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José Rijo: “Alfândegas? Há sinais de protecionismo. Comissão Europeia percebeu que abriu demasiado as portas”

Porto recebe pela primeira vez reunião mundial sobre Direito Aduaneiro. Só em setembro do próximo ano, mas até lá – e até 2037 – estará em análise uma alteração profunda do contexto finalmente comum da atividade aduaneira. O especialista José Rijo explica ao JE o que está em causa.
23 Julho 2024, 07h30

É numa conjuntura sem precedentes ao nível do comércio internacional e dos mercados globais que a Academia Internacional de Direito Aduaneiro (ICLA) anuncia o Porto como o palco da XVII Reunião Mundial de Direito Aduaneiro, agendada para os dias 4 e 5 de setembro de 2025, no Centro de Congressos da Alfândega do Porto.

Desde académicos, investigadores, membros de instituições internacionais, advogados, economistas, despachantes aduaneiros ou representantes das alfândegas, são vários os especialistas mundiais esperados na cidade para uma conferência anual que regressa a Portugal após ter sido realizada, no ano de 2009, em Lisboa.

José Rijo, advogado e docente universitário especialista em Direito Aduaneiro, disse, em entrevista ao JE, este mundo novo é o quadro geral em que a Comissão Europeia lançou uma “profunda reforma de tudo o que tem a ver com questões aduaneiras”, que assenta em três pilares essenciais: “Uma nova plataforma unificada de dados à escala europeia, uma autoridade aduaneira única e uma profunda reforma dos procedimentos aduaneiros”.

 

Que pressupostos destacaria no novo quadro aduaneiro que a Comissão Europeia quer implementar?

Estão a ser dados os primeiros passos na reforma muito profunda daquilo que será o novo enquadramento jurídico-normativo em matéria aduaneira, a médio prazo. A proposta anunciada pela União Europeia tem ainda ‘muita pedra’ para partir – a ver vamos o que acontece.

O que está em cima da mesa é, de facto, uma reforma profundíssima do comércio internacional na Europa. Há três grandes vetores que são três pilares estruturantes. O primeiro é a implementação de uma plataforma única de dados à escala europeia. Deixaremos de ter os 27 sistemas informáticos – o chamado Star [no caso português]. Quando esta reforma estiver em velocidade cruzeiro – o último estádio da reforma está previsto para 2037, mas na área do e-commerce talvez já venha a acontecer a partir de 2028 – teremos um único sistema, uma única plataforma de dados à escala europeia. Portanto, todos os critérios de análise de risco dos importadores e dos exportadores, se as mercadorias são ou não inspecionadas fisicamente, se são ou não objeto de confirmação documental, se são imediatamente libertas ou não, tudo vai ser determinado a uma escala global para todos os Estados-membros.

Qual será o segundo pilar?

Muito relevante, passaremos a ter uma autoridade aduaneira única para toda a União Europeia. Mais uma vez uma lógica de alguma centralização – mas isso não quer dizer que as alfândegas dos Estados-membros vão desaparecer: não vão. Mas, todo o comando, toda a definição, todas as diretrizes passarão a ser da responsabilidade de uma Alta Autoridade Aduaneira, que será uma espécie de direção-geral das alfândegas para os 27. As alfândegas locais continuarão a ter um papel importante – vão interagir com os operadores –, mas perderão muita da sua soberania decisória, na medida em que todo o processo passará a ser coordenado a partir desta alta autoridade, que ainda não se sabe bem como irá funcionar. Provavelmente terá um conselho de administração com um representante de cada Estado-membro – mas o que é claro e notório, se é que alguma conclusão se pode tirar, é que a cadeia de comando deixará de ser dos Estados-membros individualmente considerados para passar a ser desta estrutura de escala europeia.

Vamos ao terceiro pilar.

A terceira grande novidade é uma reforma profundíssima do que são os procedimentos aduaneiros. A ideia central é que pela primeira vez se admite um contexto jurídico-aduaneiro em que a declaração aduaneira é dispensada. Isto é, a obrigação que importadores e exportadores têm de, sempre que importam ou exportam uma remessa, declararem junto das alfândegas por via daquilo que na gíria se chama o ‘despacho’, (a declaração aduaneira), desaparece. No contexto que se antecipa, o objetivo que a União pretende atingir é que as empresas possam na prática ter os seus registos contabilísticos abertos às administrações – e portanto não tenham a obrigação de fazer essa declaração caso a caso. Não será para todas, mas apenas para aquelas que obedeçam a determinados critérios de confiabilidade e idoneidade. Tendo acesso direto aos registos das empresas, a futura autoridade aduaneira pode, se quiser, conferir o cálculo dos direitos e efetuar esse pagamento.

Uma simplificação que se tornava imperiosa.

Que tem a ver diretamente com o e-commerce – que demonstrou à saciedade que é impossível continuar o modelo declarativo com o que temos atualmente. Para lhe dar um dado de 2022, nesse ano foram processados 892 milhões de encomendas em e-commerce só no espaço europeu. Não há alfândega que resista a uma coisa destas.

A haver ainda uma União Europeia em 2037, ela já não será a 27. Os países do alargamento vão ter de se enquadrar no novo sistema, supõe-se.

Sim, os tratados de adesão – e dependendo daquilo que é o estádio de desenvolvimento de cada novo Estado-membro – contemplarão por certo um período de adaptação. Tal como Portugal teve nos anos 80, quando aderiu. Houve um período transitório de seis anos.

Na sua opinião que benefícios trará esta reforma tão profunda?

Nos termos em que está pensada, a reforma – e tanto quanto aquilo que é possível perceber neste momento – trará uma simplificação. Um estudo de um conjunto de sábios nestas matérias de há dois ou três anos identificou uma série de situações que levaram a este contexto. Havia causas generalizadas de ineficácia nos controlos aduaneiros, havia países mais tolerantes e outros menos tolerantes, a questão dos controlos à posteriori, que uns Estados faziam outros não, o próprio tribunal de contas da União evidenciava muitas destas carências. O espírito é, portanto, vai num sentido mais coletivo.

Os Estados-membros poderão ter vantagens: o caderno de encargos definido pela Comissão assim o diz. Por exemplo, há uma expectativa de, através de uma abordagem mais inteligente dos controlos aduaneiros, ser poupado muito dinheiro em desenvolvimento de sistemas internos, nomeadamente informáticos. Outra alteração muito importante: atualmente, qualquer importação que tenha um valor até 150 euros não paga taxas aduaneiras; essa franquia deixa de existir quando este sistema novo estiver em velocidade cruzeiro. A União Europeia percebeu que havia muita fraude, muitas mercadorias introduzidas no espaço europeu têm um valor superior aos 150 euros mas são declaradas abaixo desse valor. As alterações vão gerar uma receita adicional espectável – dado que implica à partida a cobrança de muitos milhões mais – e embora esse dinheiro entre para o orçamento europeu, é depois repatriado em 25% para cada Estado-membro em cujas alfândegas tiveram lugar essas importações. Há portanto algumas vantagens financeiras, não só com a poupança no investimento nos sistemas, mas também com a racionalização que vai ter lugar.

Diria que esta reforma vai no sentido protecionista da própria União Europeia, ou é uma questão que nem sequer se coloca?

A reforma em si mesma não me parece que tenha sinais nesse sentido. A reforma visa claramente dar resposta a uma realidade nova em que o e-commerce tem um papel relevante. É um passo muito arrojado no que tem a ver com o deixar de haver declaração aduaneira, aquilo que é o eixo central da relação entre um valor económico e uma alfândega. A reforma está pensada para simplificar e racionalizar procedimentos.

A questão do protecionismo, de que se tem falado muito, é também uma realidade, mas isso tem a ver com o que se tem estado a passar nos últimos cinco ou seis anos. Depois de termos vivido um período de 30 anos de desagravamento e de desregulamentação, de redução e eliminação de barreiras alfandegárias, de barreiras pautais e não-pautais, o terem acabado as contingentações às importações (por exemplo no sector têxtil) – e a União Europeia foi pioneira – a nova realidade vem ao arrepio disso.

Há sinais de algum protecionismo. Isso tem a ver com o facto de a Comissão ter percebido que se calhar abriu demasiado as portas – com consequências na própria indústria europeia. Nos últimos anos temos assistido a um incremento dos inquéritos sobre práticas de ‘dumping’, de práticas concorrenciais desleais ligadas a subvenções (veja o caso da indústria automóvel), nas alterações no quadro da indústria siderúrgica a partir da eleição de Donald Trump em 2016, a própria relação com a China. Não me lembro de terem sido abertos tantos processos, tantos avisos de inquérito em relação a variadíssimos tipos de mercadorias, como nos últimos cinco anos relativamente a práticas comerciais desleais. Que culminam sempre com a adoção ou de direitos aduaneiros anti-dumping, ou com direitos de compensação, ou mesmo com a majoração de taxas aduaneiras. Com o Brexit e a guerra na Europa a acrescentar, o ambiente comercial global é hoje muito marcado por sinais dessa natureza. As eleições norte-americanas serão mais um passo crucial – mas não me surpreenderia que continuássemos a assistir a esta escalada potencialmente protecionista – ao arrepio daquilo que vivemos durante 25 ou 30 anos.

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