A proposta de lei do Governo que altera a Lei da Paridade (em vigor desde 2006) foi aprovada no Parlamento em abril de 2018, mas permanece em discussão na especialidade, na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. As principais alterações consistem no aumento da quota mínima (de 33,3% para 40%) de representação de cada um dos sexos nas listas de candidatos às eleições (legislativas, europeias, autárquicas), na obrigatoriedade de que nas duas primeiras posições das listas sejam colocados candidatos de sexo diferente (aliás, as listas passarão a ser ordenadas, alternadamente, por um homem e uma mulher, ou vice-versa, na sua totalidade) e na aplicação da mesma quota mínima aos cargos dirigentes da administração pública.
No entanto, a Lei da Paridade vai continuar a não ser aplicada na composição dos governos. Ou seja, continuará a ser possível formar governos com acentuado desequilíbrio de género, ou mesmo sem representação de um dos sexos, como o II Governo Constitucional (1978), por exemplo, liderado por Mário Soares e constituído por 55 homens e zero mulheres. Em 44 anos de democracia, seis governos provisórios e 21 governos constitucionais, exerceram funções 1.900 governantes (primeiros-ministros, ministros, secretários e subsecretários de Estado) no total, entre os quais se contam 1.733 homens (91,2%) e 167 mulheres (8,8%). Entre 1974 e 2002, as mulheres nunca conseguiram superar a barreira de 10% de representação nos sucessivos governos de Portugal. Nos seis governos provisórios ficaram abaixo de 2% e nos quatro primeiros governos constitucionais não chegaram aos 5% de representação.
Liderado por António Costa, o atual Governo é o mais paritário de sempre: desde que tomou posse, em 2015, já exerceram funções 57 homens (65,5%) e 30 mulheres (34,5%) no total. Ainda assim, não cumpriria a quota mínima de 40% estipulada na nova Lei da Paridade. O XVIII Governo Constitucional (2009-2011), chefiado por José Sócrates, foi o segundo mais paritário: 44 homens (81,5%) e 10 mulheres (18,5%). Segue-se o XV Governo Constitucional (2002-2004), de José Manuel Durão Barroso, com 60 homens (82,2%) e 13 mulheres (17,8%) no total. Desde a viragem para o século XXI que o número de mulheres nos governos portugueses tem vindo a aumentar, lentamente, até ao ponto mais alto de 34,5% no Governo de Costa. Essa mudança está consolidada e vai ser exponenciada nos próximos anos, ou a maior paridade (ainda distante do equilíbrio 50-50, importa sublinhar) deste Governo é apenas uma exceção circunstancial?
“Não é pelo mérito”
“Na nossa democracia persiste claramente uma sobre-representação masculina nos cargos de tomada de decisão política. Os nossos governos não têm sido representativos da maioria da população portuguesa, as mulheres, 52% da população”, sublinha Alexandra Silva, presidente da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM). “O ritmo do aumento de mulheres nos governos tem sido extremamente lento. A manterem-se as mesmas condições e tendência, seriam necessários mais 23 anos para que o Governo de Portugal alcançasse a igualdade 50-50 na participação e representação de mulheres e de homens”.
“O poder – político, económico, cultural, social, etc. – é uma esfera onde os homens ainda predominam em termos quantitativos. É uma esfera onde as qualificações são substituídas pela rede pessoal de conhecidos e pelas amizades. Se assim não fosse, as mulheres estariam representadas no poder, uma vez que 20% das mulheres têm qualificações de nível superior face a 14% dos homens. Não é, pois, pelo mérito que os homens se encontram no poder”, argumenta Silva.
Questionada sobre se a Lei da Paridade não deveria aplicar-se aos membros dos governos, Silva diz que “a nomeação de homens e de mulheres para cargos governativos acontece frequentemente entre quem foi eleito para o Parlamento. Assim, aumentando a participação das mulheres nas listas e com impacto direto na representação parlamentar, o aumento do número de mulheres nos governos será uma consequência lógica”.
Na perspetiva de Maria Helena Santos, investigadora do CIS-IUL, especializada em estudos de género e ação positiva, “é inegável que se tem verificado uma evolução positiva nas duas últimas décadas, relativamente à igualdade de género na política portuguesa. Mas, como saberá, não se trata de uma mudança natural, ou seja, esta realidade não tem vindo a evoluir de forma ‘natural’ ao longo do tempo. É o resultado de uma medida que foi imposta, digamos assim. A crescente relevância dada ao problema das desigualdades de género nas agendas políticas internacionais provocou uma espécie de ‘efeito de contágio’ ao nível nacional e penso que muita da evolução que se tem verificado no nosso país se deve à implementação de medidas em diversos contextos”.
“Na política, não teria havido uma evolução tão positiva se a Lei da Paridade não tivesse sido promulgada, em 2006, e se o PS não tivesse implementado as quotas no interior do partido”, enaltece Helena Santos. “Já em 1998/99, embora as quotas não tenham sido aprovadas, creio que todo o debate público gerado na altura serviu para aumentar a consciência sobre as desigualdades de género existentes, nomeadamente entre os políticos que, nessa altura, perceberam que a sociedade estava a mudar e que também era preciso corresponder ao eleitorado. Mas a verdade é que só se têm verificado melhorias nos casos em que a Lei da Paridade se aplica. E não é o caso dos ministérios, é na Assembleia da República, no Parlamento Europeu e nas autarquias locais. O que significa que o ‘espírito da lei’ ainda não foi verdadeiramente interiorizado pela elite política”. Como tal, defende que “está na hora de se começar a pensar em aplicar uma medida também aos membros do Governo. Sendo a política o motor da sociedade, como é, muitas vezes, defendido, julgo que deve servir de exemplo”.
“Influência da sociedade civil”
Até ao ano de 2002, nenhum Governo português ultrapassou a barreira de 10% de representação de mulheres na sua composição. Pouco tempo depois, em 2006, foi aprovada a Lei da Paridade, estabelecendo a representação mínima de 33,3% de cada um dos sexos nas listas de candidatos às eleições. Foi neste período temporal que se começou a corrigir efetivamente o desequilíbrio de género nos cargos de representação política. O que motivou ou possibilitou essa mudança naquele período? “A Lei da Paridade que está atualmente em vigor tem tido um impacto moderado na participação de mulheres em órgãos governativos. Na prática, tem-se assistido a um aumento moderado da participação de mulheres no Parlamento. Entre 2005 e 2015, o aumento foi de cerca de 11,7 pontos percentuais”, indica Silva.
“O aumento da participação das mulheres no poder político em Portugal deve-se em boa medida à Lei da Paridade. Esta lei colhe inspiração na Recomendação (2003) do Conselho da Europa sobre a participação equilibrada de mulheres e de homens na tomada de decisão política e pública. Mas o aumento deve-se também à influência da sociedade civil e das mulheres. Cada vez mais há pressão política por parte de plataformas, de associações e de movimentos sociais. Manifestações, marchas, cartas abertas, petições, etc., têm também pressionado o poder político a alterar-se”, destaca.
“São vários os fatores que têm contribuído para que cada vez mais existam mulheres em cargos de tomada de decisão política. Importa, todavia, persistir num aumento significativo que coloque a representação das mulheres em igualdade com a dos homens”, defende. “E para isso é fundamental que as mulheres tomem a palavra e exijam alterações concretas às estruturas de tomada de decisão”.
“Maior consciencialização”
Os seis governos provisórios foram constituídos por 366 homens e sete mulheres no total. No II Governo Constitucional, com um total de 55 membros, não houve uma única mulher. O que é que mudou desde então, até ao atual Governo com 34,5% de mulheres na sua composição, o mais paritário de sempre? Será possível voltar a ter um Governo exclusivamente masculino em Portugal? “É inegável que houve mudanças desde essa altura, em particular quando falamos de números. É inegável que, na política portuguesa, o equilíbrio de género está muito mais próximo de ser atingido. Contudo, em termos simbólicos, diria que a igualdade de género está longe de ocorrer”, responde a investigadora Helena Santos.
“Trata-se de uma questão de género”, prossegue. “Recordo que, até ao século XX, os direitos das mulheres portuguesas eram limitados, ao nível dos direitos civis, sociais e políticos, quer como eleitoras, quer como eleitas. E só o 25 de abril de 1974 e a implementação da democracia vieram eliminar as desigualdades formais, ou seja, na lei. Uma vez instituídas na lei, poder-se-ia esperar que a discriminação face às mulheres estaria ultrapassada, mas não, como mostra a realidade após 44 anos de democracia. O mundo da política é historicamente masculino, com tudo o que isso implica. Apesar de, atualmente, já não existirem as barreiras formais na lei, persistem barreiras de outro tipo, muitas vezes difíceis de detetar, invisíveis, que continuam a dificultar a entrada e permanência das mulheres na política. Impedindo-as, sobretudo, de chegar aos lugares de liderança e de poder, como é o caso”.
E conclui: “Nesta fase, em que há uma maior consciencialização das desigualdades de género existentes por parte dos políticos, mas também por parte dos eleitores, não me parece que haja coragem da parte de algum primeiro-ministro ou primeira-ministra para constituir um Governo exclusivamente masculino em Portugal no século XXI”.
“Democracia mais plena”
Quais são os maiores obstáculos à participação das mulheres na política, ao exercício de cargos políticos? Além da Lei da Paridade, que outras medidas poderiam ser implementadas em Portugal para aumentar o número de mulheres na atividade política? “São vários os obstáculos que condicionam e limitam a plena participação das mulheres na política. As estruturas de poder político, nomeadamente os partidos políticos, são espaços onde os homens estão muito presentes desde há muito tempo. Nesse sentido, a estrutura organizativa dos próprios partidos é resistente às mudanças necessárias ao aumento da participação das mulheres”, responde a presidente da PpDM.
“O Lobby Europeu das Mulheres, no qual a PpDM representa Portugal, lançou em junho a campanha ‘Europa 50-50: Mulheres para a Europa /A Europa para as Mulheres’. Esta campanha visa influenciar as eleições para o Parlamento Europeu e as eleições legislativas em Portugal, agendadas para 2019. Identifica cinco fatores de sub-representação das mulheres na política: confiança (as mulheres, por um conjunto de razões bastante racionais, têm mais dúvidas em candidatarem-se); seleção de candidatos (quando as mulheres decidem concorrer, é-lhes frequentemente difícil ficarem num lugar elegível); cultura (a política ainda é um mundo muito masculino, existe sexismo e as ameaças externas, como são entendidas as mulheres, frequentemente não são bem-vindas); dinheiro (quando as mulheres concorrem, frequentemente as suas campanhas recebem menos dinheiro do que as dos homens); cuidados a pessoas em situação de dependência (as mulheres despendem mais do dobro do tempo com os cuidados às crianças e a outras pessoas em situação de dependência do que os homens)”, destaca Silva.
“O que tem sido feito e será reforçado com a campanha em curso? Apoiar a participação igual das mulheres e dos homens na política e na tomada decisão. Reforçar a capacidade da sociedade civil e dos movimentos de mulheres para fazerem lobbying com eficácia para a paridade na tomada de decisão. Inspirar, capacitar e informar as mulheres que vão concorrer”, acrescenta.
“Certamente que há ainda muito por fazer, mas daqui para a frente, particularmente em Portugal, estamos otimistas de que a participação das mulheres no poder político alcançará um patamar de representatividade igualitária”, antevê a presidente da PpDM. “Claro que, na nossa perspetiva, isso deve acontecer o mais rapidamente possível. E cá estamos e estaremos para apoiar as mulheres que se candidatam e que exercem o poder, porque acreditamos que mais mulheres na política trará mudanças significativas nas condições de vida das mulheres e dos homens”.
Por sua vez, Helena Santos afirma que “a política é um mundo marcadamente masculino, com tudo o que isso implica. Nos estudos que tenho realizado com políticos, tenho percebido que, em geral, é partilhada a ideia de que a Lei da Paridade serviu, de facto, para abrir as portas e dar espaço às mulheres na política, mas elas defendem que se trata de um mundo que permanece essencialmente masculino e que o poder continua nas mãos dos homens”.
“As mulheres continuam a perceber-se e a ser percebidas como ‘estranhas’, como ‘o outro’, e a sentir-se muito inseguras, até porque continua a haver uma elevada vigilância do seu desempenho. As mulheres continuam a ser sujeitas a um maior escrutínio do que os homens, continuam a ter de provar as suas competências. As mulheres continuam a ser sujeitas a sanções informais e a encontrar mais obstáculos, apesar das suas qualificações. E continuam a ter poucas ‘redes informais’. Além disso, como é sabido, é às mulheres que continua a caber a questão da ‘conciliação’ da vida política e da vida familiar, continuando a carregar a chamada ‘dupla jornada de trabalho’. Portanto, medidas de ação positiva a estes níveis seriam muito bem-vindas”, conclui Helena Santos. “Só assim se poderá caminhar no sentido de uma maior paridade de género e da democracia mais plena”.
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