Potenciais impactos da crise pandémica na prática decisória penal

A pandemia por Covid-19 determinou que fossem tomadas medidas quanto ao cumprimento dos prazos e obrigou a redefinir o modo de funcionamento dos tribunais, dando azo a numerosas discussões sobre questões práticas da vida judiciária. O vírus impactou ainda as prisões, tendo justificado reduções de penas e, nalguns casos, alterações de medidas de coação.

Em prazo que se antecipa ser curto, sairão os resultados dos primeiros testes serológicos às medidas tomadas no âmbito da justiça, que permitirão identificar e caracterizar o estado da imunidade judiciária e o início da nova normalidade forense.

O funcionamento regular dos tribunais não significa, porém, necessariamente, o fim da crise epidemiológica e muito menos, infelizmente, o fim da crise económica. O contexto SARS-CoV-2 terá, assim, um impacto significativo na análise dos problemas que serão colocados aos tribunais.

Parece-nos inevitável que o julgador tome em consideração o potencial efeito do contexto Covid no exame dos comportamentos com os quais é confrontado. Urge, assim, passar a uma abordagem do que de materialmente pode surgir nesse contexto no exercício decisório.

Na área criminal, são vários os aspetos a considerar.

Com efeito, e para darmos um exemplo, sabemos que a situação excecional por Covid-19 propicia a prática de crimes de burla (por via informática ou pelas vias tradicionais), sendo que, provando-se que o agente se aproveitou da especial vulnerabilidade da vítima, o tipo criminal passa a ser qualificado com as necessárias consequências no que respeita à elevação dos limites mínimos e máximos da pena aplicável. No caso mencionado, a situação excecional pode, assim, permitir o preenchimento do tipo qualificado.

Também a circunstância de terem sido tomadas medidas de ajuda às empresas em virtude dos efeitos negativos da paragem do país nalguns setores pode fomentar uma utilização pouco rigorosa dos fundos obtidos ou, pelo menos, antecipar-se-á um maior escrutínio da forma como os fundos foram utilizados quando existam indícios ou suspeitas da verificação de tipos de crime como o desvio de subvenções ou subsídios.

Contudo, para além da tipicidade criminal, o contexto Covid-19, facto público e notório, poderá ter influenciado de alguma forma o comportamento do agente, quer agravando-o, quer atenuando-o.

A lei cria molduras penais abstratas, estabelecendo limites mínimos e máximos das penas. Na sua arte de decidir, cabe ao julgador aplicar a sanção adequada ao caso concreto, considerando os critérios legalmente estabelecidos. E nesse conspecto, os desafios poderão ser maiores na escolha da pena a aplicar quando um dos fatores a ponderar seja a prática do ilícito no contexto da situação excecional por Covid.

Por um lado, as dificuldades económicas das empresas e das famílias, bem como o aumento do desemprego como consequências do lock-down decretado pelo estado de emergência e de que aos poucos saímos, potenciam a prática de “delitos de sobrevivência”, determinados pela imperatividade de acudir às necessidades mais básicas. Por outro lado, não deixam de estar em causa crimes, pelo que os princípios da igualdade e da justiça imporão uma reflexão cuidada sobre os termos em que o fator Covid deve ser equacionado.

Os critérios de julgamento não são matemáticos, são legais, no sentido de estarem previstos na lei. No entanto, a respetiva densificação, para além da lei, da doutrina e da jurisprudência, contará sempre com o invisível e imperscrutável processo mental de cada julgador. Nessa medida, a consideração do impacto da Covid-19 nas decisões judiciais irá também depender da forma como cada mente de cada julgador irá processar esta situação excecional.

Escrutinando o passado, encontramos alguns precedentes relacionados com a apreciação do impacto da crise económica no período de austeridade 2008-2014, sobretudo em crimes fiscais, tendo os tribunais, em geral, ainda assim, concluído pela condenação apesar de terem aplicado com maior frequência penas suspensas, multas ou dispensado o agente da pena.

É certo que também o presente quadro pandémico causado pelo surto da Covid-19 levará aos tribunais casos gerados por uma situação económica e financeira debilitada em virtude desse quadro. No entanto, a origem da situação é diferente da crise de 2008, uma vez que tem por causa uma emergência de saúde pública e não idiossincrasias do funcionamento do sistema económico-financeiro.

Tendendo as questões de saúde a provocar emoções subconscientes de maior condescendência, terão os julgadores a dificuldade acrescida de lidar com este fator adicional no exercício decisório, destrinçando os comportamentos relacionados com a crise epidemiológica daqueles que, na realidade, não o estão.