Aos olhos das associações e especialistas, o apoio psicólogico e judicional pouco apoiam e protegem a vítima de violência física e sexual, tendo em conta o número de penas suspensas ou ainda, casos vividos em silêncio atualmente. O balanço interrompe, assim, três anos de descida, sendo que a solução terá de passar sempre pela prevenção, proteção e formação
A violência doméstica foi apenas reconhecida como crime público há 18 anos atrás, mas as penalizações não têm influenciado as taxas de crime. Elisabete Brasil, da UMAR, apontou que, ao contrário do que se tem verificado com o homicídio, em que tem havido uma tendência decrescente, os números de femicídio têm-se mantido constantes. “Este ano está novamente a contrariar porque segue as tendências da última década e voltamos a um contraciclo”.
Na altura da entrevista à Lusa, o número de vítimas mortais era de 21, ”é brutal tendo em conta que estamos em Setembro e já temos o mesmo nível de mortes do ano passado”, revelou a responsável. No entanto, cresceu para 22 este mês, após uma mulher de 21 anos ter sido morta por um homem de 27, depois de resistir à violação.
Segundo Daniel Cotrim, psicólogo e dirigente da APAV em conversa com o Jornal Económico (JE) ainda existe um grande número de ‘casos invisíveis’ e de mulheres que não fazem denúncias (6.584 dos casos, as vítimas não denunciaram o(s) seu(s) agressore(s), segundo os mais recentes dados APAV). Isto dá-se ‘’devido ao estigma, preconceito, medo, mas também pela própria ‘impreparação’ do sistema para a proteção da vítima’’. Entre 2013 e 2017, a APAV registou um total de 36.528 processos de apoio a pessoas vítimas de violência doméstica. ”Esta falta de resposta por parte da justiça, faz com que a própria vítima tenha uma maior dificuldade em recorrer a ajuda”.
De acordo com dados do Bloco Esquerda, em 2017, registaram-se através das forças e serviços de segurança 26.713 participações de violência doméstica, sendo que apenas 16% das queixas chegaram a tribunal e destas, cerca de 70% são arquivadas.
Luísa Mascoli – psicóloga especialista em clínica de saúde e na justiça, com especial empenho na área da violência doméstica e docente do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas – em declarações ao JE, as denúncias/queixas-crime de violência doméstica em média, nos últimos 5 anos, têm se mantido nas 26 mil queixas-crimes por ano ano. Destas, cerca 10% (2.602) são processos findos e destes somente cerca de 54% (1.534) são condenados.
Importa aqui introduzir a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul), em vigor no ordenamento jurídico português desde 1 de agosto de 2014, (foi assinada em maio de 2011, sendo que Portugal foi o primeiro Estado-membro da União Europeia a ratificar este documento).
Foi revelado em outubro deste ano, que o Governo quer alterar o Código Penal no que diz respeito ao crime de violação, indo ao encontro de recomendações do Grupo de Especialistas em Ação contra a Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (GREVIO). Serão tomadas medidas legislativas ou outras necessárias para assegurar que qualquer conduta indesejada verbal, não-verbal ou física, de carácter sexual, tendo como objectivo violar a dignidade de uma pessoa, em particular quando esta conduta cria um ambiente intimidante, hostil, degradante, humilhante ou ofensivo, seja objeto de sanções penais ou outras sanções legais”.
Rosa Monteiro, Secretária de Estado para a Igualdade e Cidadania, revelou ao JE ainda não ter previsões de alterações do Código Penal. Relativamente às questões de violência sexual e protecção legislativa das vítimas contra os agressores, a secretária não quis prestar declarações.
‘’O sistema, do ponto de vista judicial ainda não é eficaz”, vinca Daniel Cotrim. ”Em termos teóricos, temos das melhores leis que protegem as vítimas. Mas em temos práticos, é preciso ainda trabalhar muito o sistema judicial. O sistema demora muito tempo a reagir à proteção de vítimas. A expressão ‘’em caso de dúvida, é sempre inocente’’ é seguida aqui em Portugal. Temos um sistema que demora tanto tempo a investigar que dá uma falsa sensação aos agressores de que estão verdadeiramente impunes. O número de condenações suspensas ainda é alto e dá uma força aos agressores, porque afinal ninguém acredita na vítima. Esta falta de resposta, por parte da justiça, faz com que a própria vitima tenha uma maior dificuldade em recorrer a ajuda’’, conclui. Entre 2013 e 2017, a APAV registou apenas 40% das vítimas que apoia, apresentaram queixa.
Luisa Mascoli, comenta que ‘’Portugal tem vindo a construir um edifício cada vez mais alto e robusto na resposta às vítimas. Isto acontece através das alterações legislativas, dos objetivos dos planos de combate à violência no seio da família, à violência doméstica e à violência de género. Mas também verifico que não investiu, nem tem investido com a mesma intensidade, na construção de um edifício no combate à intervenção junto dos ofensores. Aí, o edifício a construir ainda está em fase da abertura dos caboucos e das fundações que irão alicerçar toda uma construção sólida’’.
Formação de prevenção contra o silêncio
A vitimização continuada ainda é sentida. 80% dos casos de violência doméstica ocorrem num período, em média, de dois a seis anos, sendo que há casos mais obscuros que atingem os 25. O relatório da APAV revela que 16.584 dos casos, as vítimas não denunciaram o(s) seu(s) agressore(s).
‘’A falta de respostas especializadas na área da violência, a legislação e a pouca confiança nos fatores inibem a partilha do segredo’’, explica Margarida Medina Martins, presidente da AMCV. ‘’A falta de formação dos profissionais nestas áreas, é palpável. Quem não for especializado nesta área de intervenção terá provavelmente dificuldade em perceber o que é que está a ser dito. E, muitas vezes, entre os próprios silêncios’’, conclui.
A nova campanha governamental, “Vamos ganhar a luta contra a violência” foca-se precisamente nisso: na necessidade de formação e qualificação de profissionais de todas as áreas e educação do público. ‘’Este trabalho é feito muito em parceria com ONGs porque elas desenvolvem um trabalho fundamental que tem de ser apoiado pela política pública e tem que ser apoiado pelo investimento público, também. É nesse sentido que muitas das respostas que desenvolvem são apoiadas por projectos e por programas de financiamento publico. São intervenções qualificadas’’, explica Rosa Monteiro, Secretária de Estado da Igualdade ao JE.
”Perplexa fico com o elevado número de ocorrências de violência doméstica a nível nacional e sistemático”, continuou a psicóloga forense. ”Não deveríamos ter de esperar outros 30 anos para construirmos o nosso edifício da prevenção da violência nos adultos e nas crianças; em suma nas famílias, onde a prevalência é mais significativa”, concluiu.
No dia 25 de novembro, o tópico da prevenção da violência contra a mulher é o tema de destaque. A Secretária de Estado apela para a consciencialização e prevenção de uma luta que é ‘colectiva’. ‘’Nunca são os ciúmes e motivos passionais. Tem que ser explicado que a paixão não mata’’, sublinha a Secretária de Estado. ‘’A violência contra a mulher é um crime publico, denunciar é uma responsabilidade colectiva” conclui.
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