As apostas desportivas ilegais, a manipulação das competições (ou match fixing) e a ligação entre o crime organizado e o desporto são os principais impulsionadores da corrupção no mundo desportivo, num mercado avaliado em mais de 1,4 trilhões de euros (ou biliões na denominação portuguesa), de acordo com os dados da United Nations Office for Drug and Crime (UNODC), referentes a 2021.
João Paulo Almeida, um perito independente em manipulação de competições desportivas, que já fez parte do Comité Olímpico de Portugal (COP) e que colabora também com o Comité Olímpico Internacional (COI) e com outras entidades, alerta para os perigos desta prática dentro do movimento desportivo e para o interesse que a prática suscita ao nível de organizações desportivas.
Em entrevista ao Jornal Económico (JE), João Paulo Almeida destaca o trabalho que tem sido feito em Portugal para esbater os efeitos do match fixing e para os perigos que os agentes desportivos podem enfrentar se caírem na tentação de enveredar por práticas que manipulem os resultados das competições desportivas.
Em termos europeus, existe uma Convenção Europeia relativamente à manipulação das competições desportivas. Em 2022, de acordo com a Comissão Europeia, apenas três países (Portugal, Grécia e Itália) tinham subscrito o documento. Como evoluiu a situação desde então?
Da mesma forma que no doping existe um código mundial antidopagem, existe também uma convenção da UNESCO para a manipulação de competições, que foi assinada em 2014.
Esta convenção é do Conselho da Europa, entidade que trata há muito tempo de várias áreas do desporto. [Essa convenção] é o único instrumento legal, a nível internacional, para abordar este problema da manipulação de competições.
[Esta convenção] estabelece o único instrumento jurídico vinculativo em termos internacionais entre Estados.
A manipulação de competições, e isso é um dos problemas, é muito difícil ou mais complicado haver uma concertação dos Estados para assinar. Porquê? Porque, ao contrário do doping, que é um fenómeno maioritariamente do desporto, que envolve agentes desportivos e também autoridades governamentais, a manipulação de competições desportivas, nomeadamente esta faceta mais moderna, que está relacionada com circunstâncias não desportivas, como apostas ilegais e ilícitas para branqueamento de capitais, envolve um conjunto muito diverso de áreas políticas fora do desporto. Envolve o jogo, na área de regulação e dos operadores de apostas, envolve a área da justiça e de cooperação policial, envolve a área de proteção de dados pessoais e, portanto, politicamente é muito mais difícil estabelecer algum ponto de entendimento e uma negociação política para isto [manipulação de competições] do que no doping.
E por isso é que demorou tanto tempo, porque um dos Estados da União Europeia, cujo Produto Interno Bruto (PIB) depende mais de 10% das receitas e do volume de negócios do mercado de apostas, não concordava com a definição da convenção de apostas ilegais. Que, no fundo, dizia qualquer coisa como isto: “uma aposta é considerada ilegal se a aposta ou o operador não tiverem licenciados no local de destino onde o apostador está a fazer essa aposta”. Esse país era Malta. Malta é conhecido como um hub de jogo, onde há muitas casas de apostas que oferecem jogo para outros países, nos quais não estavam licenciados. Portanto, ao abrigo da norma dessa convenção, sempre que se estava a oferecer jogo fora de Malta, nomeadamente em países onde não existia uma licença, estavam a fazer apostas ilegais. Gerou-se aqui um processo jurídico que ainda não terminou e que tem vindo a colocar uma série de barreiras em cima da mesa para que se consiga consolidar e avançar rapidamente para abordar esta ameaça.
A parte da educação, da prevenção e da sensibilização é muito mais importante do que a parte da sanção e da regulação, que é sempre um processo mais longo, mais penoso, marcado às vezes por falhas jurídicas e dificuldades em se encontrar normas habilitantes para sancionar. Para além disso, as pessoas acabam por, de alguma forma, sentir a injustiça, porque os agentes desportivos são sancionados do ponto de vista disciplinar, mas quem está por detrás disto nem sequer vai à justiça devido a estas questões.
E se calhar são os maiores beneficiários de toda esta manipulação que há em torno das competições desportivas…
Exatamente, estas pessoas que dirigem estes sindicatos criminosos, que visam branquear capital fundamentalmente, mas têm outros crimes associados, como corrupção ativa e passiva e associação criminosa, como se viu aqui em Portugal no Jogo Duplo, são essas pessoas que beneficiam muito mais com isto. Os atores desportivos, seja atletas, treinadores ou árbitros, são protagonistas secundários no sentido dos benefícios financeiros que podem ter com isso.
Mas acabam por ser a face mais visível de toda esta problemática…
Sim, são eles que apanham o castigo maior, que têm alguma reputação, que são conhecidos de alguma forma, melhor ou pior, do público, ou pelo menos da comunidade da sua modalidade, enquanto essas pessoas movimentam-se na sombra, não são pessoas conhecidas, não têm uma imagem pública e uma reputação a defender.
Ou seja, a Convenção Europeia já acabou por ser ratificada por mais países para além de Portugal, Grécia e Itália…
Sim, neste momento são 11 Estados.
Acredita que mais países possam vir a juntar-se a esta convenção?
O que eu tenho visto nos últimos anos é que isso está a ser desbloqueado. Mas existem questões técnicas e jurídicas que são difíceis de ultrapassar, nomeadamente a possibilidade da União Europeia ratificar como um bloco e não Estado-membro a Estado-membro.
Perante a gravidade desta situação e pelo trabalho de alguns parceiros, como a Interpol e o Comité Olímpico Internacional, tem-se alertado para a necessidade de haver um instrumento político forte, com mais Estados a assinarem. Esta convenção está também aberta aos Estados terceiros, ou seja, Estados fora do Conselho da Europa. O limite territorial do Conselho da Europa é maior do que o da União Europeia; são 46 Estados.
Por exemplo, a Austrália e Marrocos já estão em processo de ratificação e a ideia é abrir aos cinco continentes. Creio que a tendência será de se alargar e tem-se visto nos últimos meses que há cada vez mais Estados a avançar [para a ratificação da convenção].
Acaba por existir uma maior consciencialização por parte dos Estados relativamente aos efeitos negativos deste fenómeno…
Eu gostava de ser otimista. Existe essa consciencialização, mas também existe a outra parte que faz parte daquela imagem própria do cenário político, que é, muitas vezes, preciso fazer algo, nem que seja para que tudo fique na mesma, ou seja, mostrar-se que se assinou alguma coisa é sinal, pelo menos político, de que há uma vontade. Depois, se se implementa o que está na convenção, é outra coisa.
Dou-lhe um exemplo. Portugal foi o primeiro Estado membro da União Europeia a assinar e acho que foi o segundo do Conselho da Europa a ratificar, a seguir à Noruega. Apesar da rapidez, por exemplo, uma das matérias fundamentais dessa convenção demorou quase 10 anos e está ligada à questão da plataforma nacional, que é, digamos assim, uma unidade que agregue todos os principais stakeholders neste setor para se partilhar informação e se estabelecerem linhas de ação comuns em torno desta realidade. Portanto, há Estados, dou-lhe um exemplo, França, que não chegou a ratificar, mas que em termos práticos e operacionais já tinha uma estrutura efetiva montada há mais tempo do que Portugal e com outro nível de resposta.
Portanto, ainda existem problemas em passar do plano teórico à ação…
E há outros que passam à ação, mas como têm bloqueios, como é o caso de França, do ponto de vista político, preferem avançar com as coisas no terreno e, depois, na área política, que às vezes demora o seu tempo, vão, no fundo, tentando desbloquear as coisas.
Qual é o valor do mercado da manipulação das competições desportivas?
Os dados da United Nations Office for Drug and Crime (UNODC) estimam que entre 500 milhões a 1 bilhão de euros por ano (na denominação norte-americana) estejam envolvidos em manipulação de competições.
Ou seja, as receitas do crime organizado ao nível da manipulação de competições são estimadas entre 500 milhões a um bilhão de euros a nível mundial.
E não estamos a falar em branqueamento de capitais. Estamos a falar de manipulação de competições desportivas. Porque, em branqueamento de capitais, estima-se que o valor ainda seja maior. Porque 82% do mercado de apostas mundial é ilegal, ou seja, os operadores não têm licença para oferecer jogo naquelas jurisdições.
O volume do mercado de apostas é de três trilhões de dólares. Estima-se que 1,7 trilhões sejam apostados nos mercados não licenciados ou no mercado de apostas ilegal.
O volume de negócios do mercado de apostas é três vezes maior do que o mercado de jogo desportivo. Estima-se que o volume de negócios mundial do desporto seja de um trilhão de dólares, enquanto que o do jogo se fixe em três trilhões.
O payout rate, que é aquilo que é devolvido em prémios face ao volume de apostas de uma casa de apostas, estamos a falar das casas de apostas licenciadas, esse payout rate anda à volta dos 96%. Ou seja, em tese, por cada 100 euros apostados, a casa devolve 96 euros em prémios. Quem quer branquear capitais perde 4% só com o custo de transação, o que é muito interessante enquanto produto para lavar dinheiro.
Já para não falar que hoje em dia passamos na rua e verifica-se que já existem figuras públicas que acabam por ser patrocinadas por casas de apostas…
Sim, exatamente. E somos cada vez mais bombardeados em tudo o que é sítio com publicidade ao jogo, com influencers também a fazer [essa promoção], figuras públicas, etc. Existe muito pouca educação ainda perante esta avalanche e é necessário que as pessoas estejam dotadas de uma maior consciência sobre o que isto representa.
Indo ao caso nacional. Da experiência que tem tido, em que estado está o match fixing em Portugal?
A perceção que tenho é que, em Portugal, houve alguns casos que foram tornados públicos, nomeadamente o Jogo Duplo e o processo Cash Ball, que lançaram um alerta. Nós não somos diferentes de outras realidades nessa matéria, no sentido em que somos mais reativos do que proativos. E procurou-se fazer alguma coisa. Depois do Jogo Duplo, entrou um pacote legislativo que consolidou e agravou as sanções e a moldura penal para os crimes de manipulação de competições e conexos.
Eu diria que, nessa matéria, somos um dos Estados que têm das melhores regulações nesse domínio e também um conjunto de outras medidas que foram reguladas, nomeadamente condicionar o financiamento público a quem não tenha implementado as medidas de prevenção e educação neste domínio, a quem não tenha regulamento atualizado, a questão dos conflitos de interesse e até a própria regulação e a criação da plataforma nacional com o diploma que foi criado em 2024.
Do ponto de vista regulatório, eu diria que se fez um trabalho relevante. A questão depois passa em termos do que se fez no domínio da educação, no domínio da prevenção e no domínio da sensibilização. E aí vemos no nosso movimento desportivo realidades diversas. Por exemplo, o futebol fez um trabalho relevante porque tem um sistema de licenciamento de clubes onde esta matéria é obrigatória para o clube estar licenciado e ter recursos. E outras modalidades, muitas vezes, devido também a esta escassez de meios, não têm sido uma prioridade. E, de alguma forma, andam ao reboque de escândalos, e só quando ocorrem os problemas é que, de alguma forma, procuram ser proativos.
Às vezes, alguns governos vivem em minimização e negação a esta realidade. É aquilo que eu sinto. Pese embora, enquanto estive no COP, fizemos um esforço para realizar sessões de educação e de prevenção em todo o território, em várias modalidades, passando por clubes de base local até às Seleções Nacionais, e até aos atletas das nossas missões olímpicas, onde todos eles têm uma sessão antes de irem para os Jogos Olímpicos.
De uma forma geral, aquilo que vejo é que se fez o trabalho e deram-se passos. Mas, da mesma forma que em outros países, os passos que nós damos — e quando falo “nós”, falo das entidades que procuram, de alguma forma, combater este fenómeno — andam a uma velocidade muito mais lenta face aos meios e aos recursos de quem tem interesse em prosperar com as vulnerabilidades que o mundo do desporto tem para este tipo de crimes.
Pelas suas palavras, noto que o próprio movimento desportivo anda aqui um pouco a duas velocidades, ou seja, o futebol acaba por estar na dianteira neste combate ao match fixing e depois as outras modalidades acabam por ter algumas dificuldades nesta matéria. As coisas são mesmo assim?
Eu não vejo assim. O que eu acho é que nós temos um problema em vários domínios e o desporto não é um caso à parte em passar das palavras aos atos ou, dito de uma forma mais clara, em aplicar o que está previsto na lei. E a lei já determina que quem não tiver medidas regulares neste âmbito, seja ao nível da educação, da prevenção, da sensibilização e da informação dos seus agentes, seja ao nível das normas e da regulação nos seus regulamentos, fica condicionado em termos de financiamento público.
E, portanto, aquilo que eu acho é que é preciso passar das palavras aos atos.
Aquilo que o movimento olímpico diz muitas vezes acaba por ser traduzido numa política de tolerância zero, como existe relativamente à dopagem. Só assim é que efetivamente se pode dar algum passo sério neste domínio, senão as pessoas ficam um bocadinho à mercê das suas prioridades. E a manipulação de competições, por força de também ser uma questão muito técnica, faz com que as pessoas e as federações, por terem poucos meios, prefiram, digamos assim, concentrar-se naquilo que é o seu core business.
E o seu core business é organizar e regular competições. Não é por acaso, por exemplo, que na matéria da dopagem muitas vezes está fora do espectro das federações e é quase a autoridade antidopagem, que não só faz os testes e tem componentes sancionatórios, mas também faz a educação e a prevenção.
Eu diria que uma boa medida para isso [manipulação das competições desportivas] seria reforçar os meios desta plataforma nacional, que foi criada na legislação de 2024 e já está em funcionamento, e que uma percentagem, ainda que ínfima, das receitas das apostas dos Jogos Sociais seja destinada a dotar essa entidade que, no fundo, daria estes conteúdos no terreno às federações.
Já acabou por abordar este assunto. Para existir um combate ao match fixing, isso implica que as associações, os clubes e as próprias federações tenham os meios adequados. E também aqui a questão do dinheiro, acredito que seja importante para poder dar resposta a eventuais casos de match fixing ou de manipulação de competições desportivas…
Eu gosto muito de uma frase dos ingleses em que dizem: when there is a will there is a way (quando existe vontade, existe um caminho). E, no fundo, aquilo que fiz no Comitê Olímpico é um bocadinho uma imagem disto. Foi uma pessoa, depois duas, eu e uma colega minha. Nós começamos e percorremos todo o território e fizemos as coisas. E eu sei que, pese embora ter havido uma alteração na liderança do COP, este programa não se vai alterar e acredito que se vai consolidar. É uma questão de as pessoas terem essa noção de que isto é uma prioridade e não deixar os seus atletas tão vulneráveis a este tipo de situações.
Porque há uma coisa que é fácil de entender. Nós temos um slide nas nossas apresentações. Vamos falar da criminalidade violenta mais clássica, tráfico de armas, prostituição ou droga. Qualquer desses tipos de crimes tem um bem material, seja uma prostituta, uma arma ou a droga, que é preciso iludir das autoridades e passar do local A para o local B. E isso obriga a um investimento por parte do criminoso e acarreta riscos. Na manipulação de competições desportivas, nomeadamente relacionadas com o mercado de apostas moderno, onde tudo é feito através de dispositivos eletrónicos, não há necessidade de investir para iludir aquilo que é um bem material. E, portanto, por um lado, o nível de investimento é menor e o risco é mais baixo.
E se associarmos a isso as vulnerabilidades do mundo do desporto em termos de perceção deste fenómeno, eu diria que é quase um caldo perfeito para os sindicatos criminosos, que já operam no regime de policriminalidade nas áreas que lhe falei, nos crimes mais clássicos, mais tradicionais, enveredarem por aqui [manipulação de competições]. Porque a única coisa que precisam é de influência. Influência junto de quem? De atletas. E vão lá, como vimos no Jogo Duplo, através de ex-atletas, dirigentes, treinadores, familiares e pessoas próximas, para, no fundo, comprometerem-nos a viciar uma circunstância que normalmente é sempre um aspeto menor da competição na primeira vez que o fazem. Pode ser fazer uma dupla falta no primeiro jogo, no primeiro set de um jogo de ténis, ou falhar o lance livre no primeiro período [no basquetebol], coisas desse género. E, portanto, é muito apetecível para um criminoso ir para estes terrenos, porque o risco que tem é menor.
E ao nível dos canais de denúncia, ao nível do match fixing e de eventuais outros tipos de manipulação desportiva em Portugal, como é que estamos?
Eu não gosto da legislação que foi criada, muito a reboque de um partido político que, digamos assim, decidiu legislar ou pressionar o Governo para legislar para que houvesse canais de denúncias em todas as federações. Isso gera uma situação em que, se as pessoas não estiverem preparadas para dar seguimento aos casos, há um enxamear de canais de denúncias que muitas vezes não são os tecnicamente mais rigorosos para chegar a quem tem competências para isto, na minha leitura, que em primeira ordem são os órgãos de polícia criminal.
O Comité Olímpico, enquanto eu lá estive, não tinha um canal de denúncias direto. O canal de denúncias era o do Comité Olímpico Internacional. Para qualquer caso que envolvesse um atleta português, uma equipa portuguesa ou um atleta estrangeiro numa competição em Portugal, era ativada uma rede de parceiros, desde logo a Interpol e depois todas as polícias criminais nacionais, para que isto tivesse uma abordagem muito mais consertada e célere.
Porque o pior que se pode fazer é um atleta ou um ator desportivo denunciar e sentir que não há seguimento da sua denúncia. Eu advogo que o desporto deveria ter um único canal de denúncia e que esse canal de denúncia tivesse sempre uma política de quatro olhos. O que é que isso quer dizer? Que a denúncia desse entrada automaticamente no órgão desportivo, mas também no órgão de polícia criminal.
Neste caso, em Portugal, é a Polícia Judiciária. Isto para que a denúncia não caísse em saco roto e houvesse, digamos assim, um sentido e um compromisso de missão para as pessoas darem seguimento àquilo que é denunciado. Porque, se o canal de denúncia for um e-mail, por exemplo, nós não sabemos quem é que vai pegar nele. [O e-mail] é um canal de denúncia muito frágil.
O canal de denúncia tem um conjunto de critérios técnicos muito importantes. Quando fazemos uma queixa na Polícia Judiciária, fica registada e diz que a nossa queixa tem um determinado número. Se pesquisarmos, podemos perceber em que ponto está a denúncia.
É isso que eu gostaria que fosse um canal de denúncia. Que o canal de denúncia não fosse apenas uma linha telefónica ou um e-mail, que é uma coisa muito vaga, muito frágil e que não dá muita confiança às pessoas que querem denunciar.
Temos situações que envolvem criminalidade violenta e que obrigam — e vimos, por exemplo, com o caso do Rui Pinto — a que as pessoas entrem num programa de proteção de testemunhas. Os programas de proteção de testemunhas não estão na esfera de competências das organizações desportivas. É preciso ativar os órgãos de polícia criminal. Isto é uma matéria demasiado séria para que se transforme uma linha de denúncia numa espécie de canal de sugestões. Isto mexe com a vida das pessoas e tem de haver aqui, na minha leitura, uma perspetiva mais sólida, mais robusta e sempre com os órgãos de polícia criminal envolvidos no processo.
Do seu ponto de vista, os canais acabam por ser mais eficazes se existir uma integração de várias entidades e não serem só direcionados a um único organismo?
Exatamente. Tem de ter sempre a polícia judiciária envolvida nessa situação.
Portanto, a resposta acaba por ser um pouco multidisciplinar a esse nível…
Quando a denúncia cai, tem de ser efetivamente do conhecimento, pelo menos, das principais entidades que estão nesta plataforma nacional, que é o movimento desportivo, as autoridades públicas, neste caso falo, por exemplo, do Serviço de Relação e Inspeção de Jogos, se houver apostas, se for uma manipulação de resultados ligada ao mercado de apostas. Tem de existir uma filtragem muito mais técnica, muito mais profissional do que é hoje. Porque enviar um e-mail para alguém é algo muito frágil e que dá poucas garantias, na minha leitura. E, aliás, não segue as orientações do que são canais de denúncia que a UNODC e a Interpol recomendam.
Em Portugal, do seu ponto de vista, quer sejam federações, associações, clubes ou os próprios atletas, estão conscientes dos perigos de caírem nesta tentação do match fixing?
Comparado com o que existia há 10 anos, existe mais consciência, mas ainda há um grande trabalho a fazer. O COP já deu centenas de sessões e isso dá-nos algum conforto de que, para um universo já relativamente grande, isto já não é uma ignorância total. Já existe informação. Já se fala do assunto.
Não se vive em total silêncio como era há 10 ou 15 anos. Mas é preciso continuar esse caminho. Mas também devo ser sincero, porque nós também temos sempre uma imagem muito crítica relativamente ao nosso país. Eu já vi várias realidades e fiz parte de vários fóruns técnicos e até políticos, nomeadamente no Conselho da Europa e da Convenção de Acompanhamento dessa Convenção. Há países europeus mais evoluídos, até desportivamente, do que nós, que estão bastante mais atrasados do que nós nessa matéria de educação e da sensibilização.
O que se deve fazer quando nos confrontamos com situações de match fixing ou de outro tipo de manipulação de competições desportivas?
É preciso traduzir isto de uma forma muito simples e entendível, nomeadamente para jovens atletas, que todos eles gostam muito de jogar e de apostar. E confinar esta mensagem, do ponto de vista prático e concreto e orientado para a ação, é o maior desafio. É por isso que nós, nas nossas sessões, procuramos sempre utilizar vídeos e testemunhos de quem tenha passado por isto. Seja atletas, seja influencers, que têm um peso muito grande hoje em dia no que é o consumo de informação de jovens atletas. Temos, por exemplo, um vídeo de um criminoso que foi apanhado e que se arrependeu, em que ele retrata como era relativamente fácil seduzir atletas.
Uma das entidades que mais trabalhou neste domínio, porque começou a ser muito problemático para a modalidade, foi o ténis. O ténis criou a Tennis Integrity Unit, que envolvia agentes de polícia criminal e houve um investimento de 14 milhões de euros nesta unidade há mais de 10 anos.
E eles fizeram vários vídeos. Um dos vídeos é de um tenista argentino que chegou ao TOP 100 e que explica que, a partir de certa altura, aceitou dizer que sim a uma proposta, não era para ter um estilo de vida acima das suas possibilidades ou ter bens materiais ou até resolver uma dívida ou um problema financeiro que pudesse estar a passar. Era tão só para poder continuar no circuito profissional de ténis, que é exigente. Ele não tinha liquidez para continuar no circuito. Às vezes [aceitam ceder à manipulação de competições] para resolver questões de continuidade na modalidade e dar seguimento à sua carreira.
Quais são os exemplos mais comuns de match fixing ou situações que podem constituir match fixing e a que treinadores, atletas e até as respetivas comitivas possam não ter consciência de que estão perante uma situação de match fixing?
Há coisas muito elementares para as quais muitas vezes os atletas não estão apercebidos. Por exemplo, uma coisa que é relativamente comum numa modalidade como o ciclismo. Dois atletas estão numa fuga. Eles combinam entre si que um atleta que já não pode ganhar a camisola amarela (em algumas provas, este é o símbolo da liderança na classificação geral da competição) passe à frente na dos pontos (outra das classificações existentes numa prova de ciclismo), por exemplo. Outro caso pode ser o de os atletas fazerem uma negociação em que um deles tem condições de chegar à camisola amarela, pelo que o outro passa à frente nos prémios de montanha (outra classificação existente numa prova de ciclismo). Este tipo de coisas que às vezes parecem inócuas muitas vezes não sabemos o que está associado por detrás.
Existem várias situações nesses terrenos mais pantanosos em que muitas vezes os atletas não têm a perceção do que está a passar. Por isso é que uma das fronteiras muito difíceis de limitar é onde é que acaba a gestão tática e estratégica e a gestão do esforço que os atletas têm de fazer e se começa a entrar na manipulação de competições.
Nós também temos alguma formação para isso e temos alguns exemplos, porque nem sempre o critério é igual de modalidade para modalidade. Eu dou-lhe o exemplo. Quando foram os Jogos Olímpicos de Londres, houve duas duplas de badminton que foram expulsas porque queriam perder de propósito para apanhar um adversário na fase a eliminar que achavam ser mais acessível. E, então, o espetáculo que proporcionaram durante a competição era de tal forma grotesco que o árbitro avisou uma, duas e, à terceira vez, suspendeu.
Nesses casos, por exemplo, qual deveria ser a postura por parte do organizador?
O critério varia muito de modalidade para modalidade e tem associado várias dimensões. Uma é o rigor, é a forma de obtenção de prova para fazer o sancionamento; outra é, às vezes, o impacto visual que gera.
Existem várias dimensões a analisar e existem níveis de tolerância e prioridade que se dá ao caso de modalidade para modalidade. Dou-lhe o exemplo do ténis. Um atleta no circuito profissional de ténis é obrigado a fazer uma coisa que, do ponto de vista legal, levanta muitas dúvidas, que é só se pode inscrever no ATP Tour (circuito masculino de ténis profissional) assinando um formulário que autoriza esta unidade de integridade a consultar as chamadas telefónicas, ou seja, o tenista é obrigado a entregar o aparelho telefónico em caso de suspeita e também dá acesso à conta bancária.
Lembro-me de vários tenistas, nomeadamente Roger Federer, Rafael Nadal e alguém que era muito vocal nisto, que era Andy Murray, virem dizer, quando isto se levantou, que não se importavam se a norma era legal ou não. Eles defendiam que a sua integridade era mais importante do que isso.
E no caso do ciclismo existe sempre aquela linha ténue entre o que é uma combinação entre atletas por motivos táticos e estratégicos e, depois, outra coisa completamente diferente é a manipulação da competição desportiva…
Exatamente. Há um vídeo muito interessante do João Almeida, que veio recentemente de uma vitória na Volta ao País Basco, em que, na última etapa, vai isolado na liderança da etapa com Enric Mas, a dizer ao João Almeida se este o deixa ganhar a etapa. E o João Almeida diz que não e, depois, acaba por vencer a etapa.
Nós procuramos dizer nas nossas formações, respeitando os interesses estratégicos e até questões de terem aquele ciclista a ganhar aquele prémio, e outras questões do género. Quanto mais as pessoas estiverem permeáveis a isto, por outras entidades que queiram que esta gestão tenha outros propósitos que não meramente táticos e estratégicos, são vistas como alvos. Como, por exemplo, atletas que utilizam muito as redes sociais e, às vezes, vão para as redes sociais para mostrar estados de espírito, frustrações, etc.
Existem pessoas que estão contratadas ao serviço destas entidades criminosas que escrutinam tudo com o objetivo de encontrarem vulnerabilidades. E quais são as vulnerabilidades? Questões de ego e fragilidades emocionais. Aquele registo de atleta que gosta de desafiar o sistema, por exemplo, estilo Marco Pantani (ciclista italiano), rebeldes, esse tipo de atletas normalmente são alvos. E, portanto, é um risco que as pessoas têm de saber prevenir.
Quais são os perigos de se cair no match fixing?
Os perigos para os intervenientes desportivos são muito claros. E é preciso saber dizer isto às pessoas que, mais do que a competição ficar manipulada, quem fica manipulado como uma marionete nas mãos de terceiros e não consegue cortar as amarras são os próprios atletas.
O agente desportivo, seja ele qual for, a partir do momento em que diz que sim, e normalmente o sim é sempre para uma circunstância muito irrelevante da competição — como eu disse, nós às vezes pensamos que isto não é impactante para o desfecho do jogo, ninguém vai perceber. Só que depois esquecem-se que isto gera uma bola de neve e cada vez aquilo que é pedido para manipular é maior. Os principais riscos são ficarem nas mãos destas pessoas, que muitas vezes têm uma abordagem ao início amigável, até útil, que parece que cai como sopa no mel, para resolver um problema, uma dívida, um momento difícil que estamos a passar, e depois isto torna-se num verdadeiro inferno.
Um dos vídeos que temos nas nossas ações é precisamente de um guarda-redes belga que começou nisso e a situação acabou com armas apontadas à cabeça, com pressões, chantagem e coação sobre a sua família, ao ponto de as pessoas entrarem em burnout. Houve até casos de atletas que já se suicidaram com este tipo de questões. Portanto, é algo de muito sério. Uma vez caído nela, é muito difícil sair.
E há uma outra coisa que funciona bem nas mensagens que nós passamos aos jovens atletas. E aquele exemplo do ténis é muito importante, em que temos um tenista a ter que explicar aos filhos porque é que não estava a competir. E o que é que eu quero dizer com isto? Se nós formos apanhados e cumprirmos uma pena desportiva, uma suspensão, isso tem efeitos na carreira? Tem, mas passa. Uma sanção penal, como uma multa ou uma pena de prisão, a mesma coisa. Agora, explicar à nossa família, explicar às pessoas da nossa comunidade que somos batoteiros, isso é algo que fica para a vida. O Lance Armstrong é um bom exemplo disso. Vamos ficar sempre marcados. Isso não sai. E é muito importante conseguir passar essa mensagem. O maior impacto que eu diria que existe é o da imagem manchada para o resto da vida.
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