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Jordan Peele: Humorista ganha milhões à custa do horror negro

Misturar terror e identidade racial é a receita do sucesso de um dos raros cineastas negros nomeados para o Óscar de Melhor Realizador. Depois de questionar os brancosmuito liberais que veneram Barack Obama em “Foge”, acaba de bater recordes de bilheteira nos Estados Unidos com uma família perseguida por sósias em “Nós”.
  • Writer, producer and director Jordan Peele poses on the set of Us.
14 Abril 2019, 13h00

Parece impossível, mas Jordan Peele, o responsável por “Nós”, filme de terror (também já em exibição nos cinemas nacionais) que liderou as receitas de bilheteira no fim-de-semana passado nos Estados Unidos, estabelecendo o novo recorde numa estreia desse género cinematográfico, com 70,2 milhões de dólares (62 milhões de euros), escreveu e protagonizou, há apenas quatro anos, “Keanu”, uma comédia de baixo orçamento na qual dois amigos se faziam passar por bandidos para resgatarem o gato de rua que um deles acolhera.

O norte-americano de 40 anos tornou-se o quinto negro nomeado para o Óscar de Melhor Realizador graças a “Foge”, o filme de terror de 2017 que lhe valeu a estatueta dourada na categoria de Argumento Original, mas antes fizera carreira no humor. Autor de textos e membro do elenco do programa televisivo “MadTV”, juntou-se ao amigo Keegan-Michael Key, coprotagonista de “Keanu”, no programa “Key and Peele”, para o canal_Comedy Central.

Talvez por isso não tenham sido muitos aqueles que o levaram a sério ao saberem que estava a realizar o argumento que escrevera sobre a visita de um homem negro à casa dos pais da namorada branca num fim-de-semana alucinante e alucinado. Mas “Foge” obteve quatro nomeações – além do Óscar de Melhor Argumento Original, Peele foi suplantado nas categorias de Melhor Filme e de Melhor Realizador, tal como_o britânico Daniel Kaluuya perdeu a estatueta de Melhor Ator para o compatriota Gary Oldman, o Winston Churchill de “A Hora Mais Negra” – e faturou um total de 255 milhões de dólares (226 milhões de euros) em todo o mundo, mais de dois terços dos quais nos EUA.

A concentração de receita no mercado interno não foi uma surpresa. Não só por a indústria cinematográfica dar por certo que filmes com protagonistas negros têm escassas hipóteses de serem êxitos globais – crença posta em causa por “Black Panther” – como pelo impacto do movimento “Black Lives Matter” e pelo facto de “Foge” satirizar a forma como alguns brancos, muito liberais e devotos de Barack Obama, podem ser mais perigosos do que os racistas propriamente ditos. Chris, o jovem negro interpretado por David Kaluuya, descobria da pior forma que os pais e os amigos da namorada apreciavam as qualidades dos negros ao ponto de lhes quererem roubar os corpos.

Filho de um negro e de uma branca, tal como o 44.º presidente dos Estados Unidos, Jordan Peele sabe do que fala quando estão em causa questões de identidade e de racismo. Tanto assim que admitiu ter adiado o sonho de ser realizador devido ao tom de pele. “Pensei que seria mais complicado para mim, enquanto pessoa de cor, convencer alguém a utilizar o seu dinheiro para fazer um filme”, admitiu, numa entrevista ao_“Los Angeles Times”, depois do sucesso de “Foge”. Mesmo tendo feito “uma odisseia na representação e na comédia” para retomar o plano inicial, Peele não hesita em apontar o dedo a si próprio por ter “interiorizado o sistema”.

Apontado para um sucesso sem precedentes com “Nós”, o argumentista e realizador garante que o seu novo filme nada tem a ver com raça, embora Lupita Nyong’o e Winston Duke interpretem um casal de negros de classe média-alta  que levam os dois filhos à casa de praia que têm na Califórnia. “Vemos facetas daquilo que representa ser afro-americano que não costumam aparecer nos filmes”, disse Jordan Peele, numa entrevista à National_Public Radio, admitindo que mostrar aquela família a fazer tão corriqueiro quanto apanhar sol na praia “tem um excelente efeito, tanto dentro como fora da comunidade afro-americana”.

Mesmo que esses pais e filhos sejam assolados por duplos que escapam de um mundo subterrâneo habitado por muitos milhões de seres como eles, provocando os arrepios que já convenceram muitos a irem ver “Nós”. Ao ponto de a imaginação de Jordan_Peele começar a ser vista como um sinónimo de sucesso de bilheteira, como o norte-americano de origem indiana M. Night Shyamalan conseguiu tornar-se no final do século passado, após a estreia de “O Sexto Setnido”.

Nos planos de Peele estão novas longas-metragens, mas também vários projetos enquanto produtor – outra faceta numa figura multifacetada que lhe valeu outra nomeação nos últimos Óscares, na categoria de Melhor Filme, por “BlackKklansman: O Infiltrado”, realizado e escrito por Spike Lee -, incluindo uma série de televisão que transporta o fenómeno_“The Twilight Zone” ao século_XXI e também “Lorena”, documentário em quatro episódios sobre a mulher que se tornou famosa em 1993 por cortar o pénis do marido que a agredia fisica e sexualmente. E ainda a série “The Hunt”, encomendada pela Amazon, sobre um grupo que se dedica a caçar nazis infiltrados na América dos anos 70.

Para já, o nova-iorquino de 40 anos, casado com a atriz Chelsea Peretti (da sitcom “Brooklyn Nine-Nine”), com quem teve um filho em 2017, quer ver até onde chegará “Nós”, cujo título original “Us” também pode significar “Estados Unidos”. Mas Jordan Peele tem uma certeza: “Não me vejo a escolher um tipo branco para protagonizar o meu filme. Não é que tenha nada contra tipos brancos, mas já vi esse filme.”

Artigo publicado na edição nº 1982 de 29 de março do Jornal Económico

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