. Por outro lado, há empresas chinesas com planos para abrir fábricas na Europa, contornando as tarifas, como a BYD na Hungria.
A economia europeia anda mortiça: crescimento homólogo de 0,6% e de 0,2% em cadeia na zona euro no segundo trimestre, revelou o Eurostat na segunda-feira, ameaçando deitar por terra quem esperava uma ‘aterragem suave’ da economia europeia perante taxas de juro em máximos históricos.
Um dos pontos defendidos no plano de Mario Draghi é a alavancagem da indústria de defesa, ou armamento, europeia. A versão final vai ser divulgada esta segunda-feira depois de ter sido apresentada no Parlamento Europeu na semana passada.
“A base industrial de defesa da União Europeia [UE] está a enfrentar desafios estruturais em termos de capacidade, saber e avanço tecnológico. Como resultado, a UE não está a acompanhar os seus concorrentes globais”, disse Mario Draghi num rascunho do plano citado pelo “Politico”.
“Com o regresso da guerra à vizinhança da UE, a emergência de novos tipos de ameaças híbridas e uma possível mudança de foco geográfico e as necessidades de defesa dos EUA, a União Europeia vai ter que assumir responsabilidade pela sua própria defesa e segurança”, acrescenta, salientando a falta de investimento público: a UE gasta um terço dos EUA.
Uma das recomendações é dar preferência a fabricantes europeus nos concursos face a concorrentes externos; outra é criar uma autoridade europeia para centralizar as compras dos países.
Outra recomendação é a remoção de barreiras a fundos europeus pelas empresas de defesa, defendendo também que o Banco Europeu de Investimento (BEI) deve deixar cair a proibição de investimento neste sector, assim como mudar as regras de ESG para beneficiar a defesa.
Economistas querem menos burocracia e mais investimento
O Jornal Económico ouviu economistas para saber quais as medidas que defendem para alavancar a economia europeia. Entre as medidas defendidas estão o fomento do mercado de capitais, menos burocracia, mais investimento em infraestruturas e em habitação pública, e o alívio das regras de auxílios estatais.
O economista António Nogueira Leite começa por defender a necessidade de um “mercado de capitais europeu”, pois o atual “não permite concorrer com os americanos nem de perto nem de longe”, apontando para os fundos de pensões existentes nos EUA:
“De início tem que haver alguns apoios, como uma política fiscal favorável. É preciso dar alguns estímulos para que se construa uma verdadeira indústria de capital de risco. Os nossos capitais de risco em Portugal estão alavancados em fundos comunitários e públicos”, afirmou.
Em segundo, o economista pede menos burocracia: “Estamos numa das áreas mais reguladas e constrangidas do mundo. Era preciso que Bruxelas se retirasse um pouco, e deixasse a ideia de regulamentar tudo e mais alguma coisa. Tira muita competitividade. Há um excesso de regulação”.
Em terceiro, Nogueira Leite congratula a ideia de apostar mais na indústria europeia de defesa. “Gastamos muito em defesa, mas de forma desencontrada. Isto tem implicações políticas”. Assim, defende um “mecanismo de compra coletiva” e outro mecanismo para promover a cooperação em termos de investigação & desenvolvimento. Critica, por exemplo, a existência de cerca de 10 “sistemas de tanques numa zona deficitária de capacidade militar”. “Há muita necessidade de trabalho coletivo. A indústria da defesa gera muitas externalidades. Esta é uma aposta importantíssima da Europa. Não podemos estar sempre nas mãos dos EUA.
Por último, a questão dos auxílios estatais. Deve Bruxelas continuar a zelar tão rigidamente sobre os apoios dados pelos países às empresas? “Desde os pais fundadores que há uma atenção para não ser distorcer a concorrência. Há muita concorrência distorcida, concorremos contra pessoas que o fazem”. Defende assim um “mecanismo que penalize terceiras partes que o fazem”, apontando baterias à China e aos EUA. “Não podemos ter mais uma desvantagem na economia europeia. Têm de ser penalizados. É uma questão de sobrevivência, existem ameaças geoestratégicas. A Europa não pode abdicar de indústrias fundamentais”.
Por sua vez, o economista Ricardo Cabral defende um “grande investimento em infraestruturas. A China está a investir tem um stock de capital público de 150% do PIB, nós temos 50%. Para competirmos com a China temos de fazer um investimento muito grande”. Depois, a aposta na “habitação pública é fundamental”, defende em declarações ao JE.
A política industrial europeia está destruída, conforme definida por um pequeno grupo de economistas em Bruxelas, e vemos casos concretos em Portugal. Um plano europeu para mudar a dinâmica de crescimento económico só peca por tardio, a Europa está a ficar para trás, da UE só vêm iniciativas avulso muito fraquinhas. A política económica baseia-se muito em ideologia. Quem faz erros não gosta de admitir que os cometeu”.
Sobre a indústria de defesa, diz não ver com “bons olhos” esta aposta, apesar de reconhecer que é necessária a sua existência, pois as “ameaças estão a evoluir”.
Sobre os auxílios estatais, considera que as regras atuais favorecem os “maiores países, as indústrias mais avançadas”. “A Comissão Europeia diz ‘Amén’ a tudo o que vem da Alemanha e de França”, aponta, dando como exemplo os apoios dados para a construção das fábricas da Intel, Tesla e Northvolt. “Não temos os mesmos instrumentos e flexibilidades. A Comissão Europeia obriga-nos a tomar medidas. Fomos obrigados a privatizar o Novobanco em dois anos, os portugueses perdem 9 mil milhões de euros em valor contabilístico. É contraproducente. Não há capitais portugueses, injeta-se dinheiros públicos para depois beneficiar empresas estrangeiras”, referiu.
Dando o exemplo do que pode vir a suceder à TAP, “depois de recapitalizada compram por um valor abaixo do dinheiro injetado. Estas opções são altamente lesivas do interesse nacional. Os altos responsáveis sabem que não podem fazer ondas porque senão são afastados. Até isso ser alterado, vamos continuar a marcar passo. É preciso defender o interesse nacional. Deve haver instrumentos que obriguem os responsáveis a defender primeiro o interesse público e o património do Estado para não fazerem operações que resultem em perdas para o erário público”.
Recordando que Mario Draghi é um dos “mais brilhantes economistas” que passou pelas instituições europeias, destaca que o italiano fez o seu doutoramento no MIT, tendo como orientador o também economista transalpino Franco Modigliani. O ex-líder do BCE considerou que a “moeda única seria uma loucura. O próprio Draghi sabe que há fragilidades que prejudicam. É preciso encontrar uma solução para as deficiências do euro”.
O que quer Draghi?
O plano de Mario Draghi só será conhecido hoje, mas um discurso que realizou em junho em Espanha na entrega do prémio europeu Carlos V (que já premiou Jorge Sampaio, Durão Barroso ou António Guterres) deixa algumas pistas sobre o que pretende e deu alguns indicadores que ilustram o desafio pela frente.
“É preciso reduzir o preço da energia”, afirmou, apontando que os preços europeus são duas a três vezes mais elevados que nos EUA. 60% das empresas europeias dizem que os elevados preços da energia impedem o investimento, mais 20% face às congéneres europeias.
Apontou também que a China gastou três vezes mais em políticas industriais do que a Alemanha ou França em percentagem do PIB. Em paridade de poder de compra, gastou dez vezes mais do que as duas maiores economias do euro.
Noutro discurso, realizado em Bruxelas em abril, deu mais pistas. Na defesa, as cinco maiores empresas europeias pesam 45% no mercado interno; nos EUA, o peso das maiores atinge os 80%.
Na contratação, as compras coletivas (realizadas em conjunto pelos países) pesam menos de 20% no total. E 80% dos contratos públicos governamentais foram para fornecedores externos.
Defendeu também maior consolidação no sector das telecomunicações: 34 grupos de telecomunicações móveis na Europa contra três nos EUA e quatro na China, segundo o discurso citado pelo Groupe d’études géopolitiques um think tank sediado na École normale supérieure em Paris.
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