Um dos resultados mais claros das eleições para o Parlamento Europeu é aquele que indica que o eixo Paris-Berlim, sem o qual nada se passa na União Europeia, está sob forte ameaça da extrema-direita. Face aos péssimos resultados do partido de Emmanuel Macron, que viu a extrema-direita ter mais do dobro da sua votação – 32% contra 15% – o presidente decidiu, numa manobra política no mínimo temerária, convocar eleições legislativas antecipadas.
Os analistas são unânimes em rejeitar a decisão como sensata – mas talvez Macron coloque a hipótese de, até às presidenciais (tão longínquas quanto maio de 2027), e face à evidência da próxima co-habitação com o Reagrupamento Nacional (RN) de Marine Le Pen, ter arte e o engenho para ‘esvaziar’ o fôlego dos extremistas, que têm conseguido capitalizar o descontentamento de parte da população em temas como a imigração, a globalização, a guerra na Ucrânia e o papel das instituições europeias. Segundo alguns analistas, Macron pretende assim que Le Pen e o seu partido cheguem a 2027 politicamente tão desgastados que não consigam vencer as presidenciais, que Macron, ele próprio, também não vencerá, dado que não pode concorrer. É um movimento de risco em que ninguém parece acreditar.
O programa de Le Pen combina propostas económicas tradicionalmente de “esquerda” (como o intervencionismo estatal na economia, medidas protecionistas ou a oposição à privatização da Segurança Social), com velhas bandeiras da extrema-direita em áreas como a imigração, a segurança e a política europeia e internacional. Para o projeto europeu, a ascensão ao poder de Marine Le Pen poderia ter um impacto significativo em muitas áreas, dado o peso económico e demográfico de França.
A líder do RN admite convocar um referendo sobre a pertença de França à União Europeia e defende uma “Europa das nações”, como contraponto ao que considera ser uma União Europeia demasiado centralizada em Bruxelas. Diz também que não quer acabar com a União Europeia, mas sim refundá-la, retirando poder a Bruxelas para o devolver aos governos nacionais. Temas como o mercado único, a livre circulação (a líder do RN quer tirar a França da Área Schengen, para acabar com a imigração ilegal), a Política Agrícola Comum (PAC), os acordos internacionais de comércio (propõe a “refundação” da OMC) e a posição europeia face à invasão russa da Ucrânia serão alguns dos dossiers onde uma França liderada por Le Pen terá posições muito distintas daquelas que têm sido seguidas por Macron e seus antecessores. E para implementar as suas promessas eleitorais, por exemplo no que toca a favorecer empresas gaulesas ao arrepio das regras comunitárias, o governo de Marine Le Pen teria de violar vários acordos europeus, fragilizando aos poucos o poder da Comissão, eventualmente em concertação com outros governos de extrema-direita, nacionalistas ou populistas, como o italiano ou o húngaro.
Estratégia de “normalização” da antiga Frente Nacional produziu resultados
A seu favor, a líder da extrema-direita francesa tem os bons resultados de um esforço de “normalização” do seu partido, ao longo dos últimos anos, com o afastamento dos elementos radicais (incluindo o seu pai e fundador, Jean Marie Le Pen), a moderação em temas como o aborto e a tentativa de se assumir como herdeira ideológica do general De Gaulle (apesar de o RN, anteriormente conhecido por Frente Nacional, ter velhos pétainistes e membros da OAS entre os seus primeiros militantes), com alusões à “Europa das Nações” e a uma França que não esteja na dependência dos EUA e de outras superpotências. A seu favor tem, ainda, o facto de a maioria dos franceses desconhecer as regras comunitárias e a dificuldade que Le Pen teria em cumprir certas promessas eleitorais.
Um dos temas mais “quentes” seria, eventualmente, o que diz respeito às contribuições francesas para o orçamento comunitário, que Le Pen promete reduzir, ainda que à revelia das regras europeias e correndo o risco de um braço-de-ferro com Bruxelas.
Na prática, isto seria o fim do projeto europeu tal como o conhecemos, com aquilo a que o “Político” chama de “desmantelamento da União Europeia”.
Quanto à pertença ao euro, nos últimos anos Le Pen tem moderado a sua posição e parece menos provável que pretenda retirar a França da moeda única. Porém, no limite, o futuro do euro dependerá da sobrevivência da própria União Europeia.
Outra área onde a eventual ascensão de Le Pen ao poder representaria uma forte viragem face às últimas décadas seria a da política externa, para além do espaço europeu. A fazer fé nas promessas de Marine Le Pen, uma França por si governada procurará deixar a NATO e a “esfera de influência” americana e chegar a um entendimento com a Rússia para assegurar a paz no Velho Continente.
AfD também está em ascensão na Alemanha
Na Alemanha, onde o chanceler também saiu derrotado, o facto de Olaf Scholz já ter dito que não convocará eleições antecipadas não surpreendeu ninguém: é sabido que os germânicos têm muitas reservas face à antecipação das eleições, preferindo sempre, sem exceção, que as legislaturas vão até ao fim. Scholz só terá de esperar, em princípio, até setembro de 2025 para recolher a opinião dos germânicos – mas o desgaste do chanceler é de tal ordem (as coisas correram-lhe mal desde a primeira hora), que ninguém acredita num bom resultado para o ‘seu’ SPD.
Os seja, ainda ‘em vida’ do Parlamento Europeu que saiu da votação destes últimos dias, os dois maiores países da Europa poderão estar a ser governados por partidos de extrema-direita. Sendo certo que, como já sucedeu em diversas regiões da Alemanha (mas especialmente na Baviera), os conservadores democratas-cristãos não precisam de muito para romperem o ‘cerco sanitário’ em torno dos extremistas (alguns declarada e publicamente neo-nazis) do AfD.
Espanha é outro dos 27 países da União onde as coisas correram muito mal para o partido no poder, no caso o socialista liderado por Pedro Sánchez. O chefe do governo tem tido vida política muito difícil desde que formou o novo executivo, depois das eleições de julho. Não é que tenha sucedido nada de novo: o Partido Popular voltou a ser a formação mais votada – como já o fora nas eleições anteriores – o que coloca mais pressão sobre os ombros de Sánchez, acossado por estes dias com novas evidências de que a sua mulher, Begoña Gómez, não terá resistido a exercer ‘diplomacia de influência’ fora das regras para ajudar alguns amigos que lhe são próximos. Com o Vox a portar-se bem (ganhou dois deputados na Europa, passando a ter seis lugares), a pressão é ainda maior, depois de o partido de extrema-direita não ter conseguido formar uma maioria absoluta com o PP nas eleições de julho.
Na Bélgica, as contas também foram difíceis para as forças centristas: os conservadores nacionalistas da Nova Aliança Flamenga foram a força mais votada e o primeiro-ministro, do partido liberal (que ficou ter abaixo dos 7%), decidiu demitir-se. Além de extremista, anti-imigração e tudo o mais que faz parte do menu da extrema-direita, o Nova Aliança é ainda um partido separatista – o que coloca a Bélgica de regresso à tentação de dar lugar a dois países diferentes (ou até mesmo a três) – tentação, aliás, que está sempre no horizonte político dos belgas. O país votou em eleições regionais, nacionais e europeias, naquilo a que chamou, ‘americanizando-o’, o ‘Super Domingo’.
Os liberais do Open VLD, do primeiro-ministro Alexander De Croo, foram os grandes derrotados, facto que se repetiu em vários outros países, com a excepção de Portugal. Isto porque os liberais têm, em diversos países (como por exemplo na Alemanha e também, fora da União, no Reino Unido), um histórico de muitos anos que ainda falta ao ‘nosso’ Iniciativa Liberal. A novidade não estava, portanto, no horizonte político dos liberais europeus, pelo que os partidos que vogam neste quadro do espectro político não se saíram bem da jornada eleitoral de junho.
Igualmente estranha foi a votação nos Países Baixos. Depois de o extremista Geert Wilders ter ganho as últimas eleições no país – é certo que não conseguiu formar governo, mas ganhou – os neerlandeses parece terem aprendido uma lição qualquer e desta vez deixaram-no para trás.
No geral, os resultados das eleições europeias confirmaram o aumento previsto dos partidos de extrema-direita – mas não se confirmou essa espécie de avalanche que alguns analistas antecipavam. Considerando todos os grupos juntos, os partidos de extrema-direita têm agora um total de 174 lugares (24% das 720 cadeiras) – quando em 2019 tinham 165, que era um pouco mais de 20%, tendo em conta as 29 cadeiras do Partido Brexit, do Reino Unido.
Os maiores contingentes da extrema-direita são agora os franceses (30 lugares), os Irmãos de Itália (24), os polacos do PiS (20), o germânico AfD (15) e o Fidesz do primeiro-ministro húngaro Viktor Orban (11). Juntos, somam 57% de todos os representantes eleitos de extrema-direita. Apenas a Irlanda e Malta se encontram à parte do fenómeno de crescimento da extrema-direita. Ao contrário, na França, Itália, Polónia, Hungria, Dinamarca e Países Baixos, a extrema-direita é composto por duas ou até três formações, o que de algum modo atesta o amadurecimento das suas propostas. Mas atesta também a dificuldade em a extrema-direita europeia surgir alinhada. No geral, a extrema-direita ficou em primeiro lugar na França, Itália, Hungria e Áustria (na Bélgica, ficou em primeiro lugar apenas na Flandres). Em 2019, haviam ganho em Itália, França, Hungria, Polónia e Reino Unido.
Uma nota final: sem a avalanche que chegou a ser temida, os destinos da União Europeia continuarão nas mãos do Partido Popular Europeu (PPE), que voltou a sair vencedor – e das suas, por vezes, pouco claras alianças com os socialistas do PSE. Para todos os efeitos, uma das grandes vencedoras da(s) noite(s) de cotação foi a alemã Ursula von der Leyen, que não terá de esforçar-se tanto quanto parecia para manter o lugar. E provavelmente – apesar de já ter feito ‘a ponte’ – não terá de recorrer a uma nova e inesperada amizade com a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni.
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