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Jorge Spencer Lima: “Não podemos falar de indústria sem haver protecção das empresas nacionais”

Em entrevista ao “Económico Cabo Verde”, Jorge Spencer Lima garante que “a proposta foi da CCISS e foi feita no quadro de uma política proteccionista que Cabo Verde deve ter no sector industrial.
8 Março 2018, 09h54

O presidente da Câmara de Comércio, Indústria e Serviços de Sotavento (CCISS) considera “descabidas e sem razão de ser” as suspeitas sobre o vice-primeiro ministro e ministro das Finanças, Olavo Correia, que está sob investigação do Ministério Público por suposto tráfico de influência no agravamento das taxas alfandegárias nos lacticínios e sumos de fruta de modo a proteger os interesses da Tecnicil, empresa de que é accionista. Em entrevista ao “Económico Cabo Verde”, Jorge Spencer Lima garante que “a proposta foi da CCISS e foi feita no quadro de uma política proteccionista que Cabo Verde deve ter no sector industrial”.

 

A reforma da política industrial tem sido uma das bandeiras da CCISS. Porquê a indústria e não o turismo?

O turismo é um sector que se tem desenvolvido naturalmente. Todas as baterias em Cabo Verde estão viradas para o turismo. Não é por acaso que o turismo representa quase 25/26% do PIB [produto interno bruto]. Estamos na época de ouro do turismo em Cabo Verde, o que acontece mais por razões externas do que por algum incentivo ou política interna.

Isso levanta outra questão: Cabo Verde não pode viver eternamente com base na monocultura do turismo. É bom, sim, mas se acontece algo que nós não controlamos, o turismo desaparece. Veja-se o que aconteceu na Turquia, Egipto e toda a África do Norte.

O turismo é um sector que devemos acarinhar, mas não podemos apostar todas as nossas energias neste sector, não podemos colocar todos os ovos no mesmo cesto. Para já, o turismo está a desenvolver-se por si só, pelo que devemos acarinhar a indústria, um sector com muito menos representatividade no PIB, creio que 10%. Queremos uma indústria nacional pujante para consolidar e contrapor a forte presença do turismo na economia nacional e assim deixarmos de depender da monocultura do turismo.

 

Nesse caso, defende um sector industrial como alternativa ao turismo ou como o motor de toda a economia cabo-verdiana?

A Economia não se faz com base em alternativa, mas em sectores complementares. Por exemplo, nós vemos que o turismo funciona bem, mas praticamente só funciona com produtos importados. Se o turismo consome 10% dos produtos cabo-verdianos é muito. Isso acontece, por um lado, devido às políticas dos hotéis, mas por outro lado é a nossa capacidade produtiva que é muito limitada. Temos problemas de competitividade, de qualidade e também de certificação de produtos. Portanto, o turismo tem o seu papel fundamental, mas os seus tentáculos não estão a estender-se para toda a economia e a ter todo o seu efeito positivo. Por isso, o único sector capaz de garantir alguma pujança à economia cabo-verdiana é a indústria, a partir de uma política virada para a produtividade nacional.

 

É esse reforço da produção nacional e de uma nova politica para a indústria cabo-verdiana que o levou a apoiar o agravamento, através do Orçamento de Estado para 2018, das taxas alfandegárias para lacticínios e sumos e que está a causar polémica em Cabo Verde por supostamente beneficiar somente a Tecnicil?

A CCISS elaborou, no ano passado, um estudo sobre a nova política industrial em Cabo Verde que foi submetido ao Governo. Várias propostas desse estudo já foram acolhidas pelo Governo e constam do OE2018. Nós não podemos ter a pretensão, no mundo competitivo de hoje, de querer desenvolver uma economia nacional sem o mínimo de protecção. Primeiro: todas as indústrias que exportam para Cabo Verde são centenárias, com anos no mercado nos seus respectivos países. Mas quando arrancaram tiveram protecção dos seus países para se consolidarem e poderem produzir. Aliás, ainda beneficiam dessa protecção e chegam em Cabo Verde para competir com os cabo-verdianos, que têm uma pequena produção. Se não tivermos cautela para proteger os nossos produtos não sairemos da cepa torta onde nós estamos. Não iremos consolidar a economia nacional e nunca iremos ter país.

O que está a acontecer é o seguinte: vivemos há 40 anos de ajudas externas. Todos os governos de Cabo Verde souberam fazer uma boa gestão das ajudas externas que nos trouxe um patamar de desenvolvimento aceitável, e que sobretudo fez com que as nossas reservas externas sejam aceitáveis, pois temos quatro meses de exportação. Mas a gestão das ajudas externas acabou porque já não há ajuda externa, desde a ascensão de Cabo Verde a País de Rendimento Médio. Nós temos uma dívida externa muito elevada (mais de 120% do PIB), que são de empréstimos concessionais que nós tomamos a juros muito baixos. Isso acabou também. Portanto, se não há dinheiro das ajudas externas e as remessas dos emigrantes estagnaram, temos de procurar dinheiro nalgum sítio e é na produção nacional.

 

O alegado proteccionismo à Tecnicil reflecte esta ideia?

Essa confusão é descabida. Todo o mundo está a falar de preços, de protecção… Todo o mundo está concentrado na Tecnicil, isso não é um problema da Tecnicil, mas sim da industrialização do país.

 

Existem outras áreas do sector industrial que foram abrangidas por esse estudo e adoptadas pelo Governo segundo a vossa proposta?

Sim, claro. Nós fizemos um estudo sobre o desenvolvimento industrial em Cabo Verde e a indústria abrange tudo, transportes, comércio… O que falamos é de incentivos para o aparecimento de novas indústrias em Cabo Verde com capacidade competitiva e com capacidade exportadora. O sistema não tem escrito Tecnicil. Por exemplo, qualquer empresa nacional que queira produzir leites ou sumos terá os mesmos benefícios que a Tecnicil tem agora, pois não há exclusividade do mercado. Acontece que a Tecnicil já estava preparada para isso. Para já, é um investimento que não cai do céu assim de um dia para outro. A Tecnicil teve que ir buscar dinheiro, investir em know how, tecnologia, para chegar onde está. Mas o importante para a Tecnicil é agora que precisa dessa protecção e não quando não tinha produto.

A Tecnicil fez essa proposta à CCISS e nós analisamos e absorvemos o que valia a pena. Aliás, a proposta da Tecnicil era maior, mais extensiva, e continha partes com as quais não concordámos e não demos cobertura.

 

O quê, concretamente?

Era uma parte relativa ao IVA, que fosse considerado custo e não dedutível nesses produtos. Não achamos bem, não concordamos e não levamos essa parte na proposta que a CCISS levou ao Governo.

 

Essa proposta da Tecnicil veio antes ou depois do estudo sobre o desenvolvimento industrial?

Depois do estudo. Até porque, quando levámos a proposta o estudo já estava no Governo há muito tempo. E é preciso ter em conta que é a Organização Mundial do Comércio, de que Cabo Verde é membro, que define as regras sobre taxas. Foi a OMC que definiu quais eram os nossos limites máximos e nós não passamos nenhum ponto.

 

Se essa nova politica industrial que defende pegar, Cabo Verde pode voltar a falar na exportação para o mercado da CEDEAO?

É isso que devemos falar. Quando damos protecção à indústria estamos a dizer aos investidores externos que venham investir em Cabo Verde tendo em vista o mercado da CEDEAO. De que vale sermos membros da CEDEAO se não exportamos um parafuso para esse grande mercado? A CEDEAO é uma comunidade basicamente de circulação de pessoas e bens. Nós estamos a pegar apenas a parte negativa, que é a circulação de pessoas. Bens, nada.

 

Por que pouco se fala em Cabo Verde na reexportação, tendo o país uma posição geográfica excelente para isso?

A Cabo Verde Trading é que tem a responsabilidade primária sobre as exportações, e está neste momento a fazer todo o rearranjo nos mecanismos legais sobre as políticas de exportação e reexportação. Mas a reexportação tem de acompanhar o esforço de produção. Se não produzirmos nada e apanharmos de um lado e levar para outro não temos nada no fim.

 

Voltando ao caso Tecnicil. Com a Procuradoria-Geral da República a confirmar que está a investigar um alegado conflito de interesses entre o vice-primeiro-ministro e ministro das Finanças e os incentivos do Governo a uma empresa (Tecnicil) de que é accionista, o ambiente económico cabo-verdiano poderá ficar afectado?

Eu acho que não. A PGR que faça o seu trabalho, inclusive já nos pediu os documentos que nós submetemos ao Governo e já enviei. Estou pronto e à espera que a Procuradoria me ouça. Porque essa suspeita sobre o vice-primeiro-ministro não tem razão de ser. Temos que saber entender o momento político: o PAICV está a fazer o seu trabalho, lançando suspeitas. O MpD passou 15 anos lançando suspeitas sobre o Governo do PAICV. Ainda hoje o MpD, mesmo no Governo, continua a lançar suspeitas sobre o pessoal do PAICV.

O senhor vice-primeiro ministro não nasceu no dia em que o MpD ganhou o Governo. É um cabo-verdiano como outro qualquer e tem todo o direito de participar, de investir. Até prova em contrário, o vice-primeiro-ministro é um homem honesto, é um dos melhores ministros das Finanças que este país já teve, para não dizer o melhor. Está a trabalhar para ajudar os cabo-verdianos e as empresas cabo-verdianas a desenvolverem-se. É bom que a PGR o investigar para clarificar as coisas de uma vez por todas. Estou pronto para ir testemunhar. Assumo que a proposta foi da CCISS e foi feito no quadro de uma política proteccionista que nós achamos que Cabo Verde deve ter no domínio do desenvolvimento industrial. Mais: a proposta que mandamos ao Governo, o Governo mandou ao Parlamento, que a aprovou com larga maioria.

 

A proposta surgiu agora com o Governo do MpD ou já existia no tempo do PAICV?

Surgiu com o actual Governo. Aliás, a questão da indústria está sobre a mesa com este Governo. O estudo foi feito com este Governo, e financiado uma parte pelo Ministério das Finanças e outra parte pelas próprias empresas e pela CCISS. E sim o tema desenvolvimento industrial surge agora porque o fim das ajudas externas coincidiu com o fim do anterior Governo.

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