Artigo originalmente publicado na edição impressa do Jornal Económico, de 27 de outubro de 2023.
Diz quem sabe que a culpa é da falta de respostas adequadas dos partidos tradicionais – que se terão deixado embrulhar numa teia de interesses cada vez mais longínquos das populações, qualquer coisa difícil de definir – como se o aparelhismo tivesse contaminado primeiro os militantes, depois o próprio Estado – mas de todo o modo obscura, multitudinária em cada partido em particular e extremamente contagiosa. Sendo fundamental para a democracia que os culpados sejam desmascarados e levados ao cadafalso da irrelevância política, o certo é que um número cada vez mais vasto de cidadãos deixa de ter instrumentos (nomeadamente ideológicos) que lhe permitam manterem uma cerca sanitária em redor de propostas políticas inconcebivelmente estúpidas. Os argentinos são, por estes dias, mais um povo exposto a estas propostas. Javier Milei, que arriscou vencer à primeira volta as eleições presidenciais do país – mais uma vez as sondagens saíram derrotadas, como vem sucedendo quase sem exceção um pouco por todo o mundo (outra realidade que a democracia teria a ganhar em analisar) – mas passou a segundo e nada obsta a que não consiga ser eleito.
As suas propostas são abundantemente extravagantes: acabar com a moeda nacional e adotar o dólar norte-americano, “dinamitar” o banco central argentino, acabar com as relações económicas com o Brasil e a China (‘só’ os dois maiores parceiros comerciais do país), promover a disseminação de armas pessoais e a criação de uma espécie de bolsa de órgãos humanos. Economista de 52 anos, parlamentar desde 2022, Javier Milei arrecadou quase de um terço dos votos dos argentinos – com certeza os que acham que o dólar pode travar uma inflação anual de 140% e antecipam que a venda de órgãos humanos pode financiar o pagamento da dívida (apesar de esta estar abaixo dos 85% do PIB).
A básica associação ao norte-americano Donald Trump ou ao brasileiro Jair Bolsonaro é do agrado do visado – que diz uma coisa qualquer do género ser “natural” que as grandes ideias e os seus não menos grandes ideólogos se cruzem pela categoria das suas propostas. Por uma razão obscura, as propostas do candidato do partido La Libertad Avanza foram debatidas e analisadas ao longo da campanha eleitoral.
O mesmo sucedeu, aliás, com as propostas da sua candidata a vice-presidente, Victoria Villarruel, filha de um militares que tem dúvidas sobre a existência real dos crimes cometidos durante o regime militar (de 1976 a 1983), que, evidentemente, duvida que possa sequer ser acantonado no grupo das ditaduras – o que acontece, diz, muito por obra, nos anos 70, de um grupo de terroristas argentinos (Ernesto Guevara era argentino mas foi fuzilado em 1967, não será um dos culpados).
Para todos os efeitos, o peronismo conseguiu (contra as sondagens), apanhar um lugar na segunda volta, que se realiza a 19 de novembro próximo: Sergio Massa, advogado de 51 anos e candidato da coligação União pela Pátria, obteve 36,15% dos votos. O nome União pela Pátria diz tudo: o peronismo cumpre a função dos partidos descritos no primeiro parágrafo e a verdadeira novela que nos últimos anos foi transmitida em direto com o presidente Alberto Fernández e a sua parceira (aliás detestada) Cristina Kirchner ficou muitos pontos acima das chamadas ‘novelas mexicanas’. E pronto, é isto que espera os argentinos no próximo dia 19 – mas uma coisa é clara: só podem queixar-se de si próprios. Os europeus, que vão a votos no próximo ano, também arriscam só poderem queixar-se de si próprios.
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