A bienal experimentadesign (EXD) despede-se este ano do público que acarinhou a sua irrequietude e imprevisibilidade ao longo de 18 anos e nove edições. Recebeu mais de um milhão de visitantes, convidou mais de 1.800 participantes, portugueses e estrangeiros, e envolveu 48 países em projetos totalmente originais. A propósito da última edição, conversámos com Guta Moura Guedes, presidente da Associação Experimenta, sobre os desafios passados e futuros, e sobre uma das disciplinas que mais facilmente faz a ponte entre a cultura e a economia: o design.
A vontade de fazer acontecer esteve na génese da EXD. Quando foi desenhada, em pleno élan da Expo 98, havia um contexto favorável para um projeto dessa natureza. Hoje estamos de novo perante um contexto positivo?
Penso imenso nisso, porque a EXD foi criada fruto de uma boa ideia, de uma leitura inteligente e sensível do contexto internacional, e só aconteceu porque o contexto era positivo e permitia recebê-la em Portugal. Se não fosse aquele contexto – falo da Expo e dos interlocutores que tiveram a capacidade de ler o que nós estávamos a propor e de perceber o interesse estratégico para Portugal – a EXD não teria acontecido. Seria uma boa ideia na mesma, estava bem preparada, mas não teríamos com quem falar nem teríamos um contexto que permitisse concretizá-la. Agora, o contexto é radicalmente diferente. Naquela altura falarmos de ligação entre economia e cultura era uma ideia ainda muito vaga e não havia uma performance da parte dos agentes culturais que permitisse que os agentes económicos entendessem esta relação. Hoje a situação inverteu-se. Falando de Portugal, dou muitas conferências e falo muito nas escolas pelo país fora, mas estou muito próxima dos agentes autárquicos, dos novos CEO nas empresas, das novas gerações. Houve efetivamente uma renovação, quer ao nível das autarquias quer das empresas, em cargos de direção, que faz com que o contexto seja positivo e recetivo a este tipo de projetos.
O cruzamento da cultura com a economia passou a ser encarado de outra forma?
Fiz um post recentemente a propósito de um artigo muito interessante do José Vegar que fala na forma como a economia se cruza com a cultura, sem esta se subalternizar, obviamente, porque traz valor acrescentado à economia. É um tema muito importante e muito século XXI, porque a forma como a cultura era vista na sua relação com a economia e a sociedade no século XX, e séculos anteriores, era muito diferente. Acho que agora há um entendimento muito mais claro, quer da parte dos economistas e dos empresários, quer da parte dos agentes culturais sobre esta ligação. E o efeito é real: quando surge esse cruzamento, aquilo que produzimos tem efetivamente um valor acrescentado. E uma coisa é operarmos só no meio da economia e outra coisa é trazer a cultura para a economia, porque as pontes que se constroem através da cultura são mais eficazes e eficientes do que as pontes que se criam através do dinheiro.
A cultura, em sentido lato, deve ser considerada um bem de primeira necessidade?
Sem qualquer dúvida. Há imensos estudos que defendem quatro pilares para uma sociedade sustentável: a economia, a vertente ambiental, a sustentabilidade social e a cultura. Acima de tudo, o que é preciso compreender quando há dúvidas em relação a isto é que a cultura prepara as pessoas para serem mais competitivas, eficazes, justas, mais livres, mais ativas, mais tudo! [sorriso]
Portugal tem boa formação em design, mas será que tem gerado massa crítica?
Essa é uma pergunta interessante porque toca em duas questões. Antes de mais, há que entender que o design é uma disciplina recente e em evolução, ainda não estabilizou. Se pensarmos na arquitetura, escultura, engenharia e economia, por exemplo, são disciplinas com um corpo de conhecimento e uma estabilização muito grande. Ou seja, primeira questão, perceber que é uma disciplina em expansão, mutação, evolução. Segunda questão, importa perceber que Portugal é um sítio que tem excelente formação ao nível do design, as nossas escolas são muito boas, mas, a meu ver, ainda forma os designers limitando-os em demasia em relação àquilo que eles podem na verdade fazer. Ou seja, os designers saem da universidade a pensar que, acima de tudo, vão fazer cadeiras, objetos, comunicação, software, algo de muito tangível. Na minha perspetiva, e remetendo para aquilo que falámos há pouco, o design é uma das disciplinas que mais facilmente faz a ponte entre a cultura e a economia. E, portanto, a aplicação do design pode ser muito maior – os designers precisam de saber isso e os empregadores também. Tenho dito muitas vezes que estaremos no ‘momento certo’ quando tivermos núcleos de design e designers nas câmaras municipais, nos hospitais, no governo, nas empresas, agindo não só enquanto aqueles que dão forma ou finalizam a ideia, mas também a jusante e transversalmente, porque as competências que eles têm de poder ler e compreender o contexto, de adaptar-se e de encontrar soluções para o contexto, são úteis em qualquer frente. Do meu ponto de vista, os currículos deviam já estar a prepará-los para esta abertura de território onde eles podem operar e, paralelamente, os empregadores deveriam saber mais sobre o potencial desta disciplina para o seu negócio – seja ele gerir uma cidade ou um país, uma empresa ou um hospital.
As universidades são produtoras de conhecimento, mas este tem de sair da academia para haver debate, discussão.
Falo primeiro sobre a problemática em redor dos media e a forma como se comunica, as redes sociais e tudo isso, que me interessa. Há muita coisa nova e há também a necessidade de se aprender a lidar com estas novas ferramentas. Para mim, o principal interesse dos media e das plataformas de comunicação é precisamente preencher esse gap natural que existe entre quem produz informação e quem pega nesse conhecimento e reflexão e faz acontecer as coisas. Diria que o grande desafio está nos media e nos utilizadores das plataformas de comunicação, onde eu me incluo. Não tenho um jornal, mas tenho uma página de Facebook onde posso, de alguma forma, ir disponibilizando informação e criando pontes. Falando num lado mais proativo, as universidades, os produtores de conhecimento também devem ter consciência disso e não devem ter vergonha nem pejo de utilizar essas plataformas, e perceber que a utilização da comunicação tem a ver com a disponibilização de conhecimento.
Em Portugal, a partilha de informação ainda é feita com contenção?
Sim, faz-se com algum temor, contenção. Aí somos diferentes de outros países. Lembro-me de um finlandês que estava a fazer um trabalho fantástico sobre a cidade de Helsínquia, em que toda a reflexão crítica que estava a ser feita sobre a cidade, para a cidade e paga pela cidade foi colocada numa plataforma online aberta para as pessoas consultarem e utilizarem. Uma coisa é a câmara decidir que uma parte da cidade deve ser dedicada a atividades culturais ou a um núcleo de startups, outra coisa é uma pessoa que tem o seu pequeno negócio poder orientar as suas decisões de acordo com uma linha estratégica mais ampla. Se antes isto era uma conversa mais distante das pessoas que estavam no terreno com os seus negócios, agora não é porque as gerações já estão preparadas para este tipo de informação. Além disso, a informação já pode ‘flutuar’ de uma maneira muito democrática. Aliás, a base da EXD quando foi criada, era precisamente trazer a informação para toda a gente.
Esse é um dos legados da EXD?
Acho que é, porque quisemos desmitificar a disciplina do design: isto não é um bicho-de-sete-cabeças, é uma ferramenta utilíssima que produz soluções e aumenta a eficácia das coisas que nós fazemos.
A EXD também contribuiu para a educação do público?
Três coisas: a formação e a informação, e a possibilidade que nós demos, ao longo de 18 anos, para que a inovação no campo da cultura pudesse acontecer. Em 98 havia instituições com fundos públicos e privados que atribuíam bolsas, por exemplo, na área da ciência, das matemáticas, da medicina, da economia, da investigação científica… mas quando entrávamos no campo da cultura, as coisas mudavam de tom. Normalmente eram vistos como subsídios aos artistas para que pudessem fazer as suas obras e não eram vistos como uma coisa fundamental. O investimento na cultura, dando total liberdade para a cultura poder acontecer, é tão importante como o investimento na ciência. E a EXD, durante estes anos todos – e nós envolvemos mais de 1.800 criadores portugueses e estrangeiros –, foi uma alavanca no possibilitar dessa inovação, do experimentar. E o valor que essa plataforma criou ao permitir essa experimentação pura e dura – depois se vê se os resultados são bons ou não – tem sido essencial. E outro elemento interessante é que eu nunca sabia o que ia ver a cada edição. Sabia o que tinha lançado e desafiado, mas não sabia quais seriam os resultados. Fui sempre ‘um público’ da EXD, porque não participava enquanto produtora de conteúdos. [sorriso] E essa irregularidade faz parte deste sistema quando estamos a experimentar. Os fracassos são tão importantes como as vitórias. A EXD tinha essa caraterística, que era possibilitar o erro, o engano, o recuo, a conquista, a experimentação e a inovação. Não acontece sempre, mas quando acontece é extraordinário! Esse é um dos nossos grandes legados.
Disse recentemente que “para evoluir é preciso ter coragem de terminar e criar novos ciclos”. A EXD chega ao fim no formato que conhecemos. O que se segue?
Terminar ciclos é uma sorte, porque às vezes há ciclos que terminam sem nós querermos. Começa-se por ter a sorte de poder ‘fazer um fim’ de uma coisa que nós começámos e isso é raro. A nossa vida termina sem nós querermos e a vida dos outros também. Há muitos projetos que terminam por razões que são exógenas e neste caso não. Aqui, decidimos terminar porque, realizando as diferenças de contexto entre 1998 e 2001, quisemos antecipar problemas e transformar modos de atuação que tínhamos vindos do século passado, e portanto queríamos e vamos fechar um ciclo. Além disso, temos um ativo de 18 anos que tem um valor enorme e que vamos manter, a par de alguma consultoria. Mas, acima de tudo, vamos manter a vertente de serviço público. Não conseguiria desenvolver um trabalho onde essa vertente não existisse. É-me essencial, faz parte da minha matriz enquanto pessoa. A EXD é a associação que eu dirijo e tem essa matriz, e, tendencialmente, as pessoas que aqui trabalham também têm essa matriz. Isso significa que iremos manter uma série de projetos que têm uma vocação de entrega à sociedade, que vamos tentar viabilizar, e que têm uma componente de ação social e de produção de conhecimento para os outros. Essa tónica da EXD vai-se manter, não a queremos perder. O que vai acontecer é que não vamos ter a moldura de bienal, ou seja, vai libertar-nos dessa ‘prisão temporal’ e de um ritmo que nos obrigava a atuar a cada dois anos, e vamos decidindo, projeto a projeto, os momentos de apresentação ao público, de trabalho de campo e de parceria, e os momentos em Portugal e lá fora, mas mantendo exatamente a mesma matriz.
Há algum país onde gostasse de atuar?
Posso dizer que se há país que me entusiasma neste momento são os EUA.[sorriso] Por muitos motivos e seria uma longa conversa…
Dois motivos já nos podem dar algumas pistas.
Por um lado, a dimensão e as assimetrias do país, que são algo que me interessa. Por outro, o inequívoco papel que os EUA têm no plano global, visto ser um país determinante naquilo que o mundo é e vai ser. Gosto da ideia de poder operar junto e com um país que tem a possibilidade de poder alterar algumas coisas a nível global. Há uma comunidade portuguesa importante junto a Nova Iorque. E há três ou quatro coisas nos EUA que me interessam muito, sendo que culturalmente sempre foi um país que me foi muito distante. Não existe uma proximidade cultural entre a Europa e os EUA. Tal como não existe entre a Europa e a China ou a Índia, e boa parte da Ásia. Mas tendo eu uma relação muito forte, muito ligada à cultura inglesa, e uma maneira de trabalhar muito próxima do modelo anglo-saxónico, sinto-me muito em casa nos EUA, mais concretamente em Nova Iorque. E acho que este é um momento interessante para a Europa se relacionar com os EUA. Neste momento, em que podemos observar algumas fraturas nos EUA e na Europa, disrupção e redesenho – aí está a vertente do design –, aquilo que fazemos na EXD e que fazemos com o design podem ser surpreendentes.
Nova Iorque poderá ser o ponto de partida de uma nova ‘experimentação’?
Sim, adoraria daqui a uns tempos estar a falar sobre isso! [sorriso] É um grande desafio, mas não poderia ser de outra forma. Acredito muito na relação entre os EUA e a Europa neste momento, e acredito muito em Portugal nessa relação.
PRIMEIRA PEDRA
A EXD aceitou o desafio da Assimagra – Recursos Minerais de Portugal para desenvolver um cluster da pedra portuguesa. O programa “Primeira Pedra” arrancou em Veneza, passou por Milão, Basileia, Londres, São Paulo e Nova Iorque. Teremos oportunidade de vê-lo em Lisboa?
O projeto é uma candidatura ao COMPETE, isto é, uma candidatura na área da internacionalização e grande parte das iniciativas têm que ser no estrangeiro, e foram no estrangeiro. Tivemos 54 projetos desenvolvidos de propósito por 23 designers e arquitetos do mundo inteiro. O resultado desse trabalho da pedra portuguesa é verdadeiramente extraordinário! E claro que queremos mostrá-lo em Portugal. Vamos organizar uma exposição em 2018 e, nessa altura, vamos tentar ter cá todos os criadores, porque eles próprios não viram tudo, e porque queremos que os portugueses vejam o trabalho daí resultante.
A aplicação das práticas do design à indústria obriga a repensar processos e respostas?
Esta inserção do design como vetor de inovação num cluster como o da pedra portuguesa não é uma ação de superfície. Cada vez que trazemos novos projetos para dentro da indústria e obrigamos a indústria a reformular maneiras de pensar, de produzir e de responder, isso tem um impacto muito grande quer na indústria quer na empresa, a somar ao impacto mediático. Neste caso concreto, foi desenhar de novo, mostrar a competência da pedra e da indústria, e criar novos projetos. Ou seja, foi um exercício de renovação para as empresas e é aí que o design desempenha um papel extremamente importante.
Qual tem sido o feedback dos criadores e da indústria envolvidos neste projeto?
Tem sido extraordinário, e ficaram deslumbrados com os resultados! Os designers veem as pedras em bruto no ateliê, recebem o perfil das empresas e percebem até onde podem ir, desenham, mandam os projetos, nós vemos, as coisas são acertadas, há todo um diálogo e os protótipos são feitos, mas, na verdade, eles só veem as peças finalizadas nas exposições. E aí, quando são confrontados com a qualidade dos resultados, ficam totalmente surpreendidos! Há um enorme desejo de continuação, o que é muito bom, pois agora temos 23 embaixadores da pedra portuguesa nas mais diferentes cidades a falar da nossa indústria, da nossa pedra, e com vontade de continuar!
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