[weglot_switcher]

Gabriel García Márquez: “Ninguém Escreve ao Coronel”

A sexta-feira passou a ser o dia por que o Coronel mais ansiava. As semanas passavam. Os anos escorriam. A miséria ganhava terreno. Pouco importa. A obstinação prevalece e com ela um belo texto de ‘Gabo’, com a chancela D. Quixote.
27 Junho 2020, 11h08

Os anos foram passando e o coronel aprendeu a conjugar o verbo esperar como ninguém. E assim esperou… por uma carta que lhe daria conta da reforma prometida por um governo que entretanto caíra. Esperou 15 anos e a carta nunca chegou. Esperou viver uma vida melhor. Esperou ter outra resposta para dar à sua mulher que não “Vai chegar”.

A vida é madrasta, diz-se, mas é com mestria que Gabriel García Márquez retrata o rol de infortúnios que se abate sobre este casal de velhos sem nome, o coronel e a mulher, que viram o filho ser assassinado e dele receberam como herança um galo, daqueles que são treinados para entrar em lutas… de galos. Ora, acontece que as lutas de galos, além de ilegais, só começavam em janeiro, e a história arranca em outubro – “uma das poucas coisas que chegavam”, com o coronel a sentir que lhe nasciam “fungos e lírios venenosos nas tripas”.

Tal como chegavam as sextas-feiras, dia de rumar ao cais de terreola para receber a tão ansiada pensão. Para ouvir o carteiro dizer desdenhosamente, semana após semana, ano após ano, “ninguém escreve ao coronel”.

E assim viviam, entre a angústia da reforma que não chega e a dúvida sobre vender ou não o galo. Enquanto o nó não desata vão vendendo os seus parcos haveres, pois há que alimentar o galo. Mesmo que, para isso, um ou outro não tenham o que comer. “[…] pôs-lhe ao lado um punhado de milho. Entrou um grupo de crianças pela cerca sem cancela. Sentaram-se em volta do galo, a contemplá-lo em silêncio.

– Não olhem mais para esse animal – disse o coronel. – Os galos gastam-se de tanto olharem para eles.”

‘Gabo’ não dá tréguas ao leitor. A espera, a perda, a miséria, as diferenças sociais, o envelhecimento… o seu bisturi tudo disseca em menos de cem páginas, naquele que é o seu segundo romance, publicado pela primeira vez em 1961. “O Coronel comprovou que quarenta anos de vida em comum, de fome em comum, de sofrimentos comuns, não lhe bastaram para conhecer sua mulher. Sentiu que também no amor alguma coisa tinha envelhecido.” E assim passava mais uma semana e se instalava novamente a sexta-feira…

 

 

Gabriel García Márquez nasceu em Aracataca, Colômbia, em 1927. Ficou ao cuidado dos avós, um coronel na reserva, ex-combatente na guerra civil, e uma apaixonada pelas tradições orais indígenas. Estudou no ambiente austero de um colégio de jesuítas e depois seguiu Direito na Universidade de Bogotá. Nunca concluiu o curso, pois o seu fascínio pela escrita desviou-o para a Universidade de Cartagena para estudar Jornalismo.

Iniciou carreira como jornalista em 1948 e foi destacado como correspondente em Roma em 1954. A ditadura colombiana fechou o jornal e Gabo permaneceu na Europa. Um ano depois é publicado o seu primeiro livro, uma coletânea de contos, “La Hojarasca”, que passou despercebido. Só em 1967, com “Cem Anos de Solidão”, o homem que pôs Macondo no mapa e no vocabulário universal se fez escritor. “O Outono do Patriarca”, “Crónica de uma Morte Anunciada” e “Amor em Tempos de Cólera” são apenas alguns das obras que o Nobel (1982) deixou para a história da Literatura.

Ele que um dia anunciou que deixava de escrever por perda de memória, foi um escritor que entrelaçou como poucos memória, cultura e imaginação.

Texto publicado originalmente no caderno Et Cetera de 29 de Maio de 2020.

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.