A sugestão desta semana começa com uma citação de uma grande repórter, Martha Gellhorn: “Eu não conseguiria existir em nenhuma forma de ditadura e detesto aquele tipo de pessoas que ficam ultrajadas apenas com ditaduras comunistas”, retirada do texto “Um olhar sobre a Mãe Rússia”, a que voltaremos mais adiante (incluído no livro “Cinco Travessias do Inferno”, edição da Tinta-da-Cinha, com tradução de Raquel Mouta).
Este começo tem duas razões: a primeira é uma total concordância com a frase de Gellhorn – uma ditadura é uma ditadura, seja de que quadrante for; a segunda é que a invasão russa da Ucrânia, apesar de esta Rússia de hoje estar longe de ser um país comunista, por muito que haja quem se negue a aceitá-lo, e de estar igualmente longe de ser uma democracia, teve o efeito de provocar uma verdadeira torrente editorial de autores russos, ucranianos ou, de um modo geral, da ex-URSS (claro que nem todas as obras terão o mesmo mérito, mas há várias a merecer a atenção dos leitores mais dedicados).
Com a distância de poucos dias saem em português dois livros fundamentais de um casal que sofreu horrores sob a ditadura soviética: “Crepúsculo da Liberdade” (Assírio & Alvim, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra), de Óssip Mandelstam (1891-1938), um dos maiores poetas russos do século XX, apesar da sua curta vida, e “Contra Toda a Esperança” (Imprensa da Universidade de Lisboa, tradução de Ana Matoso e Larissa Shotropa), de Nadejda Mandelstam (1899-1980), que, após a morte do marido, dedicou a sua vida à preservação e divulgação da sua obra (na década de 1960 conseguiu fazer chegar ao estrangeiro os poemas de Óssip, onde seriam publicados, e o seu nome seria finalmente reabilitado em 1987.
Tudo começara com um poema satírico que este amigo de Boris Pasternak e Anna Akhmatova escrevera sobre Estaline e que chegou aos ouvidos deste; rapidamente se seguiu a prisão e a morte viria a apanhá-lo num campo de trânsito perto de Vladivostoque.
O livro de Óssip Mandelstam inclui alguns textos em prosa, ensaios, poemas e o relato da sua viagem à Arménia, que incluiu também outras regiões do Cáucaso, como a Abecásia (que, se fossemos rigorosos, talvez tivesse um estatuto semelhante às atuais regiões ucranianas ocupadas pela Rússia, neste caso relativamente à Geórgia).
Este primeiro livro de memórias de Nadejda Mandelstam é não só um relato dos últimos quatro anos em que viveu com o seu marido, mas também o retrato da perseguição atroz de Estaline e dos seus sequazes aos escritores soviéticos, que teve início nos anos 1930 e que, infelizmente, ceifou tantas vidas, sem sequer ser necessário considerar o seu valor literário.
Voltando ao início, o mencionado texto de Martha Gellhorn, em que ela descreve a sua viagem a Moscovo, em Julho de 1972, para conhecer Nadejda Mandelstam, que admirava profundamente e com quem iniciara uma profusa correspondência (ambas iniciadas precisamente após a norte-americana ter lido este livro de memórias que aqui destacamos), é, apesar das circunstâncias e se nos conseguirmos abstrair da pobreza real e moral em que se vivia na época na URSS – sobretudo alguém com o calibre intelectual da viúva de Óssip –, um dos mais hilariantes relatos de que haverá memória na literatura de viagem.
Eis a sugestão de leitura desta semana da livraria Palavra de Viajante.
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